Leituras (o cotidiano, por três olhares na poesia americana)

Esta vida: poemas escolhidos - Livros na Amazon Brasil- 9788573266719

Carver é prosador e poeta, embora  mais conhecido pela prosa que pelos poemas. 
Retornou  às livrarias recentemente, por ocasião das referências do excelente filme
 "Birdman",  onde seu belo texto "Do que estamos falando quando falamos de amor" 
exerce papel central como peça dramática montada pelo protagonista.

A curiosa distensão que por vezes ocorre quando um autor projeta seu trabalho
simultaneamente nos territórios nem sempre comunicáveis entre a prosa e o verso.

Na prosa, seus textos, muito mais pela forma, os temas, os contextos, do que 
pelo coonteúdo, lembram um pouco Bukowski, de quem abertamente recebeu influência
, -- coisa que jamais negou e é possível ver facilmente --, contudo o aprofundamento
dos argumentos  mais finos, a observação mais sagaz e menos impulsiva sobre as
inúmeras variações do temperamento e da condição humana, a elegãncia contida
do traço  e o tom reflexivo  da experiência logo o distanciam fortemente do bebum
arrogante de L.A., que a nosso ver segue sempre sendo avaliado além da conta,
muito mais pela fama pessoal do que pela potência dos escritos em si mesmos.

Nos versos, contudo, objeto dessa ótima coletânea da Ed 34, é um outro autor
que surge na curva. Os versos, geralmente brancos ou livres,  seguem história
completamente diferente. Minimalistas, com a valorização do cotididano, o olhar
se infiltrando em rotinas, nos movimentos de ir e vir na cidade, no campo (um dos
seus preferidos lugares de escape) e a tentativa de amálgama dos pedaços de
um mundo cujas peças nem sempre se colam, o distanciam completamente do
realismo-sujo-boteco-filosófico de influência bukowskiana para lembrar mais
o espaço esplendidamente cultivado e cativado por outro grande poeta, o
também americano William Carlos Williams, que o precedeu muito mais fundo
nessa linha.



("Esta Vida, poemas R. Carver, Ed 34)


Paterson (Revised Edition) (New Directions Paperback 806 806 ...


Sem edição disponível em português aqui nesta terra , no conjunto da obra um dos
maiores poetas americanos, -- esse termo "maiores" tratando-se apenas de um juízo
de valor e gosto pessoal, não sendo referência qualquer para medição de uma coisa que
jamais se mede em qualquer arte.

William Carlos Williams dá uma noção do seu trabalho nessa obra repleta de beleza
que é Paterson, um conjunto de poemas gestados em homenagem à sua terra natal,
um testemunho contagiante do advento da modernidade, não pela legitimação e
consolo relacionados ao progresso, mas pelo contrário, pela tentativa de captar e descrever
a  transmutação possível do tempo-máquina em tempo-gente, mesmo no bojo de uma
revolução conduzida por máquinas e homens mecânicos.O reflexo de uma outra noção
de movimento que ainda está presente nos interstícios desse outro mundo, frio e concreto,
mas operando fora do circuito-relógio quando se mergulha na atmosfera da poesia.
O papel da poesia e a riqueza desse olhar, uma vez recriado como outro lugar-de-ver.

Outro ritmo, outra pulsão, integrando o olhar do poeta que tudo vê, e de tudo faz poema.
Nenhuma observação é menor, nenhum gesto ou objeto é pequeno o suficiente, como nenhuma cor
ou olhar. Um resgate da atitude contemplativa -- muito de japonês nessa forma de ver-
e do ser capaz de se deixar impregnarem todos os sentidos pelo mundofora, transformando-os
fortemente pelo mundodentro, mas ao contrário do que poderia sugerir um hermetismo
no resultado dessa operação, a forma-poema surge como uma comunicabilidade absurda, porque
o sujeito-lírico do poeta entroniza esses pulsos e logo os retorna à superfície com a ausência
de formalidades como  entre amigos num café. Existe, na intenção do autor, nunca esquecida,
a forte busca de mostrar que os universais, para a poesia, atrapalham mais que ajudam.

A sensação da beleza, do maior  poder de vida, do contágio pelo mundo, até podem se dar de forma intersubjetiva, nesse processo sobre o qual não se admite um controle, mas é no particular que estão, por fim, os mecanismos de sua evocação, e não nos grandes temas, nas palavras de ordem, na suposta atribuição de um comum a todos de um mundo que , na verdade, não tem qualquer objetividade em
sua apreensão, pois é renascido e recriado a cada olhar mínimo e, por isso, mostra-se incomum e
ainda assim prontamente comunicável sem erudições desnecessárias, mesmo tendo sido tão visto até as vistas se gastarem.

A estética se torna assim, de uma prospecção com enorme sensibilidade e
aprofundamento, mas a forma de comunicá-la traz para o leitor comum a sensação inusitada e inebriante de "como é que isso estava bem aqui e eu não vi -- a queda de uma cachoeira, o pelo fofo do cachorro ou seus latidos variados no intento de se comunicar", uma ida-e-vinda cotidiana ao trabalho e os assuntos das pessoas nos ônibus, as pinturas e construções arquitetônicas da cidade, das casas, das calçadas, as conversas de bar meio roubadas do ambiente noturno. Uma  poesia
que apenas erroneamente poderia ser tomada como descritiva ou realista, porque é nas sutis nuances
que propõe seu outro-lugar.

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PATERSON
do Livro I

Prefácio

"O rigor da beleza é o alvo da busca. Mas como se poderá encontrar a beleza se ela está encerrada na mente, para além de toda admoestação?"

