A CRIATURA

Atentado, aquele moleque
crem-deus-pai!
meio bicho, meio índio
meio rio, meio floresta
com os pés descalços
sempre fincados na terra
abraçando árvores sozinho
(o espírito suspenso)
entre a mata e o chão
falando com os cavalos
ativo e arteiro como o cão
pegava passarim no alçapão
depois soltava tudo
porque lugar de passarim
é no alto, bem alto
mais alto
colecionava bolas de gudes

(gudes semelhavam lágrimas congeladas  que olhadas de bem perto revelavam em seu cristal denso de vidro azul, verde líquido pequenas vias lácteas em miniatura, o outro-lado-de-lá-de-tudo --gudes eram portais ?)

enrodilhava-se pelos piões
apaixonava-se pelas pipas
fugia das multidões
administrava estilingues
e plantações de mamona
investigava formigas
(mesmo as sem cabeça)
espetava tanajuras
botava-se bonito
pra missa de domingo
cabelo partido ao meio
sapato com meia
e camisa passada a mão
levantava a saia das garotas
escrevia-lhes rabiscos de amor
que depois nunca enviava
morria de medo de namoro
mas tinha um monte de namoradas
(as meninas ainda não sabiam )
mas gostava mais era de uma só
(ela sabia )

tinha vergonha de dançar quadrilha tinha vergonha de que o vissem sorrindo tinha medo de que o vissem chorando e ele chorava, de vez em quando, um choro doído, de abandono às lágrimas quando sentia o mundo como desamparada solidão

só não deixava que vissem
xingava , de longe, os desafetos
jogava pedras, já iniciando matreiro
na corrida pra bem longe
também mostrava o pau pra quem
o atazanava demais das idéias
ia à missa pra agradar à mãe
nunca entendia nada que o padre falava
mas gostava da fumaça do incenso
contra as gôndolas coloridas de vidro
e gostava de  ver os passarinhos
aquelas andorinhas guturais e belas
que faziam seus ninhos no topo da igreja
e povoavam os mosaicos dos santos apóstolos
dando rasante sobre o penteado das fiéis
ele ria, sozinho, e de vez  em quando cismava
de ter visto o Anjo Gabriel sorrindo no vitral
em vermelho, azul e amarelo fogo
 ele queria contar
mas tinha medo de ninguém acreditar
seu corpo era um terço perna, um terço braços
e o resto do metal azul da bicicleta
ele todo viajado em duas rodas
sempre de bermuda surrada
camiseta encardida
no banco da sua bike
empinava a bicicleta
morro acima, morro abaixo
a bunda lixada na terra dura
para desespero da mãe
cortava a perna
quebrava a cabeça
quebrava dentes
quebrava vidraça
levava pontos
levava injeções
não tinha dia sem ai
sem a pontuação séria
do ensimesmado pai

aí, um belo dia, assim sem aviso
arrastaram-no para a escola