Cine Trianon

Cine Trianon - Alegre/ES- década de 50 - (Foto: Enock)



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Meses, até anos, tentando falar sobre o cinema da minha terra natal, e sempre adiando, por inúmeros motivos. No peito, inesquecida a  necessidade de falar disso uma hora, não apenas pela importância do cinema para minha vida, mas daquele cinema, em particular, como deflagrador de vidas e descobertas, e o vínculo inextinguível com tudo aquilo que representa pra mim a sempre saudosa terra “do Alegre”. Cinema que,  depois de estar parado há alguns anos, teve o que sobrou de sua estrutura recentemente demolida.

No mais, sempre tenho dificuldade para escrever sobre minha terra. Quem, sem aviso, ainda insiste em se enveredar pelo inconstante território das letras, deve  esbarrar com essa questão, hora ou outra: quando o traço se torna emotivo demais, a coisa toda desanda. Tirando os excessos líricos de uma ou outra linha poética, que conseguem lidar melhor com isso, na prosa costuma ser desastroso. Muitos falaram sobre isso, já, e o mais famoso é Pessoa, na definição ontológica do poeta e sua lida com a ambivalência do sentir-expressar. Porque a emoção, a comoção, a derrubada de muros ou sua construção por um motivo ou outro é coisa sempre presente em quem lida com a arte, sua ponte eleita para o mundo. A questão aqui é mais da esfera de que, consentir em ser derrubado nas linhas nem sempre é um bom prato para o possível leitor. Não há resposta certa nesse território clássico entre a objetividade e subjetividade. Ora, tudo é subjetividade, -- bora adiantar a pauta -- ninguém perderia mais tempo com a outra opção nos tempos de hoje. O ponto e´saber em que grau ela se torna hermeticamente inacessível como absoluta viagem individual de autoconhecimento e formação de signos impenetráveis em um mundo que só viceja sob a casca, ou ela busca, de alguma forma, mesmo por vias tortas, mesmo com um grão de desespero, alguma expressividade, busca um contato com o exterior, independente de época, política ou gosto. Mesmo que a verdade seja bem outra, para o autor, o artista, o criador, a busca dessa conectividade possível não deve ser relegada, sob pena de se enterrar de vez o maior pressuposto de toda arte, que é sua possibilidade de se comunicar. Mesmo que a caneta, feito lâmina afiada adentrando o corpo ainda não bem frio sobre a mesa, esconda atrás de sua precisão, seu desapego e a suposta indiferença  ao sangue uma sequência de eventos avassaladores, do ponto de vista de quem escreve. 

O fato é que alguma impessoalidade há de convir a uma melhor fluência de idéias, memórias, à inteligibilidade para a transição dialógica. Nada disso diz respeito a qualquer objetividade, cujos defensores idiotas, já dizia Nelson, devem estar todos mortos. Pois no fundo, todos nós rabisqueiros em algum momento vamos  concordar, mesmo sem querer: a escrita é um exercício mesmo de navegar como um Titanic sobre águas minadas de duros e frios icebergs. E pior: já sabendo, de antemão, que todo Titanic afunda em algum momento. Escrever é não desistir, sabendo das incertezas certas de todo resultado, mas não se importando tanto com isso, porque a justificativa está mesmo é no processo.

No que me cabe nessa história, como me ocorre com tanta frequência quando vou escrever, falar ou pensar sobre "algo em andamento", seja leitura recente, fato político, notícia de jornal ou sentido do mundo, eu me embolo demais nas palavras, não tenho noção clara do objeto, os sentimentos e as emoções se misturam demais jogando tudo que é cerebral ou articulado, estético ou elaborado, pra escanteio, deixando reverberar apenas as outras forças que ficam lá dentro, afiando as garras ao bote sem pedir permissão. Portanto ,não sou bom exemplo na compreensão e no exercício daquilo que eu mesmo acabei de afirmar ali em cima. Estou sempre num aprendizado.

