Hólos




I.



Recém-levantados da alcova
                        sentindo no ruído da minguante noite fria
                             ainda
 uma neblina leve que havia
            que no entanto não obsedava os olhos


                                                  Ora,

e por que a dúvida maldormida
sobre a impermanência dos sentidos
quando a vigília resolvia
mesmo sem ser convidada
assumir de vez

por que não saber da contradição que habitava o ocidente
se
desde
muito tempo atrás
quando já éramos gente

até mesmo Einstein

em sua incansável sede de viagens,
já tinha demonstrado
que nossos corpos são, no fundo
esses pedaços densos de matéria
                         passeando lentos no tempo

                                    e que
se isso tudo passasse por uma máquina
ainda não inventada
de desfragmentar luzes
retornando-nos à matriz

viraríamos energia pura novamente
(e quem sabe, mais feliz)
ao podermos nos espalhar por tudo
experimentar todos os lugares
tocar pessoas
viver outras vidas

repovoando o Cosmos
em novas Terras
que seriam conhecidas
em outras dimensões
fermentando-nos em partículas
até novas humanidades

Para a matéria, existe fragmentação
para a energia, não
                     tudo flui



II.




Ora, tudo é possível
Como agora, em que
vivo isso tudo, neste lugar,
a parabolizar energias
uma matéria-em-corpo
os gostos que ele tem
e imagino se alguém mais
repete isso, em outro lugar
noutra dimensão
simultaneamente

                             
                                          E não apenas Einstein,

mas antes dele Demócrito,
e os atomistas gregos


já imaginavam essa dissipação da matéria
contagiando-nos, a todos, da energia mais sutil



                                         Daí, voltando ao assunto

                                                       levantando lânguidos da alcova, ele contemplava


(aura e matéria),
uma ele apenas sentia
outra ele queria tocar       
                                                          
                                       no espaço de um corpo presente




III.



Sim, aquele corpo estava ali, presente
depois de um tempo longe  perdido,

                                                  retornava

e era um corpo sólido, denso, real
estendido de costas sobre a cama
e na falta de outras provas mais cerebrais
que o pudessem convencer, bastava
a textura como evidência contundente
de sua não-dissipação entre as brumas de ar
subtraídas assim sem permissão das frestas das portas



                             legado como antigo pergaminho
                             ainda não batizado, esperando
                             como todo corpo
                             a hora de sua inauguração pelas letras
                             depositado sobre emaranhados de lençóis
                             em cílios semiabertos sonolentos

                              o restinho da remela branquinha que sedimenta uma noite de sono bom
                              surpreendida ainda antes de se terem tomado as medidas de maquiagem da vida
                              e retirada, assim meio sem jeito sorrindo calmamente com a ponta dos dedos
                              apontando de lá a barriguinha que se salienta entre as lisuras de fronhas soltas
                              os cabelos desgrenhados, essa beleza intocada
                              a cara amassada em prefácio de almofadas
                       



IV.



A realidade concreta que somos nós
no baque que sobrou da noite
                             sem escândalo
                                          no cantinho dos olhos

almas são tristes, mesmo involuntariamente
apenas os corpos é que aprendem a sorrir

         essa coisa meio estranha,
             inusitada nesta nossa solidez
                 entre as perdas necessárias do divino
                      e os achados da reles e soberba matéria
                                 que no final, é o que nos (de)compõe

sem as empáfias de qualquer glamour:
melhor decompor-se, como não?
(quem aguentaria o cansaço sobre-humano
da permanência, os entraves calculados
do artifício, a exaustão dos quereres
incompletos?)
viver é um tanto de aceitar essas incompletudes sem jeito
decompor-se e lavar-se, (sim), vestir-se
com os adornos do dia
sem o peso do olhar do outro
a nos embaralhar em superfícies




V.



Como dispor-se inteiro em vida
sem alguém sentir no peito
o efeito dos sonhos não-lúcidos
de uma mulher em noite de lua ?

