A vendedora de cocadas do Parque Moscoso



Crianças e velhos sob as sombras salvadoras de um dia quente
Reflexos no velho lago de cimento azul com sapos e garças artificiais
Os olhos sangram enquanto passo a vista nos jornais
Sem saber ainda ao certo se enquanto eu leio os jornais
Se é  mesmo para ficar ou continuar perplexo
E assim alimentar esse outro tipo de realidade
Um vício tóxico em adrenalina e notícias ruins
Para, inconscientemente, fazer minha própria catarse
E perceber, em algum momento, que habitamos
Uma espécie de paraíso, se por acaso, você
Até essa hora da manhã de uma quinta qualquer
Ainda não foi atropelado, assaltado, perfurado por balas
Ou mordido por algum cão raivoso 

Não sei se procuro isso, ou  no fundo, 
Como o bom menino criado pela minha mãe
E influenciado, ainda que pouco, por aquela
Velha e estranha inafiançável confiança na vida
Ainda busco alguma esperança humana ou espiritual
De que uma hora possa surgir algo diferente
E que as notícias estampadas em manchetes
Possam ter quem sabe um outro sabor

Ao lado, todo tipo de gente, velhos, crianças
Babás e jovens mães vigiando os pirralhos
Na areia, nos balanços, na algazarra típica
Será que eles ainda  não sabem que o mundo acabou?

A garota se aproxima, eu não sei bem de onde veio
E me oferece cocadas baianas na bandeja
Me surpreendo um pouco com isso, nunca a vi
Por aqui antes, e nem mesmo imaginei
Que houvesse cocadas baianas nesse parque e ainda
Mais vendidas pessoalmente, como se fossem picolés
Calça rosa, camisa de malha azul marinho
Cocadas brancas de leite, cocadas queimadas
Cocadas de Maracujá e Macadâmia
O perfume da garota contagiando os doces
Ou eram as macadâmias que habitavam seu sangue

O rosto rosa choque no sol forte de tarde-dezembro no Centro da cidade
Os cabelos presos em coque samurai, um castanho-claro irisado, luzes
No rosto liso, entregando a idade, uma mecha anarquista que se insinua
Colando-se em traços de suor sobre a testa de idade universitária
Há uma dignidade e uma maldição nisso tudo, sinto depois do baque
Uma maldição real e uma dignidade fictícia, uma maldição fictícia
Não sei bem, seu cheiro me confunde, e o sorriso me faz querer comprar 
Todo o estoque de cocadas que ela carrega naquele tabuleiro de alumínio
Tem alguma coisa no jeito como ela anda, no jeito como faz o marketing dos doces
Que antes eu nunca tinha reparado em qualquer vendedor de rua
Era como se aquelas fossem as únicas cocadas que pudessem ser vendidas
No Parque Moscoso, aquela a única vendedora e tivesse alguém filmando tudo
E eu não consigo saber exatamente o que é que me chamava mais a atenção
Se as virtudes dela ou meus defeitos terrivelmente arraigados de olhar

Dignidade, é a palavra. Seja pela presença ou ausência dela
Dignidade na atitude da garota, e falta dela no meu olhar vadio
De um tiozinho à toa desolado com as notícias de jornais
E encantado assim sem aviso, por uma fagulha do mundo
Que de repente escapou do meio do inferno maldito
Que nos habita em tantas desumanidades cotidianas

Como tantos que saem cedo de casa para tentar a vida
Zilhões de crianças nos sinais vendendo bugigangas
Multidões de senhoras com bíblias e assemelhados
Velhinhos em muletas vendendo acessórios para carro
E, como de encomenda, me vêm à memória seletiva 
Apenas as qualidades da jovem empreendedora
Trabalhando neste tempo ardido para segurar a barra

O olhar já contamina o objeto na mera expectativa,
Diriam os antropólogos depois de estragarem tantas pesquisas
Maldição, talvez seja melhor definição
A beleza explosiva desse rosto rosa e suado
Sua calça rosa e justa, delineando tantas curvas
E esse sorriso, que mesmo sendo de conveniência
Mata mais que o vírus da peste
Tudo isso me faz quase esquecer dos velhinhos,
das crianças nos sinais e de tudo o mais
E, depois de uma consulta rigorosa aos meus
Próprios fundamentos, percebo mesmo que já
Não sou assim tão marxista anarquista antropófago
Há pelo menos vinte minutos

