Caverna

Umidade sem fim
lambendo paredes, chão e teto
depois da estação das chuvas
por mais um ano
A incomodança dos pedreiros
Telhados que, mesmo sendo consertados
estão sempre quebrados
como se algum anjo à toa, entediado
entre nuvens, vivesse lhes tacando pedras
As gramas que crescem exageradas
desenfreando-se por entre as frestas
da calçada mal coberta
nos cantinhos aos pés das coisas
O vão da cobertura, que mesmo sob protestos
aninhou por vários verões as multidões
de pombos invasores, sua beleza
e suas pragas
O vento bom do fim de tarde
despistando o calor dos infernos
no balanço da rede
A chuva, quando vem boa e forte
e a paz por dentro que consigo traz
repleta de vida e voz
No canto do jardim, o formigueiro
que eu não quis erradicar, apenas
pra poder seguir os planos das formigas
através das estações do ano
O novo ninho de beija-flor engastado
feito pedra colorida de diamante-rubi
nos galhos e espinhos aduncos do limoeiro
As torneiras que revezam-se em seu
eterno gotejar
Aperta-se uma, a outra solta
Conserta-se a outra, e uma terceira
se revolta
apenas para atrapalhar o fluxo de água
da máquina de lavar
A caixa dágua de casa antiga
que, mesmo depois de fechados
todos os registros da rua
continua entrando e vazando águas
esotéricas não se sabe de onde
Um quarto dos fundos
atulhado de pedaços de coisas
que nem se lembra que um dia  existiram
e quando lembramos, é só desespero
Virando as costas por um tempinho
Uns dias de férias sem movimento
e a mesma multidão de baratas, cupins
e até ratos
desocupados calham de querer
achar aqui seu novo lar
A natureza não para nunca
Tarefa ingrata de iscar, dedetizar ou
eliminar na chinelada esses invasores alienígenas
e sentir, em algum canto, uma espécie antiga
de censor quase-budista recriminando
a eliminação sistemática de outras vidas
apenas por questões de conforto
da humanidade
(mas isso foi até antes de aprender sobre
o cultivo de lagartixas)
O vizinho e seus barulhos incessantes
há anos sem conseguir ou querer
terminar a construção que certamente
vai levá-lo para além dos confins
do quinto inferno de Dante
O carteiro que se irrita quando a campainha
não toca, e já se troca a pilha, se troca
o modelo, se amarra com arames
se protege das chuvas, colam-se
os cacos, se apregoa no berro
e nada nessa vida consegue fazer
com que o mundo chegue de forma
normal à casa além da porta
O ar-condicionado que produz tanta condensação
que uma hora dessas poderá ceder suas águas
para matar a sede da humanidade
A churrasqueira velha de alvenaria
que depois virou depósito de tranqueiras
ninho de lagartixas, esconderijo de morcegos
Pardais, garrichas, coleiros e canários-da-terra
Rolinhas e galos-da-serra em multidões
Os bem-te-vis enormes, afogueados
e garganteiros em suas afirmações
de território, roubando a comida
dos cachorros
Os cachorros, de boa, observando
o bem-te-vi roubar sua ração
Um deles arruma chumaço de capim
e pedaços de pau e protege a comida
O outro nem se importa, fica de longe
apenas filosofando a cena
Vizinhos de deus, acompanhando de ouvido
os cantos lamuriosos matinais das senhoras
e seus terços nas novenas da semana santa
Na entrada, nos jardins e no quintal
a levada de plantas bem intencionadas
mas, displicentemente regadas,
nem sempre chegam à flor
A visão do Centro, pela escada dos fundos
a vista ampla para os morros verdoejos ao longe
A saudade de uma época que não se vai
e a lembrança remota das mangas
A ocupação do espaço vital
repleto de livros ainda não lidos
estantes inteiras de preocupações filosóficas
[essa herança maldita]
Desgraças políticas e esperanças vãs
Tudo salvo pela literatura,
que pode não resolver o problema
mas ao menos amacia o peito
e faz valer a pena
O desespero , quando a moça da limpeza
de vez em quando chega por aqui
e ameaça botar toda essa desordem a se perder
Quadros, cerâmicas, atelier-in-progress
Reminiscentes do antigo estúdio,
o sossega-alma dos instrumentos musicais
e a beleza de encantar a vizinhança com
as inspiradas sessões de guitarra
e bateria
(de que vale a vida se não se puder
atulhar o habitat de objetos-de-alma?)