Blú




                        Sou daqueles que não gostam muito de crônicas curtas, “padrão jornal”. Não necessariamente pela qualidade, em si, do texto. Há jóias que vêm em pequenas caixas  e muitas coisas boas sendo feitas, e é justamente por isso que me angustio, porque imagino que o cronista, criativo e diligente, teria tanta coisa mais a dizer e foi tolhido simplesmente no momento do maior vôo pela necessidade de se adaptar ao sufocamento do pequeno espaço. A coisa pernóstica e sempre presente do marketing contra a arte, aquelas imagens visíveis ou enrustidas de anúncios  que pressionam as colunas de jornal logo ali, acima e ao lado de sua cabeça, para patrocinar o espaço do texto.  

Tenho ainda uma outra desconfiança, quando os temas para as crônicas vão ficando muito rarefeitos ou batidos, e daí os assuntos acabam resvalando  com muita frequência no trivial adornado pelo dia-a-dia doméstico do cronista. Mas como toda regra tem pés de barro, chegou também o meu dia de aderir à tendência de falar novamente de cachorros. Os meus, é claro. Sim, e por coerência falo mais de cachorros ou passarinhos porque não domino o  assunto gatos. Talvez por uma infelicidade de menino, não sei. A maior parte da infância tive asma, essa doença dos infernos, e dessa forma fui terminantemente proibido de ter gatos. Quando brincava com eles, era sempre às escondidas, para não levar bronca em casa depois de começar a chiar. Mas, mesmo de longe, aprendi a gostar das criaturas felinas. Há um inequívoco charme e um tanto de mistério no seu jeito. Quem não enchia o coração ao ver o filhote branquinho se espreguiçando depois de uma soneca sobre a almofada de veludo da casa da vizinha? A beleza, a leveza, a elasticidade. Aquelas patinhas que descansavam inertes nas brincadeiras e quando a gente pegava pra ver de perto, surgiam garras assim sem aviso, e uma agilidade capaz de fazê-los num susto da mais lesa preguiça ao topo da árvore num piscar de olhos. Já dizia a tia velha que eram onças em miniatura,  cabia lembrar.   
Seja como for, os cachorros, essa minha especialidade, são bastante diferentes dos gatos. Sou meio como eles, acho. Às vezes gostam de agradar, mas no fundo são territoriais, turrões, estranham à toa ambientes, pessoas e situações sem dar aviso,  e isso sempre piora com o tempo. Jogando um pouco contra os instintos, estão sempre querendo ser gente mas nunca aprendem. Acham que seus latidos e rosnados são falas apenas porque habitam próximo dos humanos, mas deve haver espinhos nesse trajeto, com certeza, porque eles param sempre no meio. Não chegam a ser gente. E continuam cachorros. Com sentimento de gente, mas sem poder falar. Sofrem, se alegram, não escondem as emoções, transformando a incapacidade de articular palavras em gestos e movimentos tantas vezes exagerados. Desde criança me sinto em casa com eles, -- essas outras crianças -- como se eu fosse um irmão mais velho. 

O fato é que esta já é a segunda vez que arrisco falar dessas criaturas, mas prometo aos compassivos leitores que provavelmente será a última, porque depois deste segundo cão que apareceu recentemente na minha vida, não sei mesmo se haverá cronista vivo daqui a um ano ou menos pra narrar sua história.
