Circo


Sempre fui uma criança chata. Do tipo que é imersa demais em seu próprio mundo pra ter qualquer noção do que acontece no ambiente adulto à sua volta. Se tivesse nascido hoje, não tenho a menor dúvida que inventariam alguma "Síndrome Científica" para me extinguir. Quem sabe algum comprimido milagroso que me desistisse de mim. E é claro, essa situação de desambiência com frequência era também percebida pelos adultos à minha volta, o que não exatamente facilitava minha vida. Isso nunca foi problema com as outras crianças, esses seres metafísicos e espaciais, e sempre transitei até bem demais entre eles, ora como  rei, ora como súdito, ora simplesmente como o comum dos mortais -- par entre meus pares --,  a maior parte do tempo como bicho solto no mato, sozinho, com arranhados nos braços e nas pernas, e um pedaço de capim entre os dentes.

Entre os adultos, minha vida era um verdadeiro inferno. Ora etiqueta, ora catecismo, ora comportamento em público, ora mais obediência sem saber mesmo por quê. As regras contraditórias para a vida , -- e  que não poucas vezes depunham contra a própria vida --, que me chegavam sempre como a alguém que contempla um céu nublado e pretende ver ainda, desconsolado, a luz do outro lado das trevas, mesmo sabendo que as suas próprias regras eram tanto melhores que as ensinadas. Algum som, alguma fagulha sonâmbula de vultos se mexendo, mas nada muito real entrava no meu espírito que fosse mesmo consolador, vindo desse campo inútil do conhecimento. Por isso, do ponto de vista de qualquer adulto com quem convivia, aí pelos oito ou nove,  acho que eu não passava mesmo de um pentelho. Inquieto e ao mesmo tempo introspectivo, de fala rara e gestos esquivos, não conseguia nesse universo de deus algum ponto de convergência com o mundo grande. Coisa bem diferente ocorria quando lançado forçadamente à socialização de conveniência na maravilhosa oportunidade  que toda criança tem: o terror da escola.

A partir daí, cada dia era diferente do outro, e às vezes uma semana ou um mês  se escondiam em  um único dia como intensidade,  criando continuamente uma outra referência de tempo. Se eram dias bons, umas poucas horas na sala de aula  duravam a o tempo exato da felicidade de contemplar a garota linda que sentava ao lado da minha carteira, com seus cadernos cor-de-rosa e aqueles laços de fita encantadores, dava pra andar de bicicleta por duas encarnações seguidas em uma mesma tarde ou me enfiar de cabeça na piscina o dia inteiro , só saindo à noite. Se eram dias ruins, cada pequena maldade destilada contra nós, na pequenitude ainda habitante desse ambiente escola era estanque, o tempo parecia nunca correr. Os desafios cotidianos iniciavam-se pela  prova de resistência de aguentar o bullying, essa palavra tão surpreendente hoje em dia quanto uma gota d’água molhando o chão em dia de chuva e tão nova quanto os rascunhos do próprio universo, feitos em carvão, terra e sangue nas Cavernas, pelos artísticos amigos do Paleolítico. As pessoas são cruéis, quando  crianças, e isso é uma regra geral. Porque, me escutem quando digo, não tampem os ouvidos agora:  A crueldade é natural no humano. Somos animais, antes de tudo, mas a atitude cruel não vem codificada enquanto tal nas células e no nosso DNA, porque são apenas reflexos de sobrevivência. Dizem respeito a algo por dentro que precisa competir pra matar a fome e garantir a sobrevivência, seja sua ou do seu clã, família, grupo, ninhada etc. A principio, sequer sabemos o que significa o valor de nossos atos em si mesmos, que não sejam apenas um critério de autodefesa, autoafirmação, face a um contexto normalmente agressivo. Daí segue-se que a bondade, a generosidade, o compartilhar é que é cultural e precisa ser aprendida, cultivada, difundida. A atitude social e humana sobre a Terra, mesmo antes de o dizer Freud, já era de tentar domesticar os instintos para que permitissem a convivência nossa, uns com os outros, abrindo mão de uma coisinha ou outra para que não nos matássemos uns aos outros.

