Cotidiano 10


tocada morro abaixo, quem me leva é o cão
pretexto fingir que o conduzo, de alguma forma
cinco metros, parada estratégica . levanta a orelha
parece captar alguma coisa que não está aqui
mais cinco metros, estaca, mijada no poste
não sem antes cheirar como quem lê uma carta
deixada para trás por alguma outra criatura da raça
um adversário intimidando um futuro rival que
ainda não conhece, apenas pra marcar território
quem sabe uma cachorra desesperada deixando
uma apresentação e um convite de boas-vindas
na pracinha, a cachorrada solta na área, latidas
ameaçadas de fugir da corrente, como se essa
criatura que está na minha mão se metesse a
algum feroz cão de guarda. até olho ele de novo
pelo arrupiado, bravio no elástico, dentes pra
fora de um jeito que nunca vi. poco fora pra
não dar mais trabalho, salto de banda e surge
logo um besouro verde, uma esperança, um
gafanhoto? acho que é um besouro mesmo,
só que verde. e grande. o cão primeiro chega
devagar, sonda o espaço, dá uma cafungada
no alienígena, dá um rosnado, e com toda
ousadia depois chega mais perto e tenta dar
uma lambida. desapontado depois porque o
objeto de sua curiosidade não corresponde a
tamanha empolgação, e quem sabe lá, o bicho
parecia ser meio fedorento, ele me puxa de
novo e vamos parando de árvore em árvore,
de poste em poste. ele semelha estar arquivando
alguma coisa, pelas caretas que faz, acho que
tem muita informação em byte s e mais bytes
de códigos perdidos nessas cartas líquidas
e aromáticas que ele vai decodificando no
caminho. de vez em quando uma porcaria
no chão, chiclete, balas, restos de algum
lixo descuidado, tome puxão de coleira
para uma senhora, que gracinha, toma um
cafuné fora de hora, fica todo bobo, olha
pra mim meio de soslaio, tá vendo filhadaputa
nem todo mundo fica me dando esporro
cobrando isso cobrando aquilo me regrando
pra poder passear, me impedindo de entrar no
jardim me impedindo de entrar na sala e
pegar as almofadas, chega a moça bonita
ela também com uma cachorrinha felpuda,
pelos clarinhos, não lembro bem a raça,
meio miudinha, fofinha, mais pelos que
carne, e papo vem papo vai o infeliz pega
na perna da mulher, inicia os rituais proibidos
pra essa hora na cidade, corre atrás da cachorra,
quer deixar sua geração na Terra pra outro
tiozão querer cuidar, paga mico, paga geral,
e temos que sair os dois um com a cara
vermelha outro com cara de medeibem,
já vou suando pela rua, que raio de cachorro
forte pra puxar coleira, já com o braço
doendo chegamos na Costa Pereira, o que
mais tem naquela praça é pé de árvore
cagado, valha-me deus, valha-me prefeito
e secretários, que praça estratégica e bonita
mas tão mal cuidada, daí tem os moradores
de rua que estão sempre por ali nas sombras
do Carlos Gomes ou debaixo das imperiais
da pracinha, eles são legais, ele parece
me dizer, fazem cafuné gostoso, deixam
a gente correr na grama, e têm também
sempre outros colegas cachorros bonzinhos
que a gente nem precisa morder todas as
vezes que vai lá, bate cansaço, bateu
quase arrependimento, mas fazer o quê
temos que levar essas criaturas pra ver
o mundo, mas agora já cansei, bora voltar
subidão no caminho, pegamos caminho
invertido, subindo pela sete, mas antes
pracinha de novo, desta vez  molecada brincando
de pique e de bola na pequena quadra.
da Ubaldo Ramalhete, haja tanta criança
surge logo o moleque correndo atrás da bola.
o cachorro quica mais que a bola,
também quer ser bola, e e pula e late,
e endoida, e quer rir, mas late, não sabe mais o
que fazer com aquela bola. vem o garoto atrás
da bola e ele fica todo dengoso com o garoto
quer lamber as mãos, pular no colo, ele deita
no chão imundo daquela praça com a barriga
pra cima e quer que o garoto faça cosquinhas
acha a coisa mais mágica e poderosa deste mundo o
fato de existir um garoto capaz de ser dono
de uma bola assim que quica como a vida.