Por um acidente de felicidade
Teu olhar não se tornou o meu
mas me absolve dos meus pecados
(mesmo os ainda-não-cometidos)

O que importa agora, quando um dia resolvi sair
um pouco de mim, (esse exercício tão raro)
para ver como  é tudo confuso lá fora:

talvez retomar
a vivência do bom, do gostoso amaciar de corpos
sua pele absorvendo meu imenso ego
(isso que me custa tanto admitir)
dissolvido sem sofismas
porque amar é coisa simples
no fundo:
ama-se e pronto !
não há forma nem jeito
                       pré-concebido

Minhas imperfeições
partilhando as suas
e elas juntas tornarem-se uma coisa maior
e mais palpável

                         má ou boa, sobretudo humana

Além disso
uma vida sem discursos
coisas simples
a novamente redizer ao dia
quão exageradamente complexos somos nós
mas como é tangível
e bonita a simplicidade
tome nota:
                                                               
                        geléia com torradas

apenas um cafezinho quente trazendo lágrimas à língua
solzinho bom nos dias mais frios,

café fumaçando cheiroso
enquanto a substância não se ativa
no sangue
(café quente é habitar outros mundos)
                                                                         

e ver o dia surgindo para ressalvar em brilho a relva ainda molhada
de toda uma nova esperança para o planetinha
a habitar entre meu abraço e teus longos cabelos amassados
com aroma de alecrim em tuas peles de lençol



VI.



O valor do beijo
com sabor de manteiga
e geléia de morango
depois do café
sem ter tido tempo
de escovar os dentes

rir com o rosto ainda inchado
o sorriso desses seus olhos japoneses
que vêem melhor
no sedimentar do tempo


                                                                                          o abraço devassado com risadas
[e risadas são plantas de cultivo]
                                                                     assim, risadas bobas, coisas sem motivos
                                                   tiradas como pequenas criaturas autônomas
                          que não estranham quando subitamente surrupiadas do colo da mãe

risadas
que se fossem reveladas em suas raízes superficiais
(como superficial é toda alegria)
correriam o sério risco de perder a graça



VII.



Esse afastamento de introspecção é tão necessário quando giramos na roda sem ocasião para nada que nos desinvente de uma certa rotina. Isso tudo é tão intenso em relação ao modo pouco de vida da superfície , porque uma vida não se resume à fórmula de sua previsão, ostentação, troféus nem existe a hipótese de se explicar o todo pela mera soma das partes. -- sempre sobra um pedaço  quando queremos nos encaixar novamente na mesma peça depois de partidos --

mas

mesmo assim essa casquinha de possibilidades contra as faces das probabilidades o que se vive da vida é aquilo que ela deixa escapar sem querer ao grande massacre de viver

o brilho que se vê são frestas,
                 o sabor mais doce
                                     daquilo que escorre entre dedos.
                                                                  Lambo as mãos, então, para aproveitar melhor o caldo das coisas.

A exaustão de uma vida que não é bem a minha,
e eu a vivo há tanto tempo que nem sei mais
talvez propagandeando sem saber
algo que nem mesmo cheguei a ser
quero nada de retumbantes fórmulas
quero nada de mirabolantes cúmulos
apenas a simplicidade de ser eu mesmo
e fazer aquilo que me apetece sem
precisar me justificar

algo que não está em outro lugar
mas aqui

ser ,
sem precisar machucar ninguém
se acaso meus valores são assim
mirabolantes ou buscam em angústia
sem ainda achar lugar a sua visão de mundo
assumir ser não um ser moral, mas ético até a raiz dos cabelos
ser não um ser de ceder por dentro às regras de esmagação
mas ser sempre aquela força recalcitrante, um dizer não
ao que não vibra junto com a naturalidade da vida
e que o sistema do mundo nos tenta impingir

sou no fundo vaso quebrado que não se junta à cola
quando me tentam colar algum fato ou momento da vida
é apenas para perceber que, catados e juntados os pedaços
e cuidadosamente remendados
esse vaso nunca fará uma peça inteira
sigo retalhado e costurado à tosca mão
como o casco de alguns bichos
que parecem esquecidos por Deus


sendo assim, a a vida vivida é muito mais que sequência de eventos em soma
e  o aroma
           resvala  porque, mesmo não  tendo olfatos perfeitos,
                                   conseguimos espreitar o que ainda não
                                                   quando  no inhantes de se tornar coisa

a nata descansa feito receita de bolo ainda não assado
descansa o afeto enquanto júbilo  contido  no fundo do coração
a despeito da grande mão zelosa de não deixar passar felicidade para o lado de fora.
É preciso agitar a mistura, para que ao fim surja a goma espantando a morte

