Loki



Mas que bicho é este, que ainda quer se tornar personagem, este tal Loki, uma pequena criatura com nome de Deus Viking, o deus mais zoeiro e brincalhão aliás, que aprontava todas nos jardins sagrados de Asgard por conta de seu ciúmes e sua eterna rivalidade com o irmão famoso Thor pela preferência do deus-pai Odin?

Essa pequena bola de pelos chegou aqui em casa assim, meio de improviso, quando um dia fui ver um anúncio de uma bicicleta de corridas num sítio de vendas na internet e, assustado e desanimado com a tal bicicleta que tinha preço de carro, já ia mudando o navegador para o fatídico e viciante mundo dos jornais online quando topei sem querer com um anúncio de cachorro, um bichinho meio diferente, todo branco e preto, com cara de arteiro, me olhando fixo naquela foto digital. "Border Collie", dizia o anúncio. Conhecia a tal "Lassie", o mais famoso Collie do mundo, quem não conhecia? Mas esse tal Border, nunca tinha ouvido falar. Apenas a imagem me lembrou que eu já o tinha visto em algum filme desses de sessão da tarde, que sempre tem criança e cachorro. 

Desconfiado mas interessado, observei que, não sendo a proposta de venda oriunda dos tais "criadores-torturadores" profissionais de cães que criam centenas de milhares de cachorros como se fossem uma máquina industrial de produção em série , --situação que infelizmente ainda existe em muitos canis por esse Brasil --, mas se tratava na verdade de um particular aficionado por essa raça que uma vez por ano criava em sua própria casa, entrei em contato com o vendedor naquele dia mesmo e fui ver o cachorro no dia seguinte, um sábado de manhã. Lá chegando, contudo, aquele da propaganda acabava de ser vendido a um terceiro, uma vez que o irmão do vendedor, um dos que também cuidava dos bichos, não fora avisado da minha intenção. Tudo bem, de todo modo havia ainda outros cães da mesma raça, um pouco mais novos do que o anunciado, e um deles, em especial, bem parecido com o tal da propaganda. Muito mais novinho, ainda, em torno de trinta dias, mal conseguia se movimentar fora da área onde estavam seus pais, no cercado dos fundos. Fiquei de voltar lá daí mais uns dias, tempo suficiente para os  dois meses recomendáveis para o desmame.

Pois é, acho que a história real começa mesmo e´daqui pra frente. Jà fiquei impressionado na primeira vez, e na volta à casa do vendedor, três semanas depois, não teve jeito. Foi olhar pra aquela criatura e querer levar embora. Preto, com umas pinturas de branco no focinho, nas patas e na ponta do rabo, e com uma timidez melancólica inconsolável para um filhote de cão, sem dúvida era o cachorro mais estranho que eu já tinha visto. Não pela estética, porque era uma graça, mas do ponto de vista "psicológico", se posso dizer, do comportamento. Eu, que já tive foi cachorro de tudo que é jeito nessa vida, a maior parte de vira-latas catados na rua. O jeito de olhar daquele cachorro era o mais inteligente e curioso que eu já tinha visto. O bicho não parecia olhar ali, os objetos ou os brinquedos à mão ou o primeiro contato que você lhe oferecia. Era um olhar de resvalo ao querer saber a intenção da pessoa que estava mais próxima. Um olhar perguntador.  E olha que o bicho não tinha ainda dois meses. Quietinho e comportado como nunca vi -- eu que também atuei tantas vezes como "pai de família" de outros cachorros posteriormente adquiridos indiretamente por minhas irmãs mais novas, porque a parte "brinquedo" dos cachorros sempre ficava com elas, mas a "parte dura" de cuidar, limpar, dar vacina, levar pra passear geralmente era pra mim que sobrava depois, o irmão mais velho. Trouxe  comigo no carro, dentro de uma caixa, e estava bastante fedorento, uma vez que o vendedor explicara as particularidades da raça, os cuidados nessa época ainda de bebês, ele ainda não tinha dado nenhum banho por precaução e que  os tais banhos cíclicos ainda não eram recomendados até então por uma questão de saúde do animal.

