O mundo de Arthur Fleck (Coringa, 2019)



(OBS: tem Spoiler, e muito)
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Assistindo pela segunda vez ao filme de Todd Phillips, apenas porque achei bonito demais da conta.

Depois de ler zilhões de críticas e abordagens nesse interregno de duas semanas entre a minha primeira e a mais recente sessão, e sendo filme que enseja tantas variantes de análise, há duas questões aqui, que parecem não terem sido muito notadas pela crítica em geral. Falando mal ou  bem da obra, compreensivelmente eles buscam elementos mais próximos da história do cinema ou da óbvia comparação com o universo comics nas explanações.

 Buscando outras leituras possíveis, o novo Coringa, em sua humanidade desajeitada que salta aos olhos desde o início,  na pele do solitário Arthur Fleck,  já mostra de cara que não é mais um mito, algum "elemento do mal" autóctone, que adora matar o tempo desfiando um cordão de maldades friamente calculadas para causar a maior dor possível aos inimigos eleitos, com o intuito final de enriquecer a si mesmo ou destruir gratuitamente tudo ao redor.

Nem é um líder do sindicato do crime, coordenando um movimento sincronizado de bandidos sagazes e cruéis com o intuito de acabar com a civilização  liderada por "Famílias Wayne" mundo afora e tentando, em substituição, implantar um regime de terror. Essas duas situações são facilmente contrastadas pela quantidade de acasos  conduzindo o personagem a caminhos que ele mesmo sequer poderia saber de início em sua conturbada e miserável vida. Não há lógica nem planejamento na mente do Coringa, inexistem os sinais de uma diabólica e genial mente criminosa, quando reage à pressão exercida sobre seu mundo, e sim um instinto de sobrevivência.

Paradoxalmente, não se trata de um filme violento, no sentido tradicional do termo, ou sequer sobre a violência como tema central.  Para isso, temos já o tradicional mata-mata repleto de estereótipos e dinamizado por milhões  de dólares gastos a cada filme em efeitos especiais, junto com milhares de produções do cinema e da tv, ano após ano, entupindo as telas de tiroteios banais, facadas e bombas, além das tradicionais perseguições de carro sem sentido desde as sessões da tarde até a  tela quente. A violência do filme é outra.

Por essas razóes é que se torna ociosa, na minha leitura,  a  hipótese (polêmica, por si só, e carente de maiores fundamentos), como no famoso "efeito Werther", de dois séculos atrás, a teoria de que a arte diretamente induz comportamento violento ou coisa do tipo, sendo que até mesmo seu contrário pode ocorrer mais comumente, servindo a arte tantas vezes para justificar os olhos do dominador e consolidar os modos de sua perpetuação, por seus diversos gêneros e meios, pela literatura, artes visuais, música,  e caudalosamente no cinema produzido de forma industrializada, ao se enveredar pela face do mero entretenimento .

Antes de cair nesse erro superficial, seria muito mais inteligente e realista questionar primeiro o sistema em que nasce e cresce um determinado indivíduo , a existência da fragmentação econômica entre os grupos sociais e os indivíduos, as fragmentações internas dos próprios indivíduos criados num sistema selvagem que constrói nas pessoas mecanismos e virtudes descartaveis que lhe serão úteis posteriormente, e  priva muitos de qualquer conforto ou solução definitiva  para suas vidas.

Ora , o mundo em que está inserido o Arthur Fleck é insanamente violento desde sempre, nos detalhes particulares que envolvem a forma das pessoas se relacionarem entre si no cotidiano e com as instituições mais diretamente ligadas á sua existência, bem assim na relação de indivíduos consigo mesmos, quando se julgam incapazes ou inaptos para a competição  na luta voraz pela subsistência, resignados a seguirem catando as migalhas do sistema.

Dai, em vez do rótulo fácil de "apologia da violência", tão mencionado, mais  inteligente é questionar os valores e os resultados práticos disso tudo,  e a partir de então ,quais seriam suas possíveis interações. Está na essência do filme, é isso que ele põe na tela de forma explícita, a princípio usando a idéia de "loucura" como qualificador da ação divergente na ação do protagonista, simultaneamente uma vítima , mas que a partir de algum momento torna-se, por via desta mesma loucura, que se empodera como uma visão não submissa ás mazelas de um mundo socialmente ignorado e agora  mais consciente de si, um mundo anárquico e não disposto a seguir passivo, tornando-se definitiva oposição à lógica acumuladora macabra.

