Mal da poesia




Sonhava, e foi sonhando que caí da cama um dia
cismando e rasgando papéis em busca da poesia
não sabia se era eu quem rabiscava seu universo
ou era ela quem me versava quando me escrevia

Surgida, assim sem mais explicação, pela necessidade
de aprender a estar só comigo mesmo fora do mundo
descobrir num segundo outras vidas ainda possíveis
antes que as terríveis gárgulas acabassem com tudo

Febre e calmaria, concreto e utopia, tesão e tédio
nada mais neste mundo que me fosse remédio
a própria vivência passou a valer só quando sabia
que, passada a onda, a palavra permanecia

De uma vida dividida entre o comum das dores
o comum das alegrias, sem sua paleta de cores
que mais haveria de honesto, senão declarar
a quem pudesse suportar a imanência do verso

Que o resto,  tudo o que não cabia no papel
era na tibieza do inferno ou na ausência de céu
uma outra palavra ou lugar e que as vivências
mesmo arraigadas nas costas do mundo

Evaporavam-se, num segundo,
e não se pudesse narrar
Emprestei as visões de outros poetas como meus guias
não dos versos, mas da forma de pensar e sentir o que eu sentia

Inaudito, o único sentido que a partir dali valeria a pena
me tomou o peito e me botou em cena ao impedir o óbvio
a noção de que a vida é tão pouco em si e por si mesma
que somente a arte aumentaria suas chances

Inoculado desse novo vírus, é que a vida cresceu em mim
e foi aos poucos, assim, que os olhos dos outros me fizeram possível
ao descartar o terrível, não havia mais dinheiro ou filosofia
nem nada nesse mundo que substituísse em mim o mal da poesia