Em outros tempos, isso me deixou em enormes dificuldades com a vida acadêmica, por conta da famigerada "data limite" pra entrega de  trabalhos, a total incapacidade de fazer uma revisão honesta dos calhamaços de papel sem antes deixá-los decantar como um bom vinho por um certo tempo, e ainda por eu ser um eterno empolgado  com tudo que me vem à mente para a escrita. São muitos mundos para a tentativa de serem conciliados no traço. E sempre acho que a intuição vai cavar mais fundo no osso do que desejo, mesmo tendo em algum lugar um cérebro, que é tantas vezes posto de escanteio nessas horas. Apesar disso tudo não posso  reclamar, porque por outro lado  é ainda essa força, essa pulsão de vida que se derrete em palavras que me mantém ligado ao desejo da escrita e à interminável busca da poesia. 

Graças aos deuses, termino sempre me convencendo que a poesia  nunca precisou de nada disso para fluir. Ela vem naturalmente de "outro lugar" que não dos arquivos da razão. Querer acertar o prumo na busca de uma possível harmonia é  ser um pouco "grego", no sentido nietzscheano, quando o filósofo afirma que o resultado do mais rico processo artístico já surgido foi quando a pulsão Dionisíaca, destrutiva em si, informe, pautada pela ebriedade, o perdimento do sentido lógico, a cultura do exagero e do sugar a medula até que não sobre nada encontra sua antepara no Apolíneo, a contenção, a forma, a busca de um sentido, o equilíbrio aliado a  uma certa idéia de beleza que, embora não-sólida e varie conforme gosto, época e história, mantém sempre uma tendência enquanto lugar. Dionísio, o deus estrangeiro, egípcio, brutal em sua pulsão de vida, o instinto, o primal, potencialmente destrutivo se não fosse contido por Apolo, um deus originalmente ático, uma divindade de luz, da justa medida, da busca pela expressão e efetivação da forma antes que ela se espoje em pura animalidade. Se é no dionísiaco que nasce a pulsão, é no apolíneo que a arte se configura em matéria. Não está em nenhum dos dois a possível verdade, mas na tensão entre as duas forças, que precisam existir para que surja a centelha que permite o artístico.

Como dentro de nós não há divisões tão claras quanto gostariam os cartesianos, mas sim caminhos que se intercomunicam em sua dinâmica própria, essa interminável procura pela poesia é a mesma força que em mim alimenta o gosto pelo cinema. E  guarda também uma outra fonte, desde criança. De uma natureza física, se posso assim chamar. Se fosse situar em um local e um tempo, a primeira memória vem mesmo desse nosso "Cine Trianon", na cidade-jardim do interior do Espírito Santo, e era na verdade um prédio pequeno de arquitetura histórica, construído na era de ouro dessa região, coisa de quase cem anos atrás, em 1924, quando ser uma cidade de interior tinha lá seu orgulho e independência muito justificados, e ainda não possuía essa aura psicológica de desqualificação e um certo descaso arrogante perante o "mundo grande" e economicamente poderoso das capitais espalhadas pelo nosso país, como infelizmente hoje se vê em contínua expansão.

Por definição, cinemas e teatros são entidades que simplesmente não deveriam ser destruídas. Caso viessem a ser desativados por alguma razão, em sua funcionalidade, ainda assim os prédios deveriam ser conservados para sempre, pelos serviços prestados à Humanidade (assim, com H maiúsculo, em tempo de tantas minúsculas a nos rodear). Pelas mesmas razões notórias que hoje se preservam os anfiteatros gregos criados há 3000 anos atrás, em homenagem a Zeus e Dionísio (também o deus referencial do teatro, da máscara, da música e da não figuração pelo indistinto das formas da natureza que agem sobre o homem, enquanto Apolo referencia as artes visuais, figurativas) onde foram encenadas as primeiras tragédias que fundaram o ocidente, deveriam ser preservados e cultuados pela sua mágica memória. As peças e filmes que  ali foram exibidos, a capacidade do ator em comover, o sangue do artista criador, a beleza dos cenários, das telas, a dor, a alegria, a reflexão necessária e fortemente instigada sobre os temas encenados que tantas vezes mudam nosso olhar sobre a vida e que no fundo revelam e incandescem a presença humana na Terra, tudo isso faz com que esses locais transcendam sua  designação como apenas  mais um espaço urbano qualquer, de natureza física. Seus locais de encenação, de exibição, depois de inaugurados, não são mais locais tipicamente materiais, de  tijolos, tintas, madeiras e coberturas. Eles revestem-se na verdade da vida e das histórias de todas as pessoas que passaram por ali e deixaram impregnados nessa matéria bruta a energia de suas vivências, suas experiências e emoções que só foram possíveis em tamanha magnitude e beleza pelo fato de estarem ali, naquele local, nesse espaço-tempo, e não em outro qualquer.

