O último mergulho




Para Carla, Cris e Cláudia (e Carol, que veio depois)






Enquanto o horizonte diminuía à proporção em que a viagem abraçava
seu destino e o carro descia vagarosamente o último trecho de morro
antes da chegada, lá na frente, num pequeno ponto de luz, o vértice
azul de um mar verde e brilhoso triangulava num foco de aumento constante.
Como as lentes de uma câmera em mãos amadoras, procurando alcançar
em zoom seu motivo num ponto específico da paisagem, o vértice de
mar apontava como uma seta para baixo, ainda a longa distância, transportando
a luz para o interior das quatro visões infantis multietárias e cruzadas
que, justamente nesse instante, paravam toda a bagunça no banco de
trás do automóvel e silenciavam por uns segundos, estendendo a vista até
onde dava, atravessando com o olhar o para-brisas daquele poderoso Fuscão
VW Azul Claro e rasgando o universo em direção à praia.

Um ano se passara, até então, desde que tinham ali estado pela última
vez os quatro irmãos. Vinham há duas ou três horas na estrada, e como
parte de uma brincadeira ritual, repetida todos os anos por incentivo dos
pais, passavam boa parte do caminho tentando ansiosamente identificar e
relembrar a preciosa rota para o balneário, como um navegador português
a procurar um novo caminho para as Índias. Esse processo humano e ancestral
de diferenciação da natureza e identificação da vida pelas beiradas,
buscando referências acerca do mundo e das estradas ao redor, sempre
muda a cada era, para permanecer o mesmo. Se nos tempos idos, homens
peludos perdidos em planícies distantes com suas rudes ferramentas marcavam
o caminho da caça, memorizavam o efeito das plantas e dos ciclos da
natureza, pintavam suas danças e seus rituais nas paredes das cavernas,
os novos filhotes primatas, a bordo de sua nave atemporal e azul, incorporavam
a seu imaginário aquilo que a própria vida trouxera no último ano,
em termos de amadurecimento e aprimoramento cíclico das capacidades
inatas de interagir com o que os rodeava.

Num primeiro momento usavam a intuição, configurada pela sabedoria
pré-lógica, aquela sabedoria a priori, talvez a maior sabedoria humana, da
qual já nasce plena toda criança. Como alguns sábios centenários sempre
apregoaram, sobressaíam na tenra idade os instintos como olhos de pegar
o mundo. O cheiro do mato, da cidade, das fazendas da terra natal, a duzentos
quilômetros do litoral, sendo substituído gradativamente por cheiro de
estrada, de queimadas recém-tocadas à beira da praia, cheiro molhado e
revigorante do ar salgado, antecipando-se e misturando-se aos poucos ao
doce e irresistível odor acre dos abacaxis e às exuberantes amendoeiras
saídas de recente florada, já frutificando e prontas para ceder as famosas
castanhas para a festa da molecada.

No contorno da vida, que sempre se renova a cada ciclo, tinha lugar na
temporada seguinte a fase lógica e de articulação, pareada pelo adentramento
nos anos primários de escola e condensada numa bateria de perguntas
disparadas a cada dez ou quinze minutos. As questões, à queima-roupa,
metralhavam impiedosamente os pais, na busca de uma certeza sobre o
caminho, já denotando nos pequenos a primeira instilação dos venenos de
alguma ciência, leituras e a malícia dos primeiros conhecimentos científicos
na quantificação da humanidade. “Pai, falta muito?!”, “Já chegamos?”,
“Tô com enjoo”, e o famoso e derradeiro “Eu vi primeiro, eu vi primeiro!”,
certificado de propriedade visual sobre o mar e declaração de abertura oficial
do verão, bradado pelo primeiro navegador a avistar a praia, grito tantas
vezes lançado em falso, antes da hora, nas primeiras curvas da estrada,
por pura ansiedade ou vontade de ser o real descobridor.

Saltando desse cume para outro, de estação em estação, como às vezes
parece ser a vida quando você a vê em retrospectiva, e no apanhado geral
daquilo que julga no momento ser o bem mais valioso, você esquecerá necessariamente
todos os pequenos detalhes e as delicadezas sutis e perdidas
que, no justo instante em que foram engendradas, faziam todo o seu
mundo ter sentido e pulsar. Estratégia da própria vida para tornar seu curso
fluente e evitar apegos exacerbados ao passado, uma vez que é no devir
que o mundo se faz. Agora, entretanto, essas situações tomadas pelas mãos
de um adulto melancólico, apenas poderiam tentar uma união improvável
e um tanto artificial entre os cumes dos montes com uma invisível cola de
visgo subjetivo e injusto, que não diminui jamais o que elas significaram na
magia de sua época própria, mas talvez possa eclipsar todo o resto em prol
de uma memória memorável.