 Pois nessa maldade ainda meio que inocente, dado que a criançada sequer sabe direito a que ponto pode ser má ou cruel, o cotidiano da escola era bullying dia sim, dia também, e curiosamente nesse caldeirão havia uma variação não programada nos papéis: até eu que fui tantas vezes vítima, uma hora ou outra tornava-me, -- repleto de um orgulho insano e nada lisonjeiro ainda mais para quem um dia ou dois antes tinha acabado de ser a vítima, -- e me tornava insolitamente eu mesmo o opressor do colega, eu veja bem! Eu que tinha em mente tantos discursos corretos e observações sagazes, e como não poderia deixar de ser para quem ainda era franzino e um tanto tímido, num território hostil onde a maior parte das vezes eu é que era o oprimido. Não se sabe exatamente de onde vieram todos aqueles pequenos animaizinhos irracionais que nos acompanhavam na escola desde tão cedo. Mesmo entre os bons, -- talvez por medo de que seus segredos de bondade e justeza fosse em algum ponto descobertos e revelassem uma perigosa fraqueza – não havia exceções quando o bicho pegava. Antes dos dez, tudo era já uma selva, na pior idéia que se pode ter da palavra. Pois era assim, caros: a porrada e a implicância comendo soltas, o esforço gigante pra tentar convencer suas vontades primordiais civilizatórias (enquanto era socado ou chutado na canela, ou roubavam sua merenda, colocando um bicho morto no lugar, ou roubavam sua lição de casa duramente desenhada na noite anterior,) de que no fundo havia uma razão de aprendizado universal sobre todo tipo de dor e que sairia disso tudo senão mais forte, pelo menos mais esperto  e aprendedor de diversas verdades da vida, dentre as quais as virtudes adquiridas de xingar, cuspir, morder, sentindo que do outro lado já se imiscuía nas veias a faculdade democrática de eventualmente deixar ser mordido, socado ou cuspido e fazer cara de tudobem, de preferência na hora certa e com métodos, segundo a ausência compreensível de algumas professoras que não faziam lá muita questão de tomar ciência do problema, sempre fiscalizando desatentamente os pátios infernais da vida.

De todo modo, como se está vivo não por pouca coisa , porque cada vivente é um tipo de campeão olimpico em sua modalidade de viver sem a propaganda da Nike e os milhões de euros engordando conta bancária na Suíça, a gente vai levando, e fui realmente aprendendo a suportar malvadezas na escola sem contudo ceder ao pulso de me tornar também um malvado, apesar da tentação. Assim, virando as costas quase integralmente para o universo decepcionante dos adultos e afogando-me no mar instintivo de defesa e ataque que compunha a doce infância é que fui dar em mim. Assim, assim, não necessariamente uma beleza ou perfeição de conjunções entre meios e finalidades, mas uma mistura interessante para qualquer psicanalista poder passar um bom  tempo tentando me ensejar a compreensão mais ampla dos meus próprios atos no futuro, ou ao menos, descartados os rigores da análise,  eu viesse a alcançar um dia quem sabe o rascunho de uma compleição de figura tal que, se chegasse à idade de avô, certamente teria muitas histórias meio reais, meio inventadas, pra contar pros netinhos.

Não me tomem equivocadamente como se essa situação de simplesmente não suportar o ambiente adulto quando era moleque fosse algo intrinsecamente ruim. Tinha o lado bom de ser criança, e uma espécie de mantra contra a idéia de ser adulto, aliás. Mesmo com as provações, era claramente melhor continuar criança. Era maravilhoso, na verdade, porque a outra metade composta pelos amigos e amores era o que fazia valer a pena e eu realmente não tinha nem muito tempo pra  ficar comparando as duas coisas, mas se fosse fazê-lo, era apenas para sentir o poder da desvantagem que se acumulava do lado de lá, no mundo adulto obviamente mais pobre, porque no fim não portava mais o poder mágico do olhar de uma criança sobre a vida.