Eu já abandonava meus discursos salvacionistas da raça humana
Me perdia entre minhas leituras e os signos da vida
A presença da garota, afinal, era a mais pura dignidade
Ela personificava o discurso dos trabalhadores uni-vos do mundo inteiro
Para reverter a ordem das coisas e perfilar um planeta justo
Ou isso não passava de maldição e desejo brutos, eu tomado pela beleza
Da criatura brilhando em seu suor de macadâmias numa tarde quente
E maldita de uma capital maldita qualquer do mundo humano sem esperanças

Dignidade! penso primeiro, em minhas convicções
rejeitando impulsivamente os instintos abomináveis da raça
porque sua beleza e sua atitude tornam mais bonitas
e mais poderosas também, num sentido simbólico
todas as outras  vendedoras de cocada 
que já pisaram no planeta
sejam bonitas ou nem tanto, todas donas
de um certo tipo de beleza arraigada no agir
e enfrentar o sistema para garantir o sustento
de suas famílias

Maldição, sim, é claro! sejamos honestos
porque quando o desejo vem à tona, não
tem teoria que dê jeito na humanidade
E porque o lugar dessa garota, como de resto,
(já filosofava o sentido moral e estético) 
aliás todas as garotas nessa idade, não era aqui
a esta hora, vendendo cocadas
e sim numa sala de aula ou noutro projeto de vida
menos ganha-pão e mais esperançoso
(como se eu fosse daqueles a apostar em esperança)

Como se fosse possível alguém sair por aí às tardes quentes
da vida a alardear a dignidade potencial que instila um sistema
que sequer tem qualquer noção do que isso venha a ser
No mesmo mundo onde quase todos se prostituem de alguma forma
(algumas, mais intelectuais ou glamourizadas, outras nem tanto)
para simplesmente terem o que comer , alimentar suas famílias
provê-las nos frios invernos , nas doenças, ter alguma perspectiva 
de vida, e ainda assim fazerem a propaganda de suas honradas
funções na estratificação medonha que nos habita em castas

Dignidade! sim, retorno ao sentimento anterior
salvo agora pelo gongo
Como uma palavra doce-de-coco para tentar
escamotear o sistema, usando e abusando da idéia
tão desvalida de que basta alguém trabalhar
--não importando quão exploratória seja 
a atividade -- 
estará tudo bem redimido 
perante os santos capitalistas
que assolam e desolam tudo
porque há muito o mundo se quedou mudo
desolado em espírito pela frieza das ciências
desolado em matéria pela simplicidade do 
gesto repetitivo em corpo e mente
das novas prisões

Maldição! o espectro da garota nesse local nessa hora
e o doce suor de macadâmias que ela exalava 
a beleza do instante, que mistura maldição, virtudes e destino
quando bem à minha frente, numa pracinha chata modorrenta
cheia de fedelhos barulhentos, velhinhos desanimados em suas boinas
dominós e folhas velhas de jornal retorcido
em meio aos jacarés empalhados, garças de metal e sapos de louça
sobre tanques de cimento que celebram muito mais o
fracasso do sistema do que qualquer Vitória

Dignidade
A garota era uma espécie de avatar, um vórtice temporal
ou quântico, a transportar por sua pele, suas mechas ao vento ralo da tarde
(bem que eu reparava não ter visto de onde ela saiu agora há pouco)
mas o que ela queria me dizer, no fim, sua presença tão violenta, inafastável
que a coisa toda ainda valia a pena, se ela mesma se submetia a essas provações
(uma espécie de jesus ultramoderno e mulher, é claro, pela força que isso tem,
tentando me reconverter ao se predispor enfrentar esses desafios todos apenas
para reafirmar o poder da vida), isso tudo apenas apenas para chegar 
ao final do dia com uma estrutura mínima de prorrogação da própria vida
ou, ao contrário, eu é que já estava com sol suficiente na moleira de uma tarde quente
vendo anjos e santos flutuando por aí em pleno parque portando tabuleiros
ela podia muito bem ser o contrário de tudo isso, uma perda de esperanças
uma espécie de bomba de tempo, a visceralmente provar com sua presença
que todo o resto era mesmo uma merda, e com parquinho ou sem parquinho, a roda
hereditária de maldições não tinha qualquer esperança de mudar para melhor