Conduzida pela magistral aula de cinema, envolvendo desde o talento incomum de Joaquin Phoenix, na construção de uma dualidade do corpo , o corpo fragmentado do personagem, martirizado por um distúrbio de comportamento de origem remota, imagem tão palpável em primeiro plano pelo movimento doloroso e angustiado, o gesto tímido, com seu físico partido, apanhando a todo instante do mundo lá fora, isso lado a lado  com a leveza das danças e a desenvoltura da movimentação surgida na pós-consciência da sua trágica situação no mundo, quando ele se põe em posição de defesa em face das suas reveladas ameaças e  portando a partir daí uma nova atitude, tudo isso registrado pela fotografia belíssima e a música incidental mais precisa e perfeita que vi nos últimos tempos num filme.

A violência de fundo estampada, o tempo todo, em "Coringa", contida e direcionada nesta  nova acepção, bastante diferente do universo "comics", é em algum grau mais semelhante àquela violência original existente no brilhante "Eu, Daniel Blake" (2016). Uma violência institucional, antes de tudo, que agride também no silêncio e na omissão. No caso do filme inglês, o retrato de  uma brutalidade velada do sistema burocrático reestruturado depois da crise global de 2008 em torno de um recrudescimento de políticas neoliberais em todo o mundo capitalista devido a um retorno da pior forma de atuação do sistema financeiro e à necessidade de uma margem maior de lucro. Daniel Blake, idoso e às voltas com as dificuldades do sistema inglês de benefícios previdenciários, ainda arruma disciplina e disposição para lutar individualmente por seus direitos, auxilia os amigos em igual ou pior situação do jeito que pode, e "não deixa a peteca cair", até que ele próprio cai de cansaço.

/Arthur Fleck ri, em vez disso, o Coringa,pois  enquanto é mero personagem anônimo feito um Daniel Blake lutando numa selva sem direitos, ri desesperadamente, fora de hora, sem controle, um riso compulsivo que é também traço de seu transtorno mental, uma confissão de impotência e frustração por ter que aceitar o sofrimento do qur não consegue mudar . Um riso que se torna notável choro todas as vezes que o sistema age desmedidamente de forma cruel contra ele, a cada novo ato da vida cotidiana, como se chorasse pela mesquinhez alheia. Um riso de choro diante do absurdo. Nos constrangemos junto com ele, quando ri até os espasmos, sem conseguir se conter, e sofrendo por isso.

É nesse sentido que a violência-resposta do personagem (interessante o detalhe da diferenciação do tipo psicológico dos quadrinhos, adepto da crueldade indistinta por si só, como um sádico prêmio) é muito mais uma violência-revolta que não sabe onde nem como se expressar por outra via, um sentido de defesa redirecionado que, mesmo sem intenção no início, acaba se desenvolvendo pelas armas em razão do  atrapalhado da coisa toda, acrescido dos problemas psicológicos tornados fora de controle por um evento indireto: o  corte abrupto na política social de tratamento, do fornecimento gratuito de medicamentos e do subsídio social  das pessoas carentes com algum grau de patologia mental e vulnerabilidade econômica, incapazes de suprir o próprio sustento num mercado extremamente restritivo sem alguma política social.

Há uma  cena, em especial, que deflagra linha profunda de prospecção. Quando ele está à procura do histórico da mãe, numa instituição para doentes mentais, (depois de descobrir que ele próprio era um filho adotivo e que sofreu intensos maus tratos na infância), e pergunta ao atendente que tipo de pessoas são internadas ali, ao que responde o funcionário, fazendo uma revelação poderosa dentro da linha do filme, que remete de imediato ao pensador Michel Foucault em "História da Loucura" e  "Nascimento da Clínica" e entrega a estreita inter-relação entre um sistema econômico perverso e a exclusão dos indesejáveis: o funcionário revela que primeiramente, eram os loucos, mas logo depois começaram a ser internados os doentes de outras doenças ainda sem atendimento social, depois os revoltados e bêbados de ocasião ou pessoas em "crise" genericamente, ou seja: o papel dos leprosários na Europa a partir do séc XVII - XVIII, prédios usados durante muitos anos para acolher os doentes da lepra, afastando-os do resto da sociedade, e que depois vai albergando todo tipo de doentes, os alienados e "não-produtivos" de toda cepa, gerando com isso a ocasião para a gestação da loucura institucionalizada, como densamente documentado na pesquisa de Foucault.