De todo modo, prosseguiam os primeiros verões em seu destino inexorável
de trazer o amadurecimento do mundo aos olhares que nunca se repetiam,
porque olhar de criança é sempre único. Numa outra viagem, a tentativa
de mesclar conhecimentos com sensações e civilização humana, na
busca da identificação visual de curvas de montanhas que seguiam paralelas
ao carro, durante muito tempo, recém-saídos de uma região entre morros,
rumo à planície costeira. Era fácil verificar e deduzir, cerebrando, que
os padrões geográficos mudavam radicalmente nesse caminho, desvelando
o segredo final muito antes da hora para as mentes atentas e observadoras
dos maiores, ali no banco de trás, mas mantendo ainda os menores alienados
no doce sonho da não-ciência. Da mesma forma, era possível matar as
expectativas nas viagens seguintes, pelo olhar atento ao mundo humano
do comércio e aos postos de gasolina e restaurantes à beira da estrada, vendedores
de produtos típicos como coco, abacaxi, peixes e frutos do mar, que
de forma mais frequente cada vez mais iam aparecendo e deixando clara a
maior proximidade com a terra de Netuno.

Tudo isso concentrava-se num grande final de tour, quando as quatro
cabeças, disputando lugar e hierarquia no banco de trás do carro, levantavam-
se na alternância ritmada de um piston, tocado por um experiente jazzista,
que maneja seus dedos improvisando sobre as teclas do instrumento,
ora subindo uma, ora baixando o pino de outra, sem saber de antemão qual
o som que ensaiaria a melodia final. Uma coisa era certa: o grito de “eu vi
primeiro!”, que já fora proferido por todos, em diversos anos e contextos
diferentes, às vezes naturais, pela própria visão súbita, outras armado pela
mãe, justiceira, que tentava democratizar as chances de olhar sobre o mundo,
garantindo que cada pequeno também tivesse sua vez. Era natural que
o mais velho dos irmãos e mais experiente nas estradas lograsse êxito na
empreitada frequentemente, pela sua altura, o que lhe permitia ver mais
longe, e pela experiência, por saber matematicamente que o final se apresentava,
ou até quem sabe, por malícia em distrair e ludibriar os demais,
quando chegava a hora do grito. Então, no afã de conter os ânimos e justiçar
as chances de tomar o mundo, o ímpeto juvenil de poder era contido aos
conselhos de: “Deixe a pequena ver desta vez, porque nunca viu antes” ou
“Finja que está dormindo, e que você nem reparou”. Tudo bem, uma pequena
frustração na mochila das vaidades, mas que logo era suprimida pelo
prazer redescoberto nos olhos de outro que também podia descobrir.
Sol todo dia, água gelada do mar temperando os pensamentos que boiavam
soltos, semelhando a sensação boa de boiar que nos nutre a alma desde
que estávamos no ventre materno, há não tanto tempo, e nadávamos e
flutuávamos numa piscina particular de água morna ao nosso dispor, sem
poder ver nada, mas imaginando por outros olhares internos o que o mundo
já preparava para exibição nessa tela infindável de cinema 3-D.

Passavam- se os dias, nessa estada em praia, e tudo tinha cheiro novo, tudo molhado
de algas, de maresia, de peixes salgados e muita areia. Não há melhor
sensação de se sentir aconchegado num lugar novo do que se deixar molhar
pelas suas águas. Ainda hoje, quando chego a qualquer praia, montanha
ou a outra cidade distante, só tenho a sensação de estar realmente vinculado
depois que tomo um bom banho, nem que seja de chuveirada quente
nas costas. Mornas, frias, espumantes, salgadas, geladas, água de pedra
ou águas de mar. É como se todos os elementos que sempre compuseram a
história daquela região, daquele povo, daquela geografia, viessem saudá-lo
e abraçá-lo através da água, dizendo para que fique à vontade e aproveite
bem os seus dias. “Molhe-se, portanto! Mergulhe!”, “Absorva esta essência,
torne-se líquido”, “Deixe a vida fluir em você”, a própria vida dizia, todos os
dias pelas manhãs, ou pelas tardes, na infinidade de horas passadas dentro
d’água no período de aproximadamente um mês.

E durante um mês ao ano, a recomendação era seguida à risca enquanto
a vida se reinventava: pranchas, peixes, pescas, pedras, verdes, azuis, bonés
de times coloridos e o cheiro doce do bronzeador de cor alaranjada que
para sempre marcaria aquele lugar e suas castanheiras perdidas em tanta
areia branca na hora de “tirar o sal”. Podia-se comer de tudo, desde que respeitado
o espaço de tempo necessário para retornar à água. Ovos cozidos
com sal e pimenta do reino, batatas cozidas, pão com queijo e mortadela, e
a presença religiosa do franguinho assado com farofa e um guaraná meio
quente, numa época onde havia espaço para o movimento das crianças e
não era pecado mortal ser autêntico e farofeiro.