Arrisco dizer que, se em qualquer processo de escrita e nas primeiríssimas aulas de qualquer oficina,  a dica principal do professor será invariavelmente "Evitem o lugar-comum, minha gente, se vocês querem ser escritores", hoje eu tô me lascando pra isso. Lugar-comum existe porque há arquetípicos espaços a que nós acorremos em grupo quando buscamos referências e a ótica do indivíduo não parece suficiente para sustentar valores ou propostas. Lugar-comum é  também a vida, a busca de contato com as multidões, a busca da saída necessária do casulo, ainda que não necessariamente tenha que se tornar a essência de qualquer arte. Lugar-comum e bordões como memória inconsciente tribal, em nossas veias ancestrais ás vezes são a revalidação de processos coletivos que depois serão filtrados e assimilados individualmente através de uma força muito poderosa que transcende e se instila. Ora, e por acaso isso não é o retrato do amor em suas fórmulas   tão pouco originais a bem dizer, o maior lugar-comum de todos? Padrão de grupo,  arquétipo e inconsciente coletivo em seus deslocamentos. Assimilação individual pelo olhar diferenciado e experimentação da vida aumentada pela sua potência. O que foge à previsibilidade aqui não sáo as batidas formas, e sim o olhar de quem ama e cujo toque tudo transmuta. É só observar o que acontece ao redor. Nós nos sentimos as criaturas mais originais do mundo quando somos tocados pelo sentimento. Mas há muito de ritual, muito de não-particular, de coletivo nessa espécie de teatro.  E não é menos intenso ou belo por conta disso. 

O cinema e seu direito a exercer também lugar-comum enquanto metáfora da luz e movimento que se acende sobre nossas cabeças no silêncio aveludado da sala com cheiro de pipoca fabricando uma infância com maior sentido; o  escurinho refrigerado, a pegada nas mãos do primeiro amor ainda na deslavada timidez; a chance do primeiro beijo, quiçá das primeiras ousadias não narráveis neste horário para adolescentes em fúria hormonal que depois, la´fora, não se lembrarão qual o filme que estava em cartaz. Lugar-comum na forma coletiva de se movimentar e experiência existencial única no sentimento do vivido.

Chamarei o querido "Cine Trianon", como era o nome oficial, de "Cine Paradiso", pela memória afetiva em analogia com um grande filme italiano (1988) do qual gosto muito, e que também fala de amor à sétima arte. O "Cine Paradiso" de Alegre tinha tudo isso, e muito mais. Situado na pracinha mais movimentada da cidade, alimentou por diversas gerações todo tipo de adorável lugar-comum que ainda será celebrado em ritual por milênios após essa singela fala, o mesmo sentimento que preencherá de sentidos tácteis ou oníricos infinitas realidades que ainda ocuparão outras salas mundo afora. Uma pena que isso não mais poderá ocorrer naquele cinema, naquela cidade. 

"Silêncio, meninos, porque não estão na casa de vocês!", dizia o projetista "Gigante", apelido de um saudoso cidadão alegrense que além de projetar os filmes, ainda cuidava da disciplina da moçada em polvorosa antes das sessões. Ainda me lembro da vez em que parou tudo no meio, acendeu as luzes e desceu da sua cabine de comando para passar o maior esporro que já tomei na vida, quando fomos lembrados não aos gritos ou ameaças, mas com a luz acesa, ele sem alterar a voz, Gigante duas vezes com sua presença intimidadora pela altura, --e mais intimidadora ainda por sua gentileza e natural delicadeza, um gigante que também era exímio musicista tocador de contrabaixo e se recusava a usar a força e ainda falava com autoridade poética era muito mais poderoso que um ogro brandindo uma clava -- nos lembrou de uma poderosa frase de Rui Barbosa que eu não me lembro mais qual é , mas era sobre algo relacionado ao destino de uma nação em retórica sobre o  que nós, jovens, escolheríamos fazer dela. O cinema sendo uma casa ou algo como uma nave espacial a caminho do fabuloso desconhecido na imensidão de glórias e sonhos e a atitude grosseira que desempenhávamos naquele momento, na zoeira infinita do cinema sendo algo realmente reprovável. Vergonhas coletivas devidamente nomeadas, luzes apagadas, sessão continuada na paz dos deuses e uma lição pro resto da vida a respeito de cultura e habitação de lugares públicos. 