     Compor um começo
     com particularidades
     e torná-las gerais, arrolando
     a soma, por meios imperfeitos -
     Farejando as árvores,
     um cão qualquer
     num bando de cães. O que
     mais ali? E que fazer?
     Os outros debandaram -
     atrás de coelhos.
     Só o estropiado permanece - sobre
     três pernas. Coça-te adiante e atrás.
     Engana e come. Desenterra
     um osso embolorado

Pois o princípio indubitavelmente é
o fim - já que de nada sabemos, puro
e simples, para além
de nossas próprias complexidades.

                              E no entanto
não há nenhum retorno: rolando para fora do caos,
prodígio de nove meses, a cidade
o homem, uma identidade - e nunca poderia
ser de outra maneira - uma
interpenetração, em ambos os sentidos. Rolando
para fora! obverso, reverso;
o bêbado o sóbrio; o renomado
o grosseiro; um só. Na ignorância


um certo saber , saber
não-disperso, seu próprio desbarato.

                                 (A múltipla semente,
apinhada de detalhes, azedada,
fica perdida no fluxo e a mente,
distraída, vai-se flutuando com a mesma
escuma)

A rolar, a rolar prenhe de
números.

                     É o sol ignorante
erguendo-se no rastro de
erguidos sóis vazios, pelo que neste mundo
jamais um homem poderá viver a gosto no seu corpo
a não ser morrendo - e sem saber-se
morrendo; este no entanto é o
desígnio. Renova-se a si mesmo .
de tal modo, em soma e subtração,
andando para cima e para baixo.

            e o ofício,
subvertido pelo pensamento, a rolar para fora, cuide-se
ele de não se voltar tão-só para a
escrita de poemas estagnados...
Mentes como camas sempre feitas,
                          (mais pedregosas que uma praia)
relutantes ou incompetentes.

                              A rolar, o topo para cima,
sob, empuxo e retrocesso, um grande estardalhaço:
alçado feito ar, transportado, multicolorido, um
detrito dos mares -
da matemática a particularidades -
                                 dividido como as orvalhadas
neblinas flutuantes, que as chuvas vão lavar e
recongregar num rio, um rio que corre
e que dá voltas:

                                conchas e animálculos
geralmente, e assim até ao homem,                             

                                 até Paterson.


 (trad. José Paulo Paes, do livro "Poemas" de William Carlos Williams. Companhia das Letras. 1987)

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todos os poemas de paul auster | escamandro


Uma das melhores "descobertas" dos últimos anos, o rosto deste grande autor
na poesia. Infinitamente mais conhecido pela prosa, onde se destaca como um
dos maiores escritores atuais, a enorme surpresa de ver nos poemas toda essa
força poética.

Partindo aqui pra um olhar extremamente pessoal, é de fazer
se perguntar o porquê da prosa de Auster ser assim tão imensamente mais
celebrada no planeta, em face do que nós consideramos, na leitura , pelo
arrebatamento, um dos melhores poetas que já nos chegaram aos olhos.
Questões que envolvem desde projeto pessoal e tantas outras variantes,
com certeza, mas um olhar de malícia também para o tal mercado editorial.

De longe a velha história, não apenas aqui, testemunhado de forma horrenda,
mas em boa parte do ocidente, a força com que a prosa se colocou acima
da poesia em diversas frentes ,correntes, estéticas, e no fundo, uma especulação
cabível sobre a associação desse caminho algumas vezes nocivo à profundidade,
extensão e desbravamento das poéticas, em geral, sempre perdendo em território
para o absoluto reinado da prosa.

Uma noção equivocada e quem sabe plantada e difundida , seja de forma
intencional ou apenas com as vistas nos lucros do mercado, o fato sólido
de que, tantas vezes se pensa ou sente a poesia como algo "difícil", "abstrato"
"inalcançável", e de certa forma, desprovido de entabular um discurso mais
sólido com a noção do "real", enquanto a prosa, eleita desde tempos como
forma mais "compreensível", por sua imediaticidade.

Não questiono o valor ou a escolha da prosa, sendo também leitor e contumaz
escritor de prosa, mas sim os equívocos que levam muitas vezes
uma manada de leitores (dos poucos e cada vez mais raros
que subsistem nesta amarga terra de analfabetos funcionais), a preferirem
uma prosa tantas vezes de má qualidade no lugar de uma boa poesia.

No caso desse autor, em particular, isso não é algo estarrecedor, justamente porque
ele consegue ser grande em seus trabalhos mais conhecidos, e sua prosa é das
melhores coisas que se pode ler na atualidade, mas o que ficou no espírito depois
da "descoberta" recente dessa potente poesia, foi tentar entender por que o mundo
ficou tanto tempo privado desse conjunto de obra poética?

Improfícuas essas comparações de "grandeza" de um autor, tanto com relação a
outros autores, outras correntes de pensamento, como também dentro das estéticas
possíveis para a expressão do que lhe vai nas idéias, por tudo de subjetivo que
isso sempre envolve.

Mas a contradição me surge porque, se tivesse que optar pela profundidade
e relevância de boa parte do que ele escreveu, e da curiosa certeza que paira
na tentativa de entendimento das razões pelas quais poiesis ainda continua tendo
muito menos força de divulgação e contágio do que logos mundofora (lembrando
a curiosidade de que no nascimento da escrita, e durante um bom tempo por larga
extensão da cultura conhecida, isso se deu de forma absolutamente diferente),
se Auster tivesse nos legado apenas o volume (menor, por sinal), de seus poemas,
teria , já,  desde aí, se colocado como um dos autores essenciais.