Esse ponto específico sobre a condição da violência por um olhar simbólico, não-estereotipado, ganha ainda outra forte conotação quando parte para as cenas do  uso da arma de fogo no contexto até bastante contido: o personagem a usa de fato em duas oportunidades, uma para se livrar de uma agressão no metrô e acaba matando três jovens operadores do mercado financeiro que o espancaram , e a outra, quando assassina o personagem de Robert de Niro, sarcástico cabeça de um talk-show pró stablishment que, por ser também um dos representantes do sistema opressor, e em particular,por ter ridicularizado o próprio Arthur Fleck anteriormente em uma apresentação de humor, ganhou status de inimigo a ser exterminado.

Diferenciando-se muito do personagem original das histórias em quadrinhos em sua busca insaciável por crueldade e prazer de causar dor, este Coringa é mais um homem reagindo (pela própria vida) contra o sistema que ameaça tomá-la. Ora, não se pode pedir, legitimando o ponto de vista dos "Waynes" que governam o sistema, que a máquina continue matando seguidamente as pessoas-alvo em sua fragilidade social, e que essas pessoas ainda continuem indeterminadamente num papel de passividade se deixando matar feito moscas (é o que parece nos dizer a sequência final, quando ele é resgatado do carro da polícia em chamas e aplaudido em publico -- os aplausos que queria durante os seus fracassados stand-up shows).

 A curiosidade pelo tanto de circunstancial que exerce o papel da "arma de fogo" em si mesma, num ambiente já configurado como um barril de pólvora prestes a explodir a qualquer momento por conta de uma insana perseguição massiva do Estado às pessoas que não se enquadram como motores do sistema. Velhos, crianças, artistas fracassados. Mesmo impessoal e aleatória, essa negligência que simplesmente cria grupos e indivíduos invisíveis dentro da órbita de uma cidade grande, fazendo inúmeras vítimas no caminho. Nesse momento perguntariam, como alternativa para a saída anti-sistema, se havia necessidade ou não da arma, ou do uso da violência, ou ainda, se tal atitude em filme seria modelo ou apologia da "solução armamentista".

Responder isso de forma positiva seria pensar como interagir de forma sã com um mundo de Gotham City completamente insano, a ponto de se questionar mesmo quem e o que é a loucura, quem são os loucos, no fim das contas. A ingenuidade e um sentido equivocado de justiça dos  que se acham capazes de reverter a ordem de qualquer coisa simplesmente porque portam uma arma  nas mãos, fazendo valer o olho por olho (mais um elemento acidental de se viver numa nação e numa sociedade armamentista até as raízes) e saem abrindo fogo contra inocentes, como por exemplo, nas escolas secudaristas, universidades , nos cinemas, em diversas ocasiões ocorridas principalmente nos Estados Unidos.

Tal pergunta caberia , em hipótese, a um personagem normal, para um mundo normal, que ainda assim fizesse uso das armas. Se ele tem, em tese, outras formas de revolta possível, em greves ou manifestações públicas, tem a forma artística ou do voto garantida como fator de mudança, se ele tem sua voz e sua opinião para se expressar, tudo isso não seria o suficiente ? mas tal questão esbarra em outra, de conteúdo: ora, não falamos aqui de uma "pessoa" ou "personagem" normal, mas alguém sequelado, violentamente agredido e torturado desde pequeno, pelos tantos namorados da mãe, (ela própria uma pessoa com sérios transtornos mentais). Quantas pessoas assim já não rodam pelas ruas indistintamente?

