As Mãos

Não saía à rua sem que passasse pelos portões a tatear grades
volumes, desenhos e as assimetrias das texturas e paredes
Dizia que as mãos é que sabem a história das coisas
que não precisam explicação, as coisas mais importantes
que jamais  são cerebrais
porque vão direto ao coração

Às vezes ela fazia isso de olhos fechados
às vezes não

Deslizava as palmas das mãos sobre o capim pendulado no campo
sentindo o veludo verde dos brotos e sementes
ainda não levados pela brisa

Gasturava-se na grama baixa e picante nivelada do jardim

Levantava a mão  direita no ar
(a esquerda segurando as rédeas)
em dia de ventania e o galope bom do potro malhado
navegava ligeiro contra a formação da próxima tempestade ainda a ameaçar

Mesmas mãos que no vento também se molhavam quando ela viajava pra muito longe
fazendo anteparas engraçadas à resistência do ar
(era como se existisse alguém do outro lado a resistir)
Uma outra mão, do lado de lá
das janelas dos carros, dos ônibus, dos trens
e do avião que só não fez porque não a deixaram

Mergulhava as mãos nas geladas águas quando andava de barco no rio calmo
de fundo negro, superfície completamente obsedante
de qualquer luz

Mergulhava os dedos leves sobre o pelo alto e fofo dos cachorros
afobados que a recebiam sempre que chegava à tardinha
em casa -- entre pulos, arranhões e línguas

Flutuava as mãos pelo táctil do veludo azul  das almofadas
do banquinho do piano, do ocre tapete felpudo debaixo da mesa de jantar
e no arrepio elétrico por todo o corpo sentia estremecendo algo por dentro
diferente, mais intenso, os olhos se fechando quando a boca semiabria-se
em um desejo de mais um pouco daquele toque

Enfiava as duas mãos , assim meio sem aviso, na areia fina e branca das manhãs
de praia, na parte batida pelo mar durante a noite, amassando aquela poeirinha
--quase um talco-- que mora nas superfícies sólidas de beira praia

Catava conchinhas não apenas por colecionar,
mas sim para sentir suas texturas exóticas de infinitas cores
as pretas ou azuis escuras eram às vezes mais rajadas
em perfeição de desenho divino de algum cinzel oculto
ramificando geometrias em linhas sobre as costas
daquilo que já foram pedrinhas em outras vidas

Seguia as ondulações, estrias e lisuras, uma por uma
duas por duas, algumas delas eram bicolores, outras múltiplas
umas eram lisas, outras extremamente caracachentas
e com as pontas dos dedos ela descobria suas histórias nuas
antes nunca reveladas por quem viveu tanto tempo no mar

Anelava-se em palmas nos cabelos das pessoas, por puro gosto
de vê-los ora se desembolando sob a leve pressão dos dedos
ora anelando-os mais ainda, apenas para vê-los desfazendo-se
em seus breves cachos imaginários logo em seguida

Afundava-se em cestos de cereais expostos nas feiras
arroz, feijão, milho, e outros grãos, secos e perfilados
naqueles sacos de aniagem colocados ali apenas
para esperar sua passagem

Navegava com as palmas bem abertas sobre as carnes das coisas
para sentir através da pele seus respectivos esqueletos
as pontas dos ossos recobertas por camadas leves e mágicas
de gordura, de pele, de pelos

E enquanto navegava assim, dissoluta, com suas mãos rendidas ao simples desejo
Sentia, então, sob sua sensível palma, a textura dos pelos se arrepiando aos lotes
poros e tremores

                 que enchiam-se de flores