O sangue

para Lorenzo
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Você com a sua calma
o equilíbrio o segredo
de manter sob esses olhos
por duas décadas
a inquietude dos seus poucos anos
em sintonia com a própria vida

A arte de ser filho
e não sucumbir aos pais
sejam eles terríveis
sejam os mais amorosos

Tão diferente de mim mesmo
na mesma idade
quando a ansiedade me governava o peito
as angústias me desfazendo os dias
e por dentro uma certa agonia
o monstro sem nome
que já insistia em se criar

O excesso de âmago
o excesso de fôlego
o excesso de ver
o excesso de imaginar
e não sabe como expressar
Combustível certo
para implosões

A casca tornando-se
em algum momento mais grossa
porque havia a necessidade
real ou inventada
de se preservar
para não sucumbir
à beleza do mundo
à violência do viver

As crises, a rebeldia
a impossibilidade de uma fala
que sinalizasse tradução
dos estados de ânimo
permanentemente
Sentidos
desalentados
em idade tão precoce

Vejo sua vida tão harmônica
tão pragmática e boa
cheia de pequenas felicidades
nessa lógica rarefeita
que funciona tão bem

Eu me calo, às vezes
quando aquele papel chato
e infeliz do pai que tem-que
se preocupar com isso
tem-que se preocupar com aquilo
ora ou outra cessa por segundos

Eu me calo mas te observo
esse teu jeito de não ser inerte
mas ser contido, um lago tranquilo
que serena na superfície
mas abriga uma força no fundo
a capacidade de dizer não
mesmo sob pressão
a delicadeza de mudar o jeito
apenas para não ferir
mesmo sabendo que a sua
versão era a melhor e mais justa

Porque há uma força aí, muito poderosa
mas ela não se torna agressiva
por qualquer besteira
Isso, por si só, traduz uma delicadeza
interior tão grande
que você não faz idéia
talvez só compreenda melhor
daqui a décadas

Vejo alguns de  seus sonhos
delineados
a força para habitá-los
que se aumenta a cada dia
com talento de sobra
beleza
e resignação, quando
é necessário

Em linguagens fluidas
amigos e mais amigos
de todas as espécies
surgindo de todos os lados
pontilhados em tantos cantos
desse imenso mapa mundi
fico feliz contigo
e pela sua forma de me ensinar
como há outros universos
dentro do mesmo

E  mesmo que eles
não se comuniquem
de forma tão perfeita
ainda são belos e plenos
em sua própria existência
e fizeram por merecer
estar ali

Reforçando a idéia mística
de que filhos vêm a nós
é para ensinar os pais a serem pais
e não o contrário

No fundo,
eu pouco ou nada te ensinei
além do que cabia no básico-papel-de-pai
mas foi no aprendizado de você
desde tão pequeno
suas falas seus silêncios
suas construções para responder à vida
que pude contemplar saídas
Você, meu pequeno milagre
em seus cabelos de sol
capas e asas naquele jardim
E a bicicleta com rodinhas amarelas
e emblema do Super-Homem

Eu, que na sua idade de universitário
não queria ser o mais rico nem poderoso
por isso tinha apenas um sonho simples
como sonha todo aquele que
não se resigna com o que vê
O sonho de revolucionar
a vida das pessoas
fazer com que passassem
a perceber o planeta de outra forma
Sentia em mim
(por fé ou ideologia)
que podia
ser a diferença

Nesse sonho eu seria, então, o cara a
inventar o novo jeito de tornar
isso possível
Um cientista maluco, com
uma fórmula mágica
Um grande herói de guerra
com um rosto marcado
e honorável
Um atleta famoso que
com imenso talento
seria seguido
Um professor imortal
a perpetuar-se no espírito
de seus alunos
Um músico virtuoso
que desistisse as pessoas
das suas vidas pequenas
ao perceberem que era possível
um outro plano

Não segui nenhum desses sonhos
e apesar de eu não me lembrar
muito bem o porquê
creio que no futuro você
saberá me perdoar
Não segui nenhum desses planos
mas quando descobri sem querer
seu caderno de poemas escondidos
(e como eram fortes os versos,
incondicionados, tensos, verdadeiros)
nessa sua letra tão elaborada
senti depois dos olhos úmidos
que aqueles outros sonhos meus
eram menores, e como pai,
por dentro, de alguma forma
me senti vingado

No fundo, acho que
aos poucos fui me acostumando
a não ser o porta-voz
de todas aquelas revoluções
que me habitavam o peito
talvez por cansaço
talvez por perceber
que havia outras coisas
mais urgentes pra fazer
ou quem sabe
ainda percebi a tempo
que a humanidade não podia ser salva

De um lado foi ruim, porque
pacificando-se demais um espírito
nascido para o delírio
periga ceifar também suas cores

De outro,
 talvez tenha sido melhor
para a humanidade
porque em algum ponto
quando as coisas ao redor começaram
a deteriorar a olhos nus

A ciência de que a dor coletiva
pode não ser assim tão fácil de engolir
me transformou por dentro em algo diferente
E então passei a me cobrar menos
ao gostar da idéia
de que alguém desacreditar de pegar em armas
para resolver qualquer questão política
terá sido sempre uma boa saída

Tem gente que chama isso de morte
alguns denominam amadurecimento
(ninguém pode ter dezoito pra sempre)
Eu pra dizer a verdade, acho que
amadurecer é um pouco de morrer mesmo
e talvez por isso fique pensando
que ao menos com relação a você
que é filho, eu gostaria
(aqueles sonhos bestas de pai)
é que não amadurecesse nunca
e continuasse sempre com essa
cara de ingênuo, um ingênuo esperto
bonito e sereno, doce
que finge que não sabe de nada
mas que trai no sorriso tímido
esse jeito de reinaugurar as coisas
à sua própria maneira

Um jeito poeta de viver
que um dia ainda vou aprender