Sessões de matinée de domingo com os Trapalhões e sua interminável infância em quarteto; Tubarão, de um iniciante tal de Spielberg e a música de suspense mais poderosa da sétima arte; o Superman do incomparável Christopher Reeve ; os primeiros StarWars, as primeiras explorações incríveis da sinestesia das salas de cinema ao entrarmos a bordo das famosas naves de Luke Skywalker & cia. A vontade de voar pelo espaço profundo radiado de estrelas e a primeira vez que vi um Cavaleiro Jedi bramindo o  belíssimo sabre de luz foram mágicas sessões de mundos e sonhos sentado a poucos metros do telão. Mundos que jamais se apagam. Passando o tempo, a idade crescendo e a mudança para as sessões noturnas, de sextas ou sábados , onde foram entrando as  exibições de Blade Runner, (assistido quantas vezes, meu deus, que eu até perdi a conta), a beleza inacreditável de Brooke Shields em Lagoa Azul e Endless Love pra levar as "namoradas ou quase" dependendo do resultado pragmático da sessão, logo em seguida iniciados os rituais de passagem com as aventuras politicamente nada corretas das comédias universitárias americanas e por último, mas não menos nobres, os primeiros filmes pornodidáticos a que tive acesso, ainda na surdina, enganando o vigia de portaria com a lorota de que nós aqueles garotos de 15-17 anos todos já éramos maiores de idade, mas isso ninguém precisará saber nunca porque com certeza jamais vou contar.

Quando deixei minha cidade, o cinema já estava fechando as portas, a construção histórica apresentava os sinais da idade, e as más políticas em todas as esferas de poder jamais se dignaram cuidados e interesses patrimoniais nessa questão, como ocorre reiterada e imensamente neste solo brasilis por toda parte, e a coisa toda veio mesmo abaixo recentemente, para tristeza de todos que passavam pelo local e viam, naquela nova boca banguela de terreno baldio sem destino certo e nas mãos de especuladores em local valorizado -- não mais o cinema em funcionamento, coisa que não acontecia há tempos -- mas ao menos a presença consoladora e bonita de sua fachada histórica, que se tornou um dos retratos mais característicos da pequena e saudosa cidade.  Quem sabe o que virá no lugar, daqui a uns tempos? Segundo me informam os amigos de lá, hoje é apenas mais um lote abrigando ratos e mato próximo às margens do rio que corta ao meio a cidade.  Objeto de disputa de herdeiros. Algum Eike Batista da vida certamente surgirá daí a uns tempos pra reivindicar de alguma maneira  sua posse, seja comprando barato o que não tem preço para revender ao mercado inóspito, seja propondo mais um "milagre" de urbanismo para nossas tristes misérias urbanas, enfim, o espaço imaginário, espiritual, artístico, humano que aquele cinema ocupou, pelo visto jamais poderá ser ocupado por qualquer outra coisa nos nossos tristes dias contemporâneos, que , -- acudam os deuses – cada vez menos reserva espaço para o imaginário, espiritual, artístico e humano.

No filme famoso do cinema, o clássico "Cinema Paradiso", mesmo depois de um trágico incêndio que põe tudo abaixo, surge um herói benfeitor – um garoto crescido na cidade e influenciado em sua vida pela beleza dos filmes --  que por sua conta e risco resolve retornar a arte ao que era antes, dando novamente uma chance à felicidade. Gostaria de acreditar nisso, mas algo me diz que vivemos por aqui uma vida sem heróis...

De meu lado, só tenho a agradecer : Obrigado por tudo, meu querido "Cine Paradiso ".







publ orig in "Alma de Cortiça", Crônicas - O Aleph , 08-2015 - reg AVCTORIS, jul 2017

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