A experiência mais marcante nesse período, que decididamente me empoderou no status da vida sem querer mudar, consolidando uma espécie de desejo inconsciente de peterpanizar-me sem qualquer tipo de remédio com relação a alguns valores, foi uma determinada ida ao circo de passagem pela minha cidade. Um circo de verdade, digamos. Sim, um grande circo, completo e gigante do jeito que se vê nos filmes, e não aqueles arremedos sofridos e bem intencionados mas perdidos em seus propósitos diante das dificuldades sociais do planeta. Essa passagem do circo e a diferença de impactos entre as observações e impressões deixadas  após essa experiência por mim mesmo e meus amigos e pelos adultos que me rodeavam, deram o veredito inapelável sobre uma trágica ruptura de olhares que me marcaria até hoje. Devido a isso, eu sem vacilar poderia dizer que não queria nunca mais deixar de ser criança. Não sem pagar um preço, é verdade, porque a infelicidade que permeia inafastavelmente o status adulto parece que quer perseguir continuamente aqueles que simplesmente não aceitam muito bem seguir cegamente seus princípios. A partir de uma certa idade, parece que a infelicidade torna-se uma regra a ser imposta como ritual de passagem.

O circo foi algo de difícil definição que me tomou por dentro sem perdão nem desculpas, numa bela tarde de um sábado perdido nos confins do tempo. Mais que um lugar, um espírito, o circo. Mais que uma imagem, uma vivência, uma coleção de novas cores para um mundo que apenas insuportavelmente poderia ter sobrevivido sem ele até ali. E no coração descompassado de minhas experiências, enumeraria a tríade que me abarcou para nunca mais, depois da primeira vez. Tigres, Globo da Morte e Trapezistas. Aficionado por álbuns de figurinhas e livros sobre natureza desde sempre, não sabia não saberia não tinha como saber ou adivinhar nem de muito longe numa época sem internet, celulares, Discovery Channel ou NatGeo, e onde, por fim -- sim, os telefones eram de discagem e o único programa que vagamente nos lembrava de um estado de espírito chamado África  e suas riquezas era um semanário desbotadinho de tv, o  "Mundo Animal", que passava aos sábados pela manhã no único canal disponível, --  e é claro, do qual eu era assíduo freguês, mas não dava exatamente uma boa idéia do que seria aquela coisa.

Tenho pena de quem imagina um tigre, foi a única frase que me veio à cabeça enquanto estava ali, na prévia dos shows que viriam daqui a uma hora, sabadão de tarde com  turma de pirralhos e um saquinho de pipoca na mão, que a essas horas não entrava na boca, a que estava na boca não era mais mastigada  e a que estava na garganta ansiosa, já mastigada, já não descia mais pro estômago porque ficava aquele troço entalado.  O que era o real, diante das narrativas dos livros de histórias, uma criatura de malhas camufladas a andar sorrateira e solitária pelo meio das florestas indianas, cujo dente canino maior que uma faca afiada de aço era capaz de decepar a cabeça de um boi numa única mordida? As cores das fotos, de amarelos e pretos rajados, um pouco desbotados, dos livros da escola, as brincadeiras de máscaras do teatrinho da escola, nada disso dariam jamais a dimensão da coisa. Ao contrário de tanta propaganda, a imaginação ás vezes pode ceder diante da realidade, eu devia saber.

