Sobre o prendedor de cabelos que esqueceste no banco do carona do meu carro

Trajeto tenso
afinado em silêncios
contra os gritos de ora há pouco
Concerto fúnebre para público ausente
na iminência de um vôo partido

Ponte aérea pra Recife
sentimentos que não arrefecem
Navegamos em nosso par contido
por painéis de vidros embaçados
aparando um teto de cristal líquido
sob a chuva rala e fria

Um caminho curto que leva do nada
ao lugar algum
(Ir sem querer ir não é partir)
Semáforos irritantes a turvar o trânsito
Apostas nas perguntas
-- recurso de respostas tortas --
A comida do destempero
quando a melhor palavra
escorrega por entre os dedos
sem se pronunciar

A natureza conspira o par,
                                    sempre
ora a seu favor
ora contra

Enquanto a  vida depõe
contra qualquer permanência
É apenas a humana ciência
(o permanecer) que reluta
em sua fragilidade estrutural

E também sua tragédia
seu antinatural
quando ela se esquece
Porque tudo fenece
E é na ciência da perda possível
que todo traço humano é medido

A não ser que nos façamos outros
a cada encontro,
           um livro não-lido

                   
Somos humanos
Nada nos é impossível
nos altos e baixos dessa travessia
É uma constante aposta
Cevar o olhar que  transforma
é uma outra forma de utopia

Asas sobre a cidade
Sombras e alegorias
Estrondo de turbinas
Ensurdecidas pelo barulho de dentro
Uma partida em suspenso
Que mais nada permite ouvir


Na volta pra casa
aperto entre os dedos
o pequeno prendedor
dentado de madrepérola
esquecido (ou planejado)
sobre o banco do meu carro

Essa peça que tantas vezes
já a vi tirar da cabeça
antes de descerem as madeixas
E como tudo que é teu
respira coisa exótica
na cor, no formato
no cheiro

Como coisa que é tua
--e sendo mulher --
penso que isso não veio
a estar aqui por acaso.
Não importa a tática, o que vale é o tom
do sentimento que surge

A dor que, tão controlada, ruge
quando bate sem esteio
O veneno dos meios a instilar
seus pecados

No fundo, não há nada em mim
que atenda pelo nome de equilibrado
Não há nada ainda
que persista sendo racional
apesar de tanto esforço

Foi, sim, nesse sentido, 
tentativa jogada fora
quando me reconheço agora
este ser compassivo e decadente
passional sentimental
terminal

Sou feito de amor e intuição
Um romântico incurável 
pelo remédio do seu próprio tempo
Uma era que considera 
amar uma espécie de doença

O cristal
líquido saturado
vazou o teto do automóvel
e chove alagando tudo aqui dentro
A desconfiança de um esquecimento
contaminando
O mundo que agora há pouco era meu
e eu sem saber o que restava
ou se ele de fato se perdeu

Uns fios de cabelo agarrados
presos em nosso passado
a me lembrar uma antiga canção
sertaneja
e a sensação desesperadora
de reconfortante terror:
aquele traço de lugar-comum
que subsiste a toda forma de amor

O cheiro do xampu de amêndoas
Esse formato de mão, perdida no espaço
Sem o corpo em madrepérola
a que ela se possa prender


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