Manga Verde



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Para Déia minha vó, que me ensinou a avoar








Tocada de meninas e meninos espalhados pela campina de Chácara,
naqueles sábados de manhã, em meio ao capim verde e gordo, sob o
céu azulante de maio. Com muita ansiedade, vivíamos essas aventuras
de férias na companhia de muitos primos, sempre vigiados de perto
pela nossa avó, a quem tratávamos carinhosamente pelo apelido de “Déia”.
Na tripartição temporal de nossas emoções, sempre nos envolvíamos
intensamente nos “antes”, “durante” e “depois” dos piqueniques, jogados
como felizes bezerros sem dono naqueles pastos morrados.

O “antes” consistia na eletrizante idealização, nas estratégias e planejamentos,
no ritual de todos os preparos do dia anterior: a expectativa
dos bolos e biscoitos variados, geleia e sucos ralos sacudidos, adocicados
e guardados em cantis de plástico recém-comprados no armazém da esquina.
Cantis que, além de não manter gelados os líquidos, ainda tinham o
poder de adicionar seu gostinho enjoativo de plástico novo sobre qualquer
bebida que ali entrasse. Havia também a espera sagrada por aquela galinha
caipira especial, frita no fogão de lenha, que era embalada e preparada
para o “almoço vip” do dia seguinte.

O ponto principal ao menos para mim,
é claro, é que a noite de véspera nunca acabava cedo e nunca ficava sem a
aguardada “contação de histórias” e “causos”, dos quais minha avó era a
maior mestre que já ouvi. Ninguém costurava tradição e invenção com tamanha
desenvoltura. Ninguém mais saberia repetir a mesma história tantas
vezes, acrescentando sempre uma fala ou uma cena nova a cada nova
narrativa. Ninguém sabia tantas histórias assim, de cabeça, sem ler livro
nenhum, sobre todos os assuntos. A molecada sempre ia dormir com a cabeça
embalada nos sonhos de terras perdidas onde habitavam gigantes,
anões, porteiras e sapos que falam e voam até o céu, princesas e riquezas
inacabáveis. Monstros maus e poderosos e garotos sabidos que com a medida
certa, às vezes com as palavras mágicas e muita disciplina, sempre
conseguiam dar um jeito de contornar as mais terríveis situações.

O “durante” era a própria ação em sua melhor natureza, caracterizada
pelas gangorras montadas com cordas e um pedacinho de tábua de madeira,
a zoeira de crianças correndo morro acima, poeira subindo nos pés da
molecada descalça aos incontidos gritos de sobe-em-árvore, desce d’árvore,
pega abiu, cata manga, rouba pitanga. “Cuidado, menino, que esse galho
não guenta seu peso!”, “Não derruba manga verde”, “Não chega perto do
curral que lá tem boi bravo e tem perigo!”, “Não judia do seu primo, porque
ele é mais pequeno!” O prêmio gourmet da tarde era a grande manga espada
verde, com sal, recém colhida do pé e descascada no canivete, estalando
na língua e seu azedinho pra tirar umas lágrimas felizes dos olhos.

O retorno para casa ao final da tarde coroava a saga joyceana desses
pequenos Ulysses que queriam viver todas as possibilidades da infância
na duração de um único dia. O momento do “depois”, a Odisseia do retorno
para casa, era deflagrado com o grito de ordem de nossa avó, e então
tinha início a operação de retirada estratégica do campo, com a juntada
das toalhas, panelas e restos do piquenique celebrado até o último instante,
àquela hora do sol, que até há poucos instantes rachava a cabeça com
seu calor, ir cedendo aos poucos para o fim de tarde friozinho do final de
abril.

Descíamos todos somente após todo mundo ter tirado seu merecido
descanso nas sombras das muitas mangueiras, cada uma de um tipo: manga-
rosa, coquinho, espada, coração-de-boi. Nas beiradas do pasto também
havia frutas de todo tipo: além de mangas, pitangas, goiabas, isso sem falar
no delicioso e ardiloso abiu amarelo-rajado-verde que depois de nos propiciar
um banquete com seu conteúdo doce, suave e macilento, colava a boca
dos incautos apreciadores com um visgo de difícil tirada, situação que só
seria revertida mais tarde, em casa, com alguma piedade dos adultos e colheradas
de azeite de oliva espalhadas nos lábios.