Como boa mão de sorte, todo jogo permanece sempre egoísta em suas chances, replicando blefes
extenuando nuances

mantendo em suspenso o corte final antes do desvelar dos sentimentos antes mesmo deles terem se decidido entre dores ou prazeres, enfim, todos ainda quereres
e como desejos que se eternizam, bichos bravios a que não se impõe a doma
sem colher sortilégios

nisso tudo é que se insinuava sorrateiramente a falta de solidez dos propósitos
fossem eles coisas realizáveis através dos braços, fossem simulações de vontades anêmicas
fossem apenas confusões inexplicáveis de retalhos de vontades dirigidas a alvos equivocados
fossem nada disso de ruim ou estabanado, mas apenas uma confluência de impossibilidades no tempo

só faltou um pedaço de terra a conferir solidez e sobre o qual não se insinuasse qualquer posse fantasmagórica

ora, dizer

algo sobre a coisa estando-se em confecções de poema
é estabelecer com ela uma relação mas ainda não
explorá-la nos últimos liames não é evoluí-la pra além de si mesma, fazendo-a encolher-se e esticar-se até perder as forças

só faltou um pedaço de terra a conferir solidez, porque no fim todos somos assim meio índios quando nascemos, temos essa coisa umbilical com a terra que nos rodeia nos envolve nos amortalha quando chega a hora, e por que vivemos ainda a maior parte do tempo dela separados depois de mal ou bem-nascidos ninguém sabe ao certo afiançar, mas ainda assim colhe os efeitos espúrios de ter sido apartado contra a vontade do seio primordial

e tristemente depois vai-nos sendo cortado aos poucos ou no súbito açoite da faca sem gume
à medida em que cada cotidiano se revela apenas um novo tipo de parto

uma expectativa de que
(se não houver outro liame)
que ao menos haja lume
ainda que vago

                                   

VIII.



Vaso quebrado, sim-sou
a que não se tem a fórmula
código pra sempre perdido depois de partido

pontas e mosaicos, cerâmicas de diversas cores
diversas tramas, diversas densituras e cronometrias
cada uma com sua assinatura, seu feitio, seu achado

peça em desalinho a que se dá o pretexto de solidez e unidade
apenas por capricho da vontade, porque as colagens intentadas
apenas engendraram  , em artifício,
                   um corpo que não se reduz às suas partes

o jogo do mundo reduz destinos
à forma que lhe falta
ceifando sobras
preenchendo falhas
Na ida uma completude se racha
para caber
Na volta os pedaços
se perdem

Eu me perco
sempre
E é você quem me traz a mim
novamente quando teus olhos
me põem em ganas de te querer
E todas as minhas arestas espalhadas
reunem-se no desejo de você
uma vez mais

Uma noite esquartejada
vale uma eternidade
Um bicho em pedaços
pode saciar muitas fomes
Uma planta repartida
pode valer muitos pratos
Mas um homem fragmentado
será sempre meio
(Ou menos)

Do contrário,

Fragmentos flutuariam
               à tona desse mar bravio
afastando-se sozinhos da costa como
novos barcos movendo-se ao próprio vento
afastando de vez como a burocracia da sã consciência
Mas não é o que ocorre (como me informa do peito
o músculo incansável que reconvém as horas)
Não se trata mais de ser meras divisões sem rumo
Não se trata mais de tentar reuni-las a ferro e fogo
Sob as ordens do monstro unívoco de qualquer razão

mas sim

trata-se, na verdade de dar voz a esses múltiplos
que habitam, cada um com sua cor
cada um à sua maneira o mesmo espaço
quando nele surgem por diferentes máscaras

faces coloridas
no fundo,
pressupostos de vida

se existe a necessidade do outro
seja fora, seja dentro
Não uma máscara -adereço
não uma máscara de conveniência
A máscara ritual que nos constitui
em nossa multiplicidade, que põe em campo
os arquétipos das forças que habitam em mim
quando não quero mais ser cartesiano
e naquele momento houveram por bem
expressar-se daquela forma
-- seja sorriso, seja careta --


IX.