Passavam-se dias, estes muito mais difíceis quando fora das horas
-praia, porque aqui surgia a primeira noção de tédio que também esteve ligada
em alguma tenra idade ao afastamento periódico do mundo habitual,
do distanciamento planejado daquilo que era mais familiar e absorvente,
como escola, tarefas, aulas de ginástica, brincadeiras e aquelas famigeradas
leituras obrigatórias que tinham o mágico condão de afastar-nos dos
livros mais do que nos aproximar deles, mesmo para quem ainda tinha o
hábito e o gosto pela leitura. Ali, sim, de forma inusitada e até sentida, a
contradição como uma espécie de vingança do stablishment disciplinado
e ordeiro do mero semestre letivo, em pleno paraíso, longe dos deveres,
mesmo com o tempo ao dispor, mesmo com a única obrigação de brincar
e se divertir desde o nascer ao pôr do sol, insidiava-se também o tédio, a
maior das cascavéis. E tudo ficava mais cinza, depois de uns dias, e tudo
ficava com o mesmo sabor depois de uns dias. A comida se tornava igual,
o caminho de praia idem, os colegas novos recém-feitos na celebração universal
da praia e suas brincadeiras, também. Não tanta novidade, essa,
para quem tinha a natureza acelerada e ansiosa, pensamentos inquisitivos
e intensos na mesma medida em que se colocava a própria vida.
No liame desse pequeno tédio que se insinuava pelas bordas de uma
civilização que ainda andava mais lenta, havia algo, contudo, que nunca
se repetia pelo intenso e breve período de um mês de férias. O mar.

O mar sempre foi a razão. A cada dia na praia, com intenso sol ou com tempo nublado,
o mar sempre se apresentava, renovando-se em sua natural vaidade
e beleza: ora densos verdes-esmeraldas, ora aquele azul indizível do final
de tarde contrassol de ocaso, ora ainda, nos dias mais especiais, pela elaboração
provocante se um jade transparente que quando queria deixava entrever suas profundas marcas
no  claro das areias branquinhas  de metros abaixo
da superfície tremida e cálida. Ao mar acabrunhado e melancólico cinzento
dos dias nublados se opunha logo um dia ou dois seguintes de maré sorridente
e dançante, ondas receptivas que faziam a molecada sonhar em
suas pranchas rústicas de isopor, com seus discos de madeira contra cambalhota
nas vagas, ou com suas próprias barrigas arriscadas sobre o chão
arenoso, pegando jacarés improvisados e deslizando entre as areias grossas
e finas de tato inconstante e volúvel.

O verão, a estação mais esperada do ano, era anunciado a quem vinha
do interior pela vista do mar, na chegada dos morros do
balneário, avistados precocemente por entre pontas de visão no para-brisas disputado por quatro
guerreiros do amanhã. E seu término, o ritual que marcava a passagem de
volta à vida na cidade, de volta ao que considerávamos a “dureza” da existência,
era sempre precedido pelo último mergulho, no dia anterior à partida.
Sim, havia o último mergulho. Ao toque de cornetas militares, todos
tinham o direito ao último mergulho, na última hora antes do almoço. Dia
seguinte, manhã bem cedo, zarparíamos em nosso quatro-rodas de volta
aos ares da civilização.

O último mergulho, o gelado do sal nas orelhas. Angustiante líquido
cristalino adentrando o nariz até que fosse expirado com força, entupindo
os ouvidos como um turbilhão a inundar labirintos e galerias submersas de
água marinha. Olhos fechados contra o impacto, os cabelos lambidos para
trás no baque mergulhado e gelado contra mais uma onda, que percorre
todo o corpo, passando pelo peito, abraçando a barriga, lambendo e dançando
até os pés, onde se desfaz em pura espuma espraiando o último calor
do corpo para permitir que o peixe se aprume e se recoloque novamente
para outra tentativa. A respiração presa e a roubada de uns segundos de
silêncio profundo do eterno ranger da vida, com a cabeça dentro d’água.
Parar e ouvir o nada, o grande silêncio dos mundos que limitam com o nosso,
tocar aquele zunidinho silencioso como se fosse apenas uma concha
grande de molusco catada na beirada da areia e colocada contra o ouvido.
Descobrir, assim, sem ninguém ensinar, como era possível abrir os
olhos embaixo d’água pela primeira vez, e sentindo os olhos inexperientes
arranhando e ardendo com o sal nas retinas, enquanto contemplava aquele
silêncio profundo, observando com certa inveja o mundo quase inacessível
de turvo-âmbar-verde-pontilhado-de-estrelas-metálicas, compostas por
areia e minerais dissolvidos, e manter essa visão para sempre na sua alma
como um segredo imanente, partilhado sem comunicação com o resto da
natureza, a ciência daquele espaço infinito entre nós e os peixes, ocupado
pela grande alma pulsante do mundo.




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