Maldição
De uma hora para outra percebi espantado que eu na verdade já me tornara daqueles
que acham tão normal uma velha uma criança um paralítico um cracudo nas esquinas
da vida vendendo ou roubando todo tipo de coisas, fazendo caretas e esmolando dores
que exatamente por isso me sentia chocado agora quando essa criatura linda e cheirosa
me aparecia do nada com um bandejão de doces nas mãos, eu leitor de jornais compulsivo
já me tornara por dentro a morte de qualquer ser vivo que ainda respirasse humanidades
e por causa dessa exata falta de qualidades que através dessa modorra anestésica eu
me revoltava por conta de ver a beleza, enfim, -- beleza para meus olhos viciados --
ter que se ajoelhar diante da dureza do real. Bem-vindo ao inferno do real,
como já dizia o filósofo

Desisti dos rótulos, abdiquei de vez dos conceitos
Porque de repente surgiu essa criatura em sua forma anárquica, irredutível
Ela me confunde de tal maneira, que mata em mim o filósofo que não busca mais conceito
Mata o político, porque não há sistema que possa resistir ou se propagandear diante da beleza
E também (sabem os anarquistas), que todo governo quer tiranizar, não importa a bandeira
Ela mata em mim o cientista obcecado pela organização justa do mundo, porque mostrou que tudo
Que governa a vida compõe-se do mais denso conteúdo aleatório, sem qualquer previsão
E com ela adornando suas cocadas coloridas, explode todo o meu mundo ao redor

E, numa final convulsão calma de contemplação invasiva, eu
Decididamente abandono os discursos mentais de ativismo contra o sistema
Abandono ainda que por pouco tempo (eu sei), um certo ódio latente
Da configuração do mundo ser essa mesmo, e há tanto tempo
Que é preciso se tornar um jovem de vinte anos novamente, a cada dia
Toda vez que você sai de casa pela manhã, para não ver a vida morrer
de inanição, de raiva, de dores evitáveis ou de abandono consentido
pelos cantos miseráveis das retinas 

No meu sangue encharcado de Platão desde sempre, é claro que a beleza

não importa sua origem ou discurso, terá sempre o status da mais nova verdade
porque é bela, verdadeira e no fundo representa tudo que há de bom
e não passa pela cabeça em nenhum momento que atrás dessa aparição
resida ainda algum traço de maldade, que ela possa estar matando
alguém de inanição, que possa ter roubado as cocadas de um menor,
que possa bater na mãe ao chegar em casa cansada e possessa, à noite
e mais outros pequenos defeitos inerentes que podemos atribuir às criaturas

Enquanto Jekyll e Mr. Hyde tergiversam em mim a moral dos intentos, acho
que é mesmo uma outra força que sustenta os movimentos, quando percebe
 que , contrariando veemente os gregos , não há mesmo qualquer causalidade
entre aparência x essência, e isso significa dizer que , quando o desejo bate,
foda-se qualquer noção moral da história. Toda lógica e argumentação
será sempre tecida e torcida para se sustentar a vontade em parâmetros de verdade,
embora isso possa ser a mais deslavada mentira se tentando passar
por honesta. A humanidade não tem saída, lembro, e qualquer opção
se dá sempre pela fala individual, onde as garras de uma coletividade torpe
nem sempre encontram terreno fértil para se entranhar

A fala fluente e rouca, o riso meio tímido, o doce daquele doce
Me convencendo da importância dos sentidos para a certificação do mundo
E a certeza clarividente de que era ela quem dava sabor ao doce
E o doce recuperava o sabor (perdido ,amargo, nocivo) do mundo ao redor
No fim me esqueço de tudo isso, depois de me empanturrar de cocada
e ainda comprar mais um pacote pra levar na viagem
Que moça bonita essa,valeu o passeio contra todas as amarguras
estampadas no jornal, e a tal cocada ainda era
uma delícia, enquanto os doces me assumem o sangue, 
penso já com aquela nostalgia sobre quem essa vendedora de cocadas
de macadâmia de rosto liso e calça rosa amou, ama ou vai amar um dia, se deixou
algum corpo humano feliz em casa antes de sair pra batalha
Que ânimo habitará seu espírito depois de um dia inteiro de trabalho
e se esse seu perfume de macadâmias que ela exala e dá vida às cocadas
se mantém intacto até o final do dia, junto com a face rosada
E em como será feliz quem a possuir na escala de um tempo
humano de final de noite, quando o dia ameaçar ruir por hoje
E a única lembrança que se terá da vida é mesmo estar com um 
pequeno fragmento dela entre os dedos