Lá no alto, no meio da zoeira sempre estava Déia, minha avó, e seu eterno
olhar distante. Ela gostava sempre de olhar a linha do horizonte, de cima
do vale muito morrado. Esse terno olhar da sorte e da afeição espalhava-se
também sobre nós todos, dividindo-se sua imagem em duas ou mais às nossas
vistas, em plena luz do dia, enquanto o mundo se fazia melhor. Além
de seu dom inato para olhar toda a criançada ao mesmo tempo, enquanto
nós nos misturávamos aos gritos, formatos e movimentos, minha avó tinha
também um outro dom mais etéreo, um olhar de por cima, um olhar
perdido, de não se sabe onde, um olhar de paz maior, mirada sobre um alvo
ainda desconhecido que apenas ela enxergava com uma luz de compreensão
sobre a fugacidade daquilo tudo que se passava à nossa volta. Ela sabia
tudo, mas não falava. Calando, dizia muito mais. De como logo estaríamos
em forma adulta e de como aos poucos perderíamos a capacidade de ser
tudo num único dia, isso de precioso que nesse instante se apalpava, se
mordia, se gritava e se colhia. Tudo isso em breve estaria em gavetas de
arquivo ou de memórias mal lembradas no meio das pressas urbanas ou
de não-sei-bem onde ficou minha história em um mundo que prima pelo
excesso de informações sem valor e, contraditoriamente, soterra o essencial
junto com os melhores sentimentos.

Déia, minha avó, para quem tudo estava sempre bom, -- mesmo quando brava --
 e ainda tinha  a capacidade de estar sempre cantando ou cuidando dos
 seus outros afazeres,  que não eram poucos, transcendia
a nosso favor a noção não explicada, mas assimilada pelos poros coletivamente,
de que nunca estaríamos sozinhos no mundo. Mesmo que o mundo
jamais soubesse da nossa existência.

A visão mais importante de minha vida de criança foi Déia quem deu,
quando me levou no “alto do pasto”, como era conhecido o platô gramado da
Chácara, local dos faustosos piqueniques, na idade de sete anos, e me mostrou
o lado de lá, que era para onde o pasto morrado virava para o norte. Daquela
posição, via-se o resto do mundo, ao ponto de sentir-se vertigem quando
contemplados todos os lados, panoramicamente, eu estando no centro, no
alto, e tudo o mais à volta, com um grande vale vertical logo à minha frente.
A cidade às minhas costas, e o mundo inteiro à frente. O morro já no inverno,
corrido por forte ventania nas tardinhas, antes do sol sumir.
A impressão é que se estava em cima de um muro muito alto e muito fino,
e que bastaria um pequeno movimento em falso para uma infinita queda no vazio.

Logo abaixo, a uns trezentos metros rolando morro, passando pela extinta linha do trem
de ferro que cortava em comprido da esquerda pra direita, estava lá a extinta
usina hidrelétrica, rugindo seu rio ainda caudaloso, corredeira gerando
véus de noiva e muito vento pelo caminho desde a pequena barragem quilômetro
acima, fazendo um grande estrondo na descida abrupta de mais de
quinhentos metros verticais, moderados por pequenas cachoeiras filiais, até
a antiga Casa de Força da cidade. À frente, depois do pequeno vale vertical,
a pouco mais de um quilômetro, plantada na cabeça do morro vizinho, separado
do morro de Chácara apenas pelo rio que dá nome à cidade, estava o
parque de exposições, fervilhante nas épocas de festas e vaquejada, e alegria
da garotada amante das pipas e papagaios nos meses de agosto e setembro.
À direita da minha visada, o temível campinho três bicos, o único campo de
futebol gramado triangular de que tive notícia em toda a minha vida, local de
lendárias peladas ao entardecer, cercada de mangueiras, pastos e eventual
plateia bovina pelos lados, e local corrente de muitas outras aventuras fora
dos horários convencionais.

Bem, seguindo à direita, um pouco mais abaixo,
o olhar fremia ao primeiro contato com a dor da civilização ainda em tenra
idade, na contemplação dos montes de entulho sendo constantemente despejados
na Volta do Lixo, como era conhecido o local pelos moradores da região.
Meninos e meninas de todas as idades, trajando farrapos e disputando,
em meio a muitos porcos, urubus e ao terrível mau cheiro de todo o lixo da
cidade, despejado sem maior critério pela colina, solapando metros e metros
de vegetação e barrancos até alcançar o rio sufocado mais abaixo. Há coisas
nessa vida que dispensam palavras, na verdade muitas coisas, e esse talvez
tenha sido meu batismo incipiente nas águas daquilo que eu já deveria saber
de cor, mas que na verdade acho que nunca aprendi: humanizar-se é a arte
mais difícil e nunca tem fim. Nunca se deve desistir do humano.