                        Falei tempos atrás sobre Loki, um Border Collie preto e branco que nem aqueles dos  filmes, sensível e cavalheiro , à exceção da forma muito particular de cativar a humanidade, o vício irresistível de dar uma mijadinha afetiva sobre as pessoas de quem gostava mais. Pois naquela época, ele estava ainda com quatro meses, filhote em formação. Agora a criatura já tem um ano e meio, e confirmou suas tendências. Maduro para a raça e a idade, meio filósofo e desconfiado, mas sempre um gentleman, a ponto de ser chamado carinhosamente pelas pessoas da família de “Lord”, devido a sua fleugma típica de um lorde inglês. Bom, se não é isso, ao menos ele disfarça bem. Gosta de crianças, aprendeu a obedecer aos comandos mais básicos e quando alguém vai dar-lhe algum carinho, ele o recebe pacificamente, se desmancha todo naquele tapete de pelos. E foi pelo encantamento com o tipo de cão, com todas essas características que buscávamos aqui em casa, um cachorro que não fosse  de raça  brava demais pra não dar problema com crianças nem pessoas na rua (um tipo de preocupação que carrego desde pequeno, quando já presenciei problemas demais com isso), um bicho que fosse interativo e inteligente, capaz de aceitar algum treinamento mais básico na adaptação ao lugar onde iria viver, e enfim, um cão-companhia, que é uma das características mais buscadas nos dias de hoje, esses são traços que não faltam no nosso bola de pelos. Mas isso tudo era pouco se imaginarmos que o bichinho, no fim das contas, estava sozinho. Mesmo dando atenção, passeando sempre e tal, parecia necessária a companhia mais continuada de um outro pra fazer seu mundo (coisa da nossa cabeça) ter mais sentido e completude. Daí, embarcando por essa via passional que tantas vezes faz a humanidade andar meio que às cegas, foi que chegou aqui em casa o outro, cãozinho, Blue (Blú, para os íntimos), também um Border Collie, mas da variação cinzenta e branca com olhos bicolores conhecida como  “Blue Merle”. Diferentemente de Loki, que veio de logo ali, de um criador caseiro e amigo que mantém apenas cães dessa raça por puro gosto e eventualmente cria apenas por recreação, Blú veio de um canil no sul do estado, a duzentos quilômetros de distância, um desses multiplicadores infelizes de animais, fomos saber depois. Soubemos da dica do cãozinho da mesma raça do nosso através de um amigo  que o viu e sentiu que o bicho estava sendo maltratado no local. O proprietário do canil, com a sensibilidade de um Tiranossauro Rex, em vez de aguardar que fôssemos buscá-lo em um mês, na data combinada,  teve a desumanidade (sem nosso conhecimento), de enviá-lo por um portador antecipadamente, dentro de um carro velho, sem adaptação nenhuma ou o menor preparo para uma viagem que normalmente dura em torno de quatro horas até a capital. O bichinho veio no sacrifício, provavelmente jogando pra lá e pra cá dentro de um porta-malas quente e sem ventilação, situação claustrofóbica que certamente iria gerar ou amplificar alguns traços de sua personalidade das quais falaremos mais adiante.
                        Fosse por genética, aluação ou seu histórico infantil, pois esse Blú era mesmo um louco. Desde muito pequeno, a imagem perfeita de um cão psicopata dos infernos. No início, coitadinho e adoentado, tendo sido gerado sem qualquer permissão num desses “canis profissionais” que mais parecem uma loja de horrores e  viajado num trem da morte de Auschwitz da qual ele não tinha a menor culpa, ainda chegou com uma feia tosse, diagnosticada como gripe canina, tinha carrapatos e demorou em torno de um mês para ser curado de todas as doenças com remédio forte, corticoides, antibióticos e uma alimentação com ração da boa e muito cafuné. Achávamos que não ia vingar. E o detalhe é que, apesar dele ter esses traços ansiosos e desde cedo já mostrasse um comportamento amalucado, ele tinha aquele olhar de coitado com um olho cinza e um azul que faziam e ainda fazem qualquer pessoa cair de compaixão pela peste.