Tenho pena de quem imagina um tigre, foi o que senti depois de contemplar a coisa, nutrindo um tipo especial de compaixão pela  raça humana simbolizada pelos adultos, de preferência, esses seres infelizes que nos rodeiam, sempre sem tempo para assuntos sérios. Chegando aos poucos por trás da jaula, com avisos espalhados e orientações dadas pelo encarregado da área, --meninos olhem mas não cheguem muito perto, não façam barulho nem movimentos bruscos e não alimentem as feras. Ok, vamos lá. Pé por pé, adentrando o covil da Índia milenar com seus rajás, Taj Mahal-poesia-de-amor-e-morte resvalando pela eternidade, quando ouvimos o urro da criatura, a uns cinco metros do calabouço, ainda sem podermos vê-la. Não entendi bem a sensação, porque não conseguia distinguir exatamente o que era aquele som, dentro das categorias conhecidas, ou dos filmes embaçados à distância, não consegui pensar uma distinção do nome para aquela vibração no ar. Até ali, bois berravam, gatos miavam, cachorros latiam, abelhas zumbiam, passarinhos cantavam ou pipilavam, dependendo do tamanho e da poesia, mas aquele som não era deste planeta. Uma mistura insuportavelmente alta e grave de cano de descarga de caminhão prensado dentro de uma garrafa gigante e gorgolejante onde no fundo tivesse muita água, e isso com um microfone ligado num amplificador muito potente que ficava conectado diretamente ao  ouvido da pessoa -vítima que estivesse ao seu alcance.

O urro-líder daquele tigre,  logo seguido pelos seus primos leões em jaulas paralelas que até então estavam em silêncio, era algo de se fazer gelar até o último elo da espinha, naquele instante onde  não se distingue mais entre espinha, nuca, cérebro, corpo, pernas, intestinos ou o lugar que antigamente se dizia que ficava a alma da pessoa. Era pipoca no chão, menino pequeno querendo o colo da mãe, uns dois ou três amigos que voltaram pra trás na corrida sem querer mais ver o bicho que estava encoberto mais à frente, com  a parede da cela lateral vedada, sem ainda conseguirmos vê-lo. Esse urro era algo de tão primitivo e revelador de essências que dava pra sentir como se estivéssemos de novo vivendo há cinquenta mil anos atrás, e fôssemos então as presas possíveis de um dente-de-sabres numa dessas planícies da Sibéria ou do vale do Indo, e o som de guerra, acasalamento, lamentação ou o que quer que fosse aquele som significasse apenas uma coisa ao humano que estivesse nas redondezas de ao menos uns cinco quilômetros: Era o tigre dizendo: eu sou seu caçador, e você ainda será meu alimento um dia. Por um segundo, deu pra imaginar no fundo da alma o instante final dos gladiadores no circo de roma, antes de liberarem as feras famintas sobre eles, os prisioneiros de guerra e os cristãos, no espetáculo tão celebrado na antiguidade.

Seguindo firme, eu e mais uns dois que restamos, pra chegar à frente da jaula, dentre nós um moleque desses filadaputa que não tem nada no espírito a não ser maldade e falta de jeito com todos aqueles a quem  vivia tentando impressionar o tempo todo, sem sucesso, e teve a genial idéia de querer jogar refrigerante na cara do bicho, assim que chegasse mais perto.  Pegou seu copão de Coca-cola e foi o primeiro a chegar perto, cantando marra, mas na hora de jogar o copo, a fera virou-lhe as costas e num súbito, mandou uma mijada fenomenal sobre sua cabeça. Um mijo forte e volumoso à distância de uns dois metros, que deixou todos boquiabertos, e o moleque em desespero. Um mijo quente, fedido, mijo de animal carnívoro que invalidou o infeliz  pelo resto do dia.

A coisa toda se aumentou quando chegamos à parte frontal e demos de cara com um deles olhando diretamente para nós, bem de perto. Esse era o líder, era o maior e o primeiro que urrou antes de chegarmos. A cara enorme, com aquelas barbelas laterais que lhe dão um formato quadrado com repuxos de pelos nas pontas. 