Ora, o filme antes de tudo, é uma obra de ficção e não pode responder ao que não propôs. Não é a proposta sistemática de uma nova ordem, onde cada cidadão deva fazer justiça com as próprias mãos, mas ao mesmo tempo sinaliza claramente que a falta de um sentido maior e mais cristalino de justiça, o fracasso das instituições e a presença sempre constante da fome, do crescente extermínio das políticas sociais e do excesso de competitividade do mercado bruto podem , sim , ser elementos a propiciarem o surgimento de soluções drásticas. Quando surge em resposta à agressão do mundo quanto à sua vida pessoal, não há, no Coringa, nem de longe, o pensamento lógico de uma ação intencional para movimentação política, -- ele mesmo dá o tempo todo o mote para que não se veja nele um personagem político -- mas, num segundo momento, onde  sem quaisquer chances na vida, seja no amor, no trabalho, na paixão pela stand-up comedy que lhe dava sentido à vida, e dando por satisfeito por ter se vingado do antigo amigo que lhe vendeu a arma e depois o entregou à polícia e se vingado ainda da mãe que o maltratou na infância, bem assim do apresentador de tv malicioso, ele já se encaminhava com tranquilidade para o desfecho do seu destino resignado atrás das grades, quando a própria vida em mais uma reviravolta lhe alterou o curso.

Não se argumente, como em parte das críticas, criando um viés fácil de negatividade na resposta "livre" do protagonista como ação em face de estímulos negativos. Isso significa dizer que ele não fez algo bom daquilo que fizeram com ele, enfraquecendo o argumento do filme pela violência fácil. Ora, um indivíduo "livre" poderia optar sempre entre o bem e o mal, e não se deixar levar pela influência negativa do meio. É também a tese de Fernando Meirelles, em "Cidade de Deus", na experiência do fotógrafo adolescente e negro "Buscapé", que embora nascido e criado na favela, "escolheu" outra carreira fora do crime, ao buscar formação jornalística.

No caso de Arthur Fleck, contudo, a crítica se esqueceu de que ele fez já, essa opção primeira, e tentou largamente a perseverança em outros caminhos, antes de mudar o rumo. Mesmo tendo sido duramente abusado na infância e sendo paciente psiquiátrico com uso pesado de ansiolíticos, ele bloqueou as experiências negativas e enveredou-se pelo mundo artístico animando crianças, trabalhando como free-lancer em pequenos shows e casas de festa, hospitais etc, Além disso, a violência da ação e do filme é residual, não é o eixo condutor. "Happy", como a mãe chamava Arthur, era carinhoso com a mãe, atencioso e dedicado no trabalho, e a mudança de atitude surgiu apenas depois de tantas trombadas e impedimentos que teriam feito qualquer pessoa dita "normal" perder a cabeça por muito menos.

Até então agira intuitivamente, Arthur Fleck que , a partir daqui, se chamará Coringa, sequer imaginando aonde os atos o iriam levar. Restaria esse outro aspecto, da visão e do sentido que sobre ele vem do público inusitado e repentino surgido após sua aparição em rede nacional de tv, ao assassinar o âncora famoso? (aguardar para ver se haverá a sequência para a exploração desse espaço narrativo)..

Dessa forma é que ainda enxergo no filme, ao contrário da tão ventilada tese de "celebração da violência" por si, na verdade o registro e a exposição de uma outra  violência mais simbólica, portanto, a maior parte do tempo, exposta em "Coringa" em uma ampla e contraditoriamente anônima, impessoal, cassação das chances de sobrevivência de boa parte da populaçãó que não se enquadra nos modelos vencedores.

Há, dentre mil outras possibilidades, a leitura pelo viés da necropolítica tão denunciada por Mbembe, antes dele Foucault na "História da Loucura" e o conceito de Biopoder, no "Estado de Sítio" de Agamben e nas violências burocráticas contemporâneas bem retratadas na burocracia cruel e desumana de "Eu, Daniel Blake". Há elementos fortes ainda da leitura causal de Esquizofrenia x  capitalismo, no brilhante "Mil Platôs", pelo olhar de Deleuze.

A diferença maior é que, neste caso, Arthur Fleck, também vítima de toda a mistura que atingiu Daniel Blake por um sistema econômico e social extremamente nocivo e insano em sua coletividade, contava com outro ingrediente incontrolável e imprevisto a elevar à quinta potência um poder de reação que, no caso do personagem do filme inglês, um típico cidadão pobre de terceira idade morando na periferia de um país de primeiro mundo em época de crise, não ocorre: O Coringa é um "louco" fabricado por um sistema que, doravante, terá que aprender a lidar com essa centelha dançando constantemente sobre seus inúmeros barris de pólvora enterrados tão à superfície.