Da solidez das águas (ou: na chuva com cachorros)



A conquista de um certo tipo de solidão:
minha vitória mais importante
na vida. Como renegaria assim
esse meu pequeno diamante
esse status que tão bem e de forma
tão completa me restitui?

A liberdade de estar com todos
aqui, ali, em horas pares
e nas outras horas estar em ímpares
só comigo mesmo
sim, solo, como na chuva
que cai neste fim de tarde 


Silêncio precedendo trovoadas
e eu aqui, aguardando na ansiedade
as primeiras gotas e elas vêm largas e densas

Todo mundo saiu, agora somos apenas eu e os cachorros. Ando muito com meus cachorros ultimamente. Uma espécie de reciprocidade e de identidade múltipla. Sou um pouco cachorro, mais do que eles são gente. Acho que eu os invejo, na verdade. Mas eles também são um pouco gente quando querem. E largam mão dessa opção besta quando estão de saco cheio e querem voltar a ser cachorros de novo e gozar em plenitude dessa liberdade que não assiste aos humanos. melhor pra eles.

Eu e os cachorros em casa, trovejando forte e a moçada toda na rua. Essas criaturas abusivamente carentes que demandam atenção o tempo inteiro e são capazes de trocar até um belo bife por um cafuné a qualquer hora do dia.

Tempestade
            comendo solta,
                            eu no escuro do quintal
                                                     lampejado de quando em quando por raios.

boca aberta, olhos fechados  e bebendo toda essa água caindo do céu junto com cerveja gelada e limão, inspiradas micheladas pra hidratar, rodeado por essas duas bolas de pelo completamente ensopadas que não param de pular e uivar também enquanto o som alto poca no hipergrave das quatro caixas lá do quarto. Batidão eletrônico ao fundo grave de trovões... uma autêntica dança da chuva, no melhor modelo dos ìndios Navajos.

Todo mundo saiu,  feriado e calor, eu sem saco pra ir a lugar nenhum: todos na praia pela manhã, no shopping à tarde, calor retumbante e eu celebrando trovoadas no quintal. não aguento mais morar em cidades. quanto maior, pior. preciso do mato, nasci no mato, cresci no mato, o mato está em mim. só sou eu mesmo quando estou no mato. cansado de shoppings, entediado de praias poluídas, repudiando essa cidade caótica e todo tipo de asfalto e concreto onde só louco cai de cabeça, e mesmo assim com muito aditivo na mente. aprendendo a contemporizar e buscar assim outras paisagens mais profundas que não estão mais aqui fora. a sorte da chuva. sim, sorte quando chove. a chuva me rouba alguns infortúnios e me restitui a mim.

cansado do asfalto,
                da individuação triste desse movimento,
                                            tantas células perdidas de nada, naufragando sorridentes entre vitrines, cheiro de castanhas e sorvetes industriais.


bom mesmo era estar hoje no seio da floresta abraçando árvore, tirando manga do pé
                       mas na falta,
                                 estreio a unidade vitalizante de misturar comigo mesmo cachorros, plantas ,chuvas e todas as criaturas mais.

 Depois de uma curta ventania boa, vento frio contra a maré excessiva de calor, os pingos largos no chão, junto com uma sensação zen-budista molhada de que somos todos uma única coisa , no final das contas. sou um pouco cachorro, um pouco samambaia, e eles são um pouco de mim também. principalmente quando molhados na tempestade, felizes e pulantes. ontem falei sobre a impermanência, hoje falo e penso sobre a perda desse "eu", o indivíduo, uma diminuição necessária do ego narcisista para que se permita ao corpo sentir a vibração das outras coisas soando juntas. na chuva isso fica mais real e intenso, cristalino a ponto de socar a cara em porradas macias de uma outra consciência.

Dessa rave inusitada da qual vão me restar depois muito trabalho de toalha pra secar a mim mesmo e as criaturas ensopadas, uma crise de rinite me aguardando para o dia seguinte e uma sensação enormemente feliz de pertencer a um outro mundo onde eu também não sou mais apenas sólido e liquido mas guardo também um tipo qualquer de evanescência tudo ao mesmo tempo.

Estar na chuva sólida de um temporal, (coisa que vivi feliz numa época de menos preocupações onde passava tardes e mais tardes inteiras jogando futebol das duas às seis da tarde, todo santo dia, com chuva ou sol), é entender de um outro tipo de companhia. Há um preenchimento dos espaços do ar com gotas do tamanho de laranjas dessa chuva de verão e nenhum intervalo fica em branco, nenhum espaço do mundo é vácuo e assim preenchem-se os interstícios entre um verdadeiro eu -- não apenas aquele que a vida social impõe --  e as coisas, e por alguns instantes tudo vibra com um som só, como sendo uma coisa só. Ainda mais se a música estiver alta e boa. somos mesmo tudo uma coisa só, eu, a chuva, os cachorros e esse monte de plantas molhadas.

Uma solidão que é desejada mais que tudo, essa. uma solitude buscada, cultivada e reverenciada, acompanhada em sua não-fuga do mundo nem qualquer tentativa de mascaramento mais, seja com que subterfúgio for. A missão é, ao contrário, afastar-se do que de fato lhe tira a solidão sem trazer nada em troca.  Estar em todo lugar, agora, no domínio de si, e mesmo assim manter a chaves de ouro a própria solidão. Uma conquista quando se percebe que surdar os ouvidos a um determinado som faz com que você consiga ouvir em plenitude tudo o mais. Fechar os olhos a uma determinada cor, faz com que veja o conjunto das cores , e da mesma forma, renegar o conjunto de algumas artificiais vivências sociais faz com que veja no infinitamente grande mundo ao redor um monte de elos que antes não se percebia. O mundo está cheio de vida pulsante que nada tem a ver com a nossa própria raça. É só abrir os poros.

Á noite todos retornam felizes da volta ao mundo, e eu também retorno feliz da minha entrada num novo mundo, há um encontro feliz deles trazendo de volta brilhos nos olhos de uma vivência partilhada na urbe, e eu chego trazendo comigo a companhia daquelas boas coisas que sempre vêm a mim com a chuva. Porque sim, a chuva quando me ensopa desde os cabelos aos dedões dos pés, uma chuva estival de desbarrancar montanhas, encher rios e afundar navios --tudo fotografado pelos intensos flashes dos deuses a cada trovoada -- eu dando risada, os cachorros uivando, as samambaias seguem rindo depois de uma longa estiagem, molhadinhas e felizes. Eu sigo portando a leveza das coisas que foram incorporadas em mim de novo assim como eu me diluí no meio delas.