O olhar que me atravessava? eu não sabia quem era antes de um tigre me ver? Que-cor são esses olhos, diabólica entidade? esse âmbar misto entre luz e trevas, repletos de pontas verdes em laterais centradas na negra pupila? A pupila feito buraco negro a absorver toda luz, objeto que gira feito objetiva de máquina e me focaliza, dá outro sentido ao mundo-redor, que cores ou na ausência delas tudo vês aí de dentro, quando nos vê, que imagens, que sentidos, que quadro se pinta nas veleidades dos seus instintos ao nos contemplar, estes extraterrestres paridos de um lugar tão longe do teu, de outra órbita, de outra galáxia distante o suficiente para tratar como escravo quem nasceu para reinar. De onde vem tamanha força que se instila nessas garras mais afiadas que  facas, patas do tamanho de pneus, que jeito que arredio nos gestos que calma no espírito, esse andar ir e voltar de lado a lado na grade, o faro apurado raspando o ar à nossa presença, quem nesse mundo inteiro ousaria prender-te em meras caixas de metal, sem saber ainda, o tolo, que há algo aí dentro, testemunhado nesses pelos, nesse cheiro, nesses olhos, que jamais será confinado?

Ainda hoje quando me lembro da primeira presença do circo em meu espírito, e junto dele a beleza avassaladora do tigre, não consigo descrever a sensação, porque minha arte com as palavras é sempre essa limitação risível, e porque suspeito ,no fundo, que elas sempre escondem seus segredos e nunca nos dizem tudo quanto queriam, mesmo quando se empenham em dizer. Palavras são muito mais aquilo que têm guardadas.

O olhar do tigre me convidava a ser outro? Presa ou inspiração, compartilhava compaixão ou amor pela vida no seu modo-tigre-de-ser? Ou ele via em mim algo que até então eu mesmo nunca soube? Uma força escondida da qual eu ainda não desconfiava e que me conduziria daí pra frente?

 Diga-me então quem sou, criatura de beleza, força e terror, dez anos entre as grades e ainda és essa coisa selvagem, como vive ainda tão forte entre ferros, como não se abateu em literal loucura e desvario a tua fera interior? quanta potência e dignidade nos teus gestos, mesmo recebendo maus-tratos vida afora. Nada te atinge, nada te derrota? Me ensina a não morrer quando a vida se abater sobre mim, e eu prisioneiro de outras grades -- muitas delas tendo eu mesmo construído com minhas próprias mãos --não souber aonde ir e não puder retornar à minha selva natal que sequer existirá mais a essas alturas.  Misto de amor com pânico, síndrome de estocolmo irrefreável diante de tamanho poder,  uma paixão doentia e incondicional que levaria comigo. A criatura majestosa,  ameaçadora, benigna em seus ensinamentos. E isso debaixo daquela pele de puro brilho, cores, rajados e disfarces capazes de o fazerem passar despercebido em meio à mais densa floresta ou no mato rarefeito de uma savana. Poder maior é o que não se exibe porque reside apenas no ato necessário e não na potência prepotente? 

A natureza forte na sua essência. O cheiro insuportável do animal, perceptível a um quilômetro dali, queimando as narinas com a pura uréia, volátil. A noção concreta do predador em seu canto natural. Duas semanas na cidade e o recanto parecia a própria mata fechada da Índia, sua terra natal. O cheiro forte a emanar da pele grossa que nunca viu outra água a não ser chuva, emanações  de amônia por conta da marcação territorial dos machos ali presentes, gatos gigantes disputando grade a grade com outros leões, panteras e onças, e de outro lado, um cheiro de carne crua e sangue intenso, instigante, um carrinho com restos de carnes e ossos de boi e cavalo usado para alimentar as feras. Boatos de que davam cachorros também, pra eles comerem. Nunca vi, mas sempre sumiam os cachorros das ruas na época de circo. Havia o fermento de um sangue seco no ar a  queimar as narinas dessa turma de  iniciantes boquiabertos. Eles tinham acabado de ser alimentados, os bichos, e  estavam meio que tirando uma soneca, antes do show começar, dali a uma hora. Era obrigatório alimentá-los bem, antes dos shows, e eu nem preciso lembrar  o porquê. 