Dentro do carro, sobe ladeira, desce ladeira, para em semáforo e arranca novamente, leve, com aquele pequeno gambá solto na caixa, até chegar em casa com a criatura debaixo do braço. Na adaptação do primeiro dia, o bichim mal conseguiu sair  da casinha, e quando saiu finalmente, ainda ficou todo enrustido, enfiava-se no primeiro canto escondido que surgia no quintal à frente e não latia nem corria, impactado pela forte mudança de vida repentina, a súbita partida sem tempo para despedida dos pais e dos seus outros três irmãos e irmãs. E todos  gostando logo de cara do bichinho aqui em casa, e faz carinho , e quer pegar no colo, todos com questão de tratá-lo como pessoa ou  uma coisa extremamente preciosa, veio sobrinho e sobrinha de tudo que é lado, o bicho é carregado daqui, beijinho de lá, sobe em cima de cama daqui, caga dentro de casa, enrola-se o bicho num cobertor de lá (era época de inverno, com ventos mais frios), e nada do bichim se soltar. Foi assim durante os dois primeiros dias.

No terceiro dia, meu amigo, como se o santo ressuscitasse dos mortos, houve uma mudança radical. Parecia que aquele filhote antigo tinha fugido do quintal, e surgido outro no lugar. O bichim pulava pra todo lado atrás de uma bolinha de tênis descolada pra virar brinquedo, mastigava e rasgava tudo que é sandália havaiana -- seu prato preferido -- roía sacola, caixa, recipientes de plástico e todos os mini-brinquedos improvisados dos quais mais gostava, meias e sapatos de todo tipo, cor e sabor; sumiam toalhas balançando no varal, plantas do jardim, cada dia era um canteiro de terra diferente mastigado ou escavado, sem falar nas tais garrafas pet, que pareciam não esgotar nunca sua capacidade de brincar vinte quatro horas ao dia sem parar pra recarregar a bateria. De hábitos inteiramente noturnos desde que chegou até nós, ficava com a corda toda pelas madrugadas, e depois, no dia seguinte, lesado e querendo dormir de dia, fugindo para sua casinha dos fundos, no meio de travesseiros velhos, ossos de petshop e caixas de papelão.

Só com o tempo foi dando pra descobrir mesmo quem ou o que, afinal, era esse cachorro. Não conhecíamos pessoalmente nenhum dono desse tipo de cachorro, e praticamente todas as informações  sobre as particularidades da raça vinham da internet, do pai-google de todas as horas. Conforme diziam os especialistas, ele era do tipo vigiador, com DNA de cão pastor, daqueles que ficam na porta da casa ou do quarto vigiando enquanto tem alguém dentro e não sai enquanto a pessoa não sair. Inteligente, adora crianças mas também faz guarda do local quando já se encontra morando no espaço.  Do tipo que anda próximo do dono aonde vai, e de vez em quando embola-se nas pernas dos outros ao ponto de causar acidentes. Se alguém dentro dos seus limites territoriais ainda  faz um qualquer movimento de ir-e-vir, olhe pra baixo e aquele ser peludo vai estar ou embolado nas suas pernas ou encarando com a cabeça meio inclinada, a boca aberta com língua de fora e aquele olhar perscrutador tentando adivinhar qual a próxima ação que vai lá no fundo do seu espírito. Aquele pequeno furacão adivinhava movimentos e intenções de todo mundo. 

Daí que eu não tinha errado quanto ao diagnóstico do olhar. Bicho danado! Ágil e disposto como nunca vi, eu ainda não cheguei a contar, mas se alguém dispusesse de tempo e vontade, poderia passar uma tarde inteira apenas na atividade de jogar uma bola de tênis o mais longe possível e pegar de volta, incansavelmente. Alguma suspeita já lancei sobre a origem dessa energia e a fonte de alimentação. Será que está na ração o milagre? A energia do bicho não acabava nunca. 

Loki está indo já pelo seu quarto mês de vida , e na rua, entretanto, continua uma criatura tímida, assustada com carros, pessoas e todo o barulho ao redor. Ainda não gosta nem de andar de carro, e quando sai, é sempre contra a vontade.Talvez por motivo da tal quarentena recomendada por dez entre dez veterinários, para aguardar o período de inoculação e eficácia das vacinas recém-tomadas (quantas vacinas, valha-me Deus!. Na minha época de menino, os vira-latinhas de estimação já vinham vacinados, comiam como ninguém as próprias sobras de comida da casa e viravam na rua sem donos e nunca ficavam doentes). Sei não o motivo, apenas desconfio que hoje, por sua inteligência já revelada mesmo em inocentes meses de vida, uma esperteza e noção de espaço e coordenação motora incomuns para um filhote tão novo, eu descobri que ele gosta mesmo é de fazer charme. Que o diga a quantidade de charme que joga para as meninas que me param quando estou passeando com o bichim nos calçadões e parques da vida. Pode estar bem e faceiro, fazendo zoeira e tudo, quando se aproxima alguma garota e vai mexer com ele, faz uma cara de coitado e de abandonado no mesmo instante, como se fosse a criatura mais maltratada do planeta e estivesse querendo ser levado embora por alguma bela alma reluzente. Isso sem falar nas crianças, por quem ele é inteiramente apaixonado. E ainda gosta de música, o danado. Fiz vários testes, com essa minha mania de psicólogo de animais, pra ver suas reações. Gosta do velho e bom rock, e fica meio melancólico com a música clássica. Acho que sua energia excessiva por conta da idade atua como um anti-estímulo, neste último caso, e o clássico, por criar um tipo de contenção emocional, meio que dá uma travada na sua busca de realizar a energia que tem no sangue. Daí o rock ser muito mais seu estilo, e ele se sentir completamente mais à vontade e com dose dupla de energia pra correr e aprontar das suas depois que fica uma sessão ouvindo Metallica ou Led Zeppelin.