Na última vez que subi com minha avó ao topo do morro, foi no dia do
enterro do nosso bisavô. Eu assistia, de longe, do alto do morro de Chácara,
o cortejo fúnebre subindo o outro morro lateral, o Morro do Cemitério
no platô vizinho. Eu via aquela enorme fila de formigas coloridas acompanhando
a última procissão fúnebre morro acima, do Patriarca da família
Rodrigues. Subiam todos, coloridos e formigando, lentamente, eu com
minhas vistas ruins de criança míope ainda sem óculos, à distância. Fui
proibido de ir junto, porque ainda era muito pequeno. Mas pequeno ou não,
as dúvidas que se infiltravam no pensamento do menino, inspiradas pelo
primeiro contato oficial com a representação da morte no dia do enterro de
nosso bisavô, já adiantavam muito do que estaria por vir daquele temperamento
inquieto e da vontade atávica de conhecer a vida em suas raízes:

“Déia, um dia todo mundo morre?”
“Deixa de bobiça, menino, que você ainda é muito novo pra entender
essas coisas.”
“Mas a gente também vai ter que morrer um dia, não vai? Meu pai, minha
mãe, minhas irmãs, todos?”
“Menino, quem sabe disso é Deus, e nós não temos que ficar fazendo
essas perguntas.”
“Então me diz se você também vai precisar morrer algum dia?”
[.....]
“Déia, mas se Deus criou tudo, por que ele deixa a gente morrer depois?”
[Apenas o vento de inverno nas mangueiras altas de Chácara. Sacudia as
folhas grandes e rijas da base, com seu verde escuro queimado de sol, enquanto
a folhagem tenra, avermelhada ferruginosa ia se revelando aos poucos no
topo, tudo isso entrecortado pela doce crueldade intemperada das crianças.]
“A gente sabe quando vai morrer? Você sabe quando vai morrer?”
[Déia, entregando os pontos, naquele meio sorriso paciente e cúmplice
que sempre foram sua maior marca.]
“Menino impossível! Cê quer saber mesmo, eu acho que vou morrer daqui
a uns trinta anos, se Deus assim desejar.”
“Déia, o que acontece de verdade quando a gente morre?”
“Quando a gente morre, Deus nos dá asas, e a nossa alma sobe direto
para o céu, que é um lugar bem melhor.”
[O menino, como sempre, não se dá por satisfeito.]
“Mas aqueles meninos e meninas ali embaixo, na Volta do Lixo, também
vão pro céu?”
“Sim, eles vão primeiro porque já sofreram muito. Deus não vai se esquecer.
Ele anota tudo.”
“Mas por que que quando a gente nasce não fica sabendo logo que dia
vai morrer?”
[Silêncio eloquente. Vento nas mangueiras altas de Chácara]

“Vamos descendo, que tá ficando tarde, você já está tossindo por causa
do vento frio e sua mãe logo logo vai lhe chamar.”
Antes de descer, já no caminho da volta, uma virada de pescoço sorrateira
para uma última olhada no horizonte: à frente por quilômetros e
mais quilômetros de estradas possíveis, o olhar especial de tentar enxergar
o além-de-lá, o futuro que me aguardava na capital e todos os desafios
inerentes a uma nova vida para um simples garoto do interior, um menino
como tantos outros imaginando o mundo e farejando a suspeita do mar
no horizonte, lembrando as notícias antigas de ouvir dizer, sobre um mar
grande e antigo de cargueiros e navios mercantes que chegavam abarrotados
de mercadorias por largos rios afluentes até bem próximo de sua terra
natal. Viagens épicas de intrépidos navegadores culminando no imenso e
majestoso Itapemirim que reinava sobre as águas de divisa da pedra do Itabira,
cujo cume era dali do morro distinguível com a clareza dos dias azuis,
lá na terra do Rei. Esse filme imanente, onde eu também era personagem,
filme gravado em meio aos ventos, barulhos e silêncios, a contemplação
dos urubus dando seus rasantes ali a poucos metros do chão, nossas águias
reais que vinham quase ao alcance das mãos e depois pairavam durante horas
sobre a corrente de ar ascendente pelos morrados da região. A ciência
precoce desse outro lado do mundo e a necessidade experimentada, pela
primeira vez, de ser pássaro, de perceber que a vida não é horizontal e que
para compreendê-la ou aceitá-la, tão contingente, tão contraditória, tantas
vezes seria necessário estabelecer uma relação inafastável de verticalidade
com o mundo, criar um movimento onde o espírito pede espaço para não
sufocar enquanto sente que precisa crescer e transfigurar-se necessariamente
em penas, garras e asas para alçar-se nos mais abertos voo.
Déia, minha avó, foi quem me ensinou a avoar.

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Publ in "Manga Verde", Contos, Secult 2015 / Ed Cousa 2016