                        Sim, pois por detrás daquela fofura típica da raça, os olhos bicolores e aquele jeito de simular submissão ao primeiro contato humano, imaginem por um instante o contrário disso tudo, um bicho indomesticável e completamente contrário à raça, contrário ao seu próprio colega e quase-irmão mais velho, Loki, que inconsolado e um tanto envergonhado pelos shows do irmão mais moço, acompanhava tudo aquilo. Ao contrário de Loki, Blú não aprendia nenhum comando por mais básico que fosse, latia e uivava a noite toda durante meses depois de sua chegada, e ainda hoje, é o que mais late quando alguma coisa acontece na porta da rua. Está sempre de guarda e já se colocou como o líder da dupla nada sertaneja. Não comia direito, e quando comia, era tão exagerado que passava mal. Isso pra não falar que, como todo cachorro, adorava havaianas, sapatos, pés de cadeira e brincar com uma ou outra meia que achava pela frente. A diferença é que Blú não apenas “brincava” com os objetos, mas os engolia um por um. E isso é coisa cujo conhecimento (não vou dizer como) o leitor já deve imaginar a forma como fiquei sabendo, ao fazer a limpeza diária do quintal. Pois é. Comia havaianas, meias, calcinhas, cuecas, toalhas, bolas de gude e até bola de tênis que era utilizada para seu quase-treinamento. Tudo isso aparecia depois flutuando em montinhos espalhados pela área. Tudo bem, quanto à  bola de tênis, ela não foi engolida de uma vez só, mas com o tempo, em uma semana, foi aos poucos sendo triturada e deglutida para virar comida de cachorro. No final, acabou tendo o mesmo destino. Não bastasse isso, ele surrupiava esses objetos, meias, calcinhas e tal, e levava para seu esconderijo secreto embaixo das palmeiras do jardim da frente, certamente para algum ritual gastronômico antes de simplesmente os engolir por inteiro. Maluco, como podem ver.
                        E não era apenas no terreno da alimentação exótica que ele se enveredava. Blú tinha “o cão” no corpo (com perdão do trocadilho): entornava a bacia de água, mijava no pote de ração, fazia suas necessidades ao lado da comida (coisa geralmente estranha vindo de um cão), e ainda na idade precoce de quatro meses, apegava-se na perna das meninas que visitavam a casa, daquela maneira que todos sabemos como os cachorros (adultos) e afoitos costumam fazer. No veterinário, era sempre uma vergonha. No início, era uma operação de guerra para levá-lo ao carro, que detestava (provavelmente memória traumática da viagem que fez), e depois disso, ainda tirá-lo da enorme caixa em que o levávamos para que ficasse mais confortável, era uma guerra. Isso, no começo. Depois de um tempo, era o contrário. Já voava fora da caixa e partia pra cima dos outros cachorros na fila da clínica, a maioria por sinal, cachorros de chaveirinho, aquelas miniaturas que hoje as pessoas gostam muito por conta de se adaptarem melhor aos apartamentos.
                        E como todo cachorro maluco, em Blu persistia, é claro, a tal fixação  pela bolinha de tênis. Ora, sabemos que os cães adoram  buscar objetos, pedaços de pau, chinelos voadores, discos de plástico ou o que mais o dono quer utilizar para seu treinamento. Às vezes buscam e trazem de volta ao dono, e na maioria das vezes pegam é pra fugir e tirar onda mesmo. Blú era viciado em bolas de tênis. As mesmas que ele depois levava para seu esconderijo gourmet e devorava. Eu sei, acreditem, ele realmente comia aquela coisa, já vi traços coloridos fluorescentes verdes em objetos e situações que o momento me impede de narrar. Era uma obsessão tamanha pela bola de tênis que ele não apenas ficava meio vesgo quando pegávamos a bolinha na mão para jogar, mas depois de buscar umas trezentas vezes seguidas, sempre passando por cima de Loki e de tudo o mais que estivesse em sua frente com a energia inabalável  de um trator e uma incapacidade de ficar cansado que dava gosto da gente ver, ele meio que namorava com essas bolinhas durante horas a fio, as levava pra todo lado, quando ia beber água, quando ia comer, quando ia dormir, até que a bolinha ia desaparecendo misteriosamente à medida em que passava para o terreno nutritivo.
