A linha

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Estilingue em punho, mira um tanto difusa. Já naquela idade, os
olhos não iam bem no foco do seu destino. Alguém já suspeitara,
em casa, mas os óculos estavam sendo adiados ainda um tempinho
para o bem do menino. Estilingadas de mamona pontuda, um saco delas,
bem verdes. Pedra, não podia. Braços doendo, pescoço doendo, olhando pra
cima e desafiando a força da claridade solar há horas, mas sem acertar nenhuma,
até que súbito aquele um pássaro no meio de cem outros recebe a
bomba no peito, desafina o corpo para os lados e vem sobressaltando asas
até bater o chão, num baque surdo. Andorinha do mar, aquelas grandes, de
canto enigmático e gutural.

Surpresa! Nunca tinha acertado nenhuma nesses anos todos de miras
perdidas e muito caroço de mamona arrancado nos arbustos sofridos da
rua. O júbilo de caçador bem-sucedido passara mais rápido do que um raio
e o choque foi maior do que a suposta glória. Acontece que o pássaro não
morria como nos filmes. Aquele bicho ficava se debatendo, todo torto, no
chão, meio morto mas ainda cheio de vida. Desespero! A quem chamar?
Será que sofria muito enquanto agonizava? Acabava de matar o bicho, por
obrigação, para terminar com seu sofrimento? Corria pedir ajuda a sabe lá
quem? Larga-se estilingue pra um lado, mamonas pra outro, e nada. Pátio
de terra deserto a essa hora perdida de uma tarde quente. Deus! O que não
daria pra ter errado o tiro? Mas agora não adiantava mais. Esse bicho estava
ali, mais vivo que morto, pescoço meio quebrado e se debatendo com
tanta fúria, como se a vida protestasse com todas as suas forças e simplesmente
se recusasse a ir embora.

Se pegasse ele de novo e lhe desse um banho, desse comida, um pouco
de água fria, e o deixasse dormir um pouco, de repente ele voltava. Juízo fechado,
missão a cumprir: tocando para casa, na corrida com pássaro e agonia
debaixo do braço. O estilingue desprezado e jogado no meio do mato,
com sacola de mamonas e tudo.

Banho no tanque frio, devagar e com cuidado. Bonita, de asas pretas e
azuladas, peito cinza-branco-cinzento, e aquela criatura tinha o corpo tão
quente e seu coração batia tão rápido, mas a cabeça insistia em não se firmar.
Os olhos inquisitivos perguntavam: Por quê? Para depois se fecharem
no vazio absoluto. Não comia nem bebia, é claro, apesar das doídas insistências.
Parara com a batida sôfrega de asas, mas insistia em não comer,
aguardando de cabeça para baixo, no fundo da gaiola forrada de jornais e
canjiquinha de milho, com uma vasilha d’água.

Manhã seguinte, corre ver a gaiola, e o bicho morto, cheio de formigas
em volta. Espanta essa maldição de formigas, com abanas e esfregas, deixarem
o bicho em paz! Morto, mais morto que tudo que um dia já foi morto
nesta vida. Olhos secos, língua seca travada sobre o bico meio aberto, e um
fio de sangue escorrendo pela lateral. Ali, contemplando aquela desfeita da
própria vida, percebendo enfim a condição natural da perda da inocência.
Agora um assassino de dez anos de idade, olhando suas mãos sujas e a certeza
da sua condenação para sempre no fogo do sétimo inferno.

Enterro condizente e solitário, com direito a lápide de granito arrancada
da recém-calçada rua. Raiva súbita num maremoto de sensações e
vontade de espedaçar aquele maldito animal, de fazer o tempo voltar e de
gritar que a vida era mentira e que tudo o mais era somente dor.
Semana seguindo amarga, completa de segundas-feiras, sem sábados
nem domingos, e cheia de perguntas: “Menino, não vai comer?”, “Vai ficar
doente!”, “Já é magrelo, se ficar amuado desse jeito, não cria!”, “Nem jogou
bola nesta semana”, “Levar no doutor pra tomar injeção de Benzetacil”. A
injeção até que seria uma bela purgação nessa hora.

Mas o sol sempre chega um dia, e aquele novo sol viera por asas negras,
revoando em frente da janela, num grupo de mais outras cem. Esta, agora,
com uma perna quebrada, amarrada, visgada de linha de jaca e agarrada no
canto superior de telhas. Com artifício, caiu no colo da varanda, malparando
asas ao vento. Do susto levanta-se olhar pro alto, pra descobrir outras
tantas noventa e nove que, penduradas em fila sobre o fio de alta tensão,
observavam a cena, caladas.

A ciência do que fazer nasceu do instinto, e não houve tempo para pensamento.
Da perna estropiada, restou quase nada. Apenas fiapo de osso, amarrado
com longa fiação cheia de cola. O sofrimento do animal, com bico aberto
e esgotado pelo imenso esforço. Corre para uma cirurgia com tesoura de unha
e faca de cozinha, uma cortada de ossos pássaros e o cotoquinho que sobrou,
amarrado finalmente com fina linha e encharcado de mercúrio cromo.
Descanso em gaiola da noite para no dia seguinte esbravejar com as asas sobre as grades.

Malcriada criatura, que não sabe o agradecimento. Trajeto até a varanda
da alforria com direito a bicadas, unhadas e pequenos chiados incontidos.
Solta no ar, e lá se foi, poderosa, com sua perna faltante, mas com
muitas asas para os caminhos do vento. A vida escorregava em suas graças,
e dessa forma um assassino inusitadamente virou cirurgião antes que a
semana completasse sete.

Vez ou outra, figuram que ela tenha sido vista em mais um ou
dois verões, sozinha ou em grupos de outras noventa e nove. Uma andorinha
grande, de uma só perna e um cotoquinho amarrado com fio dental,
pousando na fiação de logo ali em frente.



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Publ in "Manga Verde", Contos, Secult 2015 / Ed Cousa 2016