De volta à Terra do Nunca

Como toda criança sabida,  abandonando os pais
antes que o mundo se tornasse pesado demais
Minha mãe quando em sempre tão generosa
o acolhimento desses pequenos  no seio da vida
Meu pai e sua disciplina: o esforço de querer ser maior
para compensar alguma fragilidade intransponível
(o alheamento típico de quem está sempre em guerra)

Eu ainda desejava os campos, aquela grama tão mais verde
Os quintais de laranjas e seu sumo doce me dourando a cara
Os milharais onde pela primeira vez pude contemplar
a  metáfora pujante daqueles seus  cabelos de boneca
O nascer e o por do sol do alto do morro, espreitando arco-íris
depois que me beijavam as chuvas de verão em todo o seu poder

Eu desejava os campos, mas meu espírito já era das cidades, por antecipação
Abandonava de vez os passarinhos, irmãos a quem finalmente decidi livrar
Abandonava a contemplação daqueles teus olhos de vôos rasantes
A sensação de vida que me cavalgava em presença dos teus grossos lábios
e a cor natural deles -- teus lábios -- que eu nunca soube descrever:
macias almofadas que mutavam, ora em tons do rosa ao rubro
--em pálidas mordidas quando contrariada--,
ora armando-se no carmim agressivo do desejo

Abandonava ainda meus amigos fiéis, --meus primeiros e únicos
Porque sou dessas criaturas difíceis a quem uma mistura perigosa
de loucura, ceticismo e melancolia impede amadurecer afetos
Como se por dentro alguma imagem quebrada de um vaso velho
tentasse me impedir  de juntar minhas levezas para levantar vôo
(lembrando a melhor cena do livro colorido onde  Peter Pan
comandava com zelo uma turba de garotos que não queriam crescer)

A Terra do Nunca:  eu Fugia para bem longe,
onde havia a liberdade de não crescer
e não ter que me tornar a imagem triste do adulto que eu já sabia em mim
Tempos depois, entre minhas tantas atribulações urbanas já enraizadas
fiz questão de me por novamente às origens, voltar e ver: o campo, afinal
(Voltar ao que foi não é sempre um reiterado jeito de estar se perdendo?
desachamos o instante, desencontramos das essências )

Águas em contínuas corredeiras.
O que vi então não mais me tocava, algumas coisas ainda estavam lá,
assim como as pessoas,  todas
no mesmo lugar, e para minha surpresa, ainda me eram  queridas
mas algo de estranho me contornava o peito, como contorna as bordas
o refluxo de matéria seduzido aos poucos pela potência dos redemoinhos
Eu cresci mesmo contra minha vontade, afinal
(Peter Pan era  uma lenda)

Estavam lá, ainda, todos eles, e devo dizer mesmo que, para minha grande sorte
Minha mãe, ainda tão querida, em sua integridade e inspiração para a vida
Meu pai, e mesmo a gente sem ter construído linguagem a que se dê nome
tentávamos, agora, depois de tanto trajeto torto, tantos pesos e marcas nas costas
tentava a gente se entender melhor, não mais porque eu lhe reportava como filho
mas porque ,--pai, depois de tanto tempo, sou eu--, eu também era pai e o entendia melhor
Estavam lá ainda minha tão querida escola, algumas professoras bem vivas e felizes
e isso me encheu o peito de uma emoção incontida, a que meras garatujas não dariam
o condão de poder expressar, nesta minha petulante e renitente diletância vomitória

A distância física que deles tomei durante uma vida, mesmo não intencionalmente
alimentou em meu peito o elo fictício e uma sugestão de insistente  nostalgia
quando a poesia das saudades quis, ainda contra a vontade, fazer morada em mim
E foi assim, nutrido de olhos que só viam um brilho composto de todo o passado
que sem cuidado me atirei em vida a cultivar, não momentos em sua plenitude,
mas fantasmas e espaços imaginários do que supostamente me significaram

O choque ao final de tudo, naõ foi tanto saber que eles ainda estavam lá, e de certa forma
como ainda eram queridos, todos eles, o quanto realmente representaram em minha vida
e o quanto deles ainda pulsa em mim, porque somos no fundo o que levamos dos outros
A surpresa foi perceber, ao voltar, que eles -- também em suas vidas pessoais--
assim como eu, provavelmente mudaram a si mesmos e suas próprias visões de mundo
por tantas vezes, à medida em que  seguiam nesse mesmo nosso barco sujeito ás marés

O inusitado foi perceber, na professora, nos pais, nos antigos amigos, na velha cidade
que por saudade em algum lugar eu armazenei intactos como aquele que estoca seu ouro
e sim sentir, em tudo que me havia passado desde então, que eu é que era um outro
E, de alguma forma limitada e limitante no tempo, esse estranho não mais os enxergava como eram
com suas falhas, suas humanidades exponenciais, suas generosidades viscerais e suas histórias

O que eu me tornara, após abandonar tudo isso em definitivo, por ser da minha natureza
era a busca permanente de uma beleza que não estava neles, e seria injusto recriminá-los por isso--
uma beleza que não era objeto nem estanque, mas só se dava pelo processo contínuo de busca, -- mesmo sujeita ao fracasso-- e cuja epopéia era necessário narrar. Mais que narrar, na qual era necessário viver. Mais que viver, saber que a única vida válida era o movimento que eu me tornara
ao me aperceber de sua existência

Quando fui à cachoeira para relembrar os mergulhos e os beijos na morena flor atrás da pedra
Quando fui à quadra da escola, na sala de aula, no jardim onde  ralei o joelho, no bebedouro alto demais onde alguém precisava me dar pezinho nas primeiras séries. Quando parti a cabeça no pátio naquele galo que me durou meses. Quando aprendi a andar de bicicleta no morro de terra de saibro sujando de vermelho barranco minha bermuda para desespero da minha mãe. Quando peguei na tua mão suada, aquele tremorzinho bom de não saber do que se trata e ainda assim sentir a força
Quando aprendi a xingar. Quando aprendi a mijar nos lugares como cachorro marcando território

Era como se algum outro agora presenciasse tudo aquilo, e a criança que antes havia se extinguisse
Ou talvez, nem tão dramático assim, talvez a criança não necessariamente tivesse que se extinguir
mas apenas  se transportar para outro espaço quando ao voltar, não encontrasse mais seu lugar
Eu havia crescido, mesmo contra minha maior vontade, quando fugi

Não havia nada errado com as pessoas, na verdade, nem com a cidade, e nem  com o lugar
A dessincronia do tempo que sempre assassina espaços estava em mim, unicamente, e só
em mim, que percebi não mais pertencer àquilo tudo, e assim matava a nostalgia em definitivo.

Era eu o estrangeiro, afinal, que vivera tanto tempo de memórias,

o ser que existe sem ter lugar.