Que triste imaginar um tigre.

Toca pro show. Portas abertas, todos sentados nas arquibancadas: palhaços, dançarinas, cachorrinhos espertos (o tigre). O cara barrigudo de roupas espalhafatosas e cartola alta na cabeça, o respeitável público no microfone (o tigre). E toca a banda no picadeiro até chegar o "Globo da Morte". A noção de gravidade, movimento e do que os homens são capazes de realizar  para fazer com que a vida não seja apenas esse mar indissoluto de comédia, tragédia e tédio que nos assola , é impressionante. ( o tigre). Não sei se veio daí meu gosto por motos, mas alguma influência teve, com certeza. O cheiro de óleo queimado, as voltas e mais voltas de cabeça pra baixo, numa velocidade estonteante, a iminência de um choque e de um acidente que nunca aconteciam, aquilo tudo era maravilhoso. (O tigre). As cores, os sons, os cheiros, o tigre. Os movimentos perfeitos em uma atmosfera ao mesmo tempo agressiva e arrebatadora entre elefantes, zebras, dançarinas e malabaristas. (O tigre).

Em mais ou menos uma hora  parecia encerrado o dia mais rico da vida, quando para misericórdia dos pequenos, surge o ato final, depois das acrobacias de solo, na poesia do trapézio. Os caras baixinhos e musculosos. (O tigre). Pernas curtas e troncos fortes, como na ginástica olímpica. As incontáveis piruetas no ar, antes de pegar novamente a mão que vem de lá para seguir voando para o outro ponto. Criança no chão, mirando teto de  luzes contra o fundo azul e vermelho da lona, e de lá pra cá, daqui pra lá, sobre nossas cabeças a sete metros de altura, aquelas garotas delgadas, corpos de bailarina, iam e vinham, roupas brilhosas, cabelos em coque à moda de ballet (o tigre). Pássaros beija-flores soltos no vento, em silêncio porque seu canto é movimento, lilás em azuis seus vestidos brilhando na noite sobre os rostos, cinturas finas, pernas esguias, levinhas levinhas mais leves que o ar, apenas assim para justificar seu voar sem precisar se explicar, toca a música de suspense da banda, a moça mais bonita se prepara, fará o salto-da-morte, com duas piruetas invertidas, para alcançar o trapezista que vem de lá de cabeça pra baixo, no outro trapézio, alguns fecham os olhos, silêncio geral, apenas o rufar dos tambores, ela vem, passarinho com adornos de sol, seu vermelho íris azulando verde, roxo-que-se-altera remexendo a terra, vento que não tem nome, destino que se põe a voar. duas piruetas, parece que vai cair, parece que vai morrer, o chão tá longe, longe, alto, vem de lá a mão, vem o trapezista, de cabeça pra baixo, olhos vendados, e a beleza se realiza porque está no desafio, o trapézio é recolhido, o público emociona-se com razão, e a lona se enche de calor e aplausos. (O tigre).

Menino no caminho-da-volta, olhos de estrela. o tigre.  irmãos empolgados, tagarelas,  amigos extasiados pais e mães preocupados menino não faça isso em casa viu que é perigoso eles treinam muito pra cada apresentação e também vivem disso né essa gente viaja pra todo lado nunca têm muito dinheiro não têm eira nem beira aonde dormem aonde comem fico pensando nas crianças que pena dessas criaturas não podem ir à escola não tomam banho parece que não têm pai nem mãe não têm regras ficam o dia inteiro soltos  e ainda tá caro o ingresso né você viu e como será que fazem de ficar andando pelo mundo, uma hora estão aqui, outra hora estão lá,  não sabem nem aonde vão não tem moveis, casa, não se apegam a nada nem ninguém não tem rotinas, não se sabe aonde vão dormir e viajam o tempo todo...

-Mãe, eu posso ser do circo?





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publ orig "O Aleph", set/2016 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)