Acima de qualquer outra coisa, Loki tem uma particularidade que de todas as que já vi, é a mais engraçada, e é algo que nunca reparei em nenhum outro cão que tenha passado pelo meu quintal. Ele mija nas pessoas! Sim, adora. Quando é afagado, acarinhado, quando alguém vai pegá-lo no colo fazendo muita festa ou bajulação, ele dá aquela mijadinha básica, situação que já andou me colocando em saias-justas com alguns amigos mais chegados. Pra sair desse imbroglio, eu explico que ele, o Loki, gosta de mijar nas pessoas, mas isso não é sinônimo de desapreço, não se preocupem. Ora,é só a pessoa comparar: nos grupos humanos onde se forma um tipo de "turma" para determinada finalidade de reconhecimento, não é assim que sucede? Uma espécie de senha de comportamento ou estética para possibilitar o reconhecimento mútuo? Um trejeito, uma fala, um gesto convencional. Os mafiosos japoneses, por exemplo, quando entram para a “Yakuza”, além do juramento, têm que cortar o dedo mindinho. Os motoqueiros Hells Angel's faziam suas típicas tatuagens, outros fazem pichações em muros demarcando territórios. Então, a molhadinha nos sapatos ou nos colos alheios não é definitivamente nenhum tipo de recriminação. Muito pelo contrário, eu já percebi que ele só mija em quem gosta de verdade. Na linguagem canina, é como se dissesse: "Eu te adoro", ou "Você é muito legal"... Toma aí uma mijadinha, porque você é dos meus, cara!”.

Aos poucos vou me tornando especialista na arte de interpretar animais, atividade aliás que parece cada vez crescer mais nos dias de hoje, e depois de uns tempos e  umas elucubrações, comecei a entender melhor e a admirar as táticas e intenções do meu cachorro. Apesar de bater uma dúvida de vez em quando sobre essa típica relação de propriedade para eu tentar ao menos simbolicamente definir quem é, de fato,  nessa relação , o verdadeiro animal de estimação do outro, quem é “o cachorro” de quem , no final das contas, se ele é meu cão e eu o adotei, ou eu sou o cachorro dele e vice-versa, e foi daí que  comecei a saber melhor que as tais molhadas fora de hora sobre as pessoas de quem gosta são na verdade, uma tática antiga e territorial, a mais clara e definitiva declaração de propriedade sobre o afeto e a pessoa do outro. Do tipo: "Ora, eu gostei de ti, vou mijando em cima pra marcar e dizer que é meu, aviso logo".

Talvez essa  "mijadinha carinhosa" seja uma tática vencedora ainda injustiçada e incompreendida em nosso meio humano por total desconhecimento dos seus propósitos. Um dia, quem sabe, nós também devêssemos conquistar essa arte de mijar nas  pessoas de quem gostamos muito e assim mostrar pra elas e é claro, e ainda para os outros "invasores de territórios alheios' que aquele ser ali, sobre o qual depositamos nosso maior afeto na forma líquida e hormonal, -- um tipo de assinatura -- tem certificado de que será amado até a raiz da medula por toda a existência. "Não mexam com ele!". E por tabela, isso ainda serviria também de consolo para a pessoa recém-batizada com nossa admiração dourada, uma vez que sempre se sentirá absolutamente amada pela vida afora, seja aonde esetiver. Acabariam de vez as sensações de solidão , aqueles demônios particulares que numa sociedade regida por números abstratos e rotinas concretas encerradas sob paredes ainda fazem tantas vítimas. Existencialmente a pessoa agora se sentiria muito melhor em razão de tamanha demonstração de afeto, e tudo isso gerado no fim pela atitude poeticamente deslavada de um cão.


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publ orig in "Alma de Cortiça", Crônicas - O Aleph , 08-2015 - reg AVCTORIS, jul 2017