                        Enquanto Loki era timidez, harmonia e retraimento filosófico, Blú era um furação de instintos e garras, dentes e pelos. Coisa de, a rigor, se fosse pra recomendar mesmo, precisaria tratamento por anos a fio, com um bom analista canino. Sim, pois, no caminho de um possível entendimento sobre aquilo tudo, imaginamos várias situações como diagnóstico: Blú havia sido vítima de algum tipo de tortura ou abuso infantil de cachorro, deve ter apanhado, foi maltratado seguidamente, e seus três ou quatro meses no canil, somados à dura viagem de sua localidade nativa até a capital, por horas dentro de um porta-malas quente e abafado devem ter sido tão, mas tão traumatizantes que o tornaram essa criatura impossível, e na ausência de algum assistente social ou psicanalista de cachorro, ele agora  carregaria para toda sua vida essas marcas, expressando-as na sua forma de estar-no-mundo.
                        Mas a vida é sempre surpreendente, e se a mente e o espírito estão abertos, o aprendizado é contínuo. Digo isso porque, pelo quadro apavorante narrado, a previsibilidade lógica parecia já declarada sobre toda a situação, e a disparidade cristalina entre personalidades dos cães estava mais do que sabida. Loki e Blú eram antípodas completos, e a sensatez e equilíbrio de um destoavam por completo do alvoroço e temperamental sanguíneo do outro. Daí a surpresa, no segundo tempo desse jogo, quando me julgava um entendedor do mundo canino e a partida já parecia decidida, qual não foi a surpresa ao fazermos o “teste da rua” com os cachorros. Enquanto “Loki, o Lord” em casa era o doce e a polidez, e Blú quase um “Serial Killer” no temperamento, quando chegávamos à rua era exatamente o contrário que ocorria. Loki, deixando sua habitual timidez de lado, desembestava-se à frente na coleira e corrente sem aceitar comandos e querendo puxar à força seu condutor, não enjeitando briga de outros cachorros, arrepiando o pelo à toa, montando em cima de qualquer cachorra na área  e ainda fazendo suas necessidades no meio da rua nos primeiros cinco minutos da primeira ocasião que lhe surgisse. Enquanto isso, Blú agia, ao contrário, como um calmo e receptivo cão-guia, aceitando o comando e olhando para trás toda hora para se certificar do seu dono, uma espécie de doce anjinho da guarda obedecendo ao pulso da mão e à voz do dono,  compreendendo tranquilamente o lugar onde estava, sem maiores ansiedades e interagindo calmamente com tudo ao redor. A vida...
                        Bom, renegando uma vez mais qualquer razoabilidade sobre todos os fatos da vida, concluí depois desse ano e meio de experiência com as duas criaturas que eu sabia cada vez menos do mundo animal e parei de perder tempo buscando explicação do pai goooooogle. Percebi que parecia filosofia demais pra cachorro, e as razões não tinham muita razão no fim das contas. Os cães não parecem apreciar muito Déscartes, Kant ou Hegel.
É por isso que, hoje cedo me bateu uma idéia, ao ler o anúncio do jornal e ver as propagandas de salão de beleza canino, alimentos especiais, roupas e acessórios (inclusive jóias) e perfumes importados de petshop, no fim das contas eu mesmo acabaria não achando nada demais que um bom psicanalista especializado em pets uma hora dessas parasse pra montar seu consultório e dar uma atenção especial à vida interior desses  bichinhos. Só adianto um segredo como recomendação básica para o futuro  psicanalista canino, para que não tenhamos outros dissabores: por gentileza, enquanto estiver em sessão, não mostre ao Loki nenhuma perna disponível nem ao Blú nenhuma bola de tênis, por favor.


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publ orig in "Alma de Cortiça", Crônicas - O Aleph , 08-2015 - reg AVCTORIS, jul 2017