Se sou poeta, não posso ser mais apenas um
é da destruição do mesmo
e do abandono da busca equivocada ao unívoco
é em suma da perda de identidade
que se criam os versos mais verdadeiros

ser assim, deixando de ser identidade
mas assumindo numa integralidade múltipla
os fragmentos de tudo que me compõe
não resumindo os atributos a um nome
mas chamando cada um por sua própria voz
a cada um o quinhão que lhe pertence

Hólos
esse teatro de máscaras em ação
não necessariamente harmônico
de muitas vozes sem um senhor
a compleição anárquica das vontades
é que pode ditar a ordem do dia

se uma delas der o tom
o conjunto desafina
se todas cantarem juntas
não se acha o rumo
a senha só vê saída
na fluidez das formas

a delicadeza e a força
dessa partitura
está nas mãos do que
só vem à tona
quando o mundo canta

árvore prolífica que sementeia
vira outras, cada parte
um novo conto
como palavra em verso
que soando incendeia

pulverizar o homem
é extingui-lo de vez
sem sequer permitir-lhe entoar
a voz que o norteia

na falta de espelhos
(partidos todos
por um ato  incontido
da vontade)
é o teu corpo-aqui
quem
me diz o que sou
O que fui
O que vou




X.



Abandonando fantasmagorias ao lembrarmos de um chamado
a Terra
à terra
aterra


                                                                                        a necessidade do homem-barro
                                                                      do desvelo-índio, do plantio ermo
                                             do espera-chuva, do acolhe-sol
                           do feliz-se rios, do chorar-se luas


assim, tudo-meio-mato-agora
minha natureza prevalente
capim mascado entre os dentes
o corpo querendo sofrer mais nunca
os esforços da civilização

os pés fincados firmes no chão

é essa, a minha
               natureza de espreitar a vida por
                           entre as árvores, absorvendo
                                         com a pele os prantos de chuva
                                                                                faíscas solares





XI


cachoeiras aguardando no remanso
abaixo, água fria a correr sobre a pele
como lembrando à linfa que vai por dentro
do devir , do fluxo, do retornar por alguma
forma à origem, aonde se fazem todas  as águas

A Urgência
de voltar a ser inteiro

                                                      em algum lugar, uma hora voltar a mim
                                                      a mão cheia de terra entre as unhas
                                                      subindo em árvore sem corda
                                                 
                                                que vida seria a vida sem alguém
                                    colher uma vez ao menos
                       uma vez a manga verde no pé




XII



Em fuga, todos nós
porque é no escape que se confluem
as sabedorias de si
criaturas em constante  escapada
das ruínas estampadas pelas cidades
esvaindo-nos de continuarmos os mesmos
apenas esses seres diluídos sem história
(pedaços repartidos podem ser bonitos
mas são insuportavelmente
dolorosos)

voltando a ser um,
(e isso é uma luta interminável)
sabendo no seu interior os muitos
porque se o mundo me divide
é apenas em ti que me acolho aos pedaços
sem reificar meus conteúdos
Revoltando ao limbo para nascer hólos
sem outros juízos, sem vidas repartidas
que atentam contra qualquer lucidez

eu nós assim
tua fala, meu gesto, uma só natureza
minha inteireza, geografias do que não ficou para trás
se há céu, plantas se ainda há mar
seremos sempre em dois ou mais
(rodeados de tudo que há)

tornarmo-nos por dentro
o que andava fora de nós
(e mais um pouco)

a presença da terra ao fundo:
jamais estaremos sozinhos
retomando enfim e aos poucos
a tudo que era nosso,




                           e em algum momento se perdeu













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extraído do livro de poemas "Os dias", (2010-2015)