"Os caminhos da liberdade" (J.P. Sartre, trilogia)


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Os volumes da  trilogia "Caminhos da liberdade"

"A idade da razão"
"Sursis"
"Com a morte na alma"

Juntamente com o ensaio "Que é  a literatura?", onde defende o engajamento do escritor e um papel inovador para a literatura, o romance "A Náusea" (incrivelmente escrito antes da segunda grande guerra, expondo pontos-chave da filosofia existencialista que seriam mais desenvolvidos posteriormente, e profeticamente antecipando um status de humanidade que só surgiria a partir da guerra), a belíssima autobiografia de "As Palavras", onde inaugurou o estilo literário de "autobiografia inventada"  e o livro de contos "O muro", ainda hoje retrato das subjetividades contemporãneas, isso tudo  faz de Sartre, quase que independentemente do seu vasto trabalho filosófico em paralelo, um dos principais e mais prolíficos escritores do séc XX. E como não podia deixar de ser , o tema principal que permeia a trilogia aborda a idéia de Liberdade, na extensão máxima que isso representa para um existencialista, não apenas constituindo um valor formal como presente na filosofia clássica, mas na instância última em que afeta de forma determinante a vida do indivíduo, esse sobrevivente sempre "apesar de".

Lembrando a estreita relação entre arte e vida para Sartre, como bom Nietzscheano, a construção dos personagens -- com muitos traços autobiográficos -- e o enredo cotidiano de um pós-guerra marcado por poderosa mudança de valores tanto no campo social do planeta dividido definitivamente em trincheiras quanto nas inter-relaçoes individuais, marcado pela abrupta mudança da noção de tempo  brutalmente alterada e  estigmatizada pelo terror ainda quente de toda a guerra. Os enredos, que optam por fugir de uma condução pré-fabricada de personagens enquanto tipos para enveredar pelas suas vidas e problemas calcados na realidade do mundo, desde os mínimos problemas cotidianos, vão mostrando por fim como é que isso tudo, o mundo idealizado e otimista do  Iluminismo do século anterior, tudo isso rui de forma trágica, juntamente com sua pompa, quando uma fragmentação absurda do sujeito aponta na curva, inaugurando uma nova era pós-1945. 

Na literatura,  é claro, não cabem as formalidades e explanações típicas do ambiente filosófico . Contudo, a grande pegada do Existencialismo, -- e isso aparece o tempo todo na arte literária de Camus, Sartre &Cia, através dos enredos, temas e personagens, é mostrar que valor do conhecimento não está "fora"da vida, mas profundamente imerso nela própria, como processo de vida.

A riqueza do Existencialismo foi mostrar que não subsistem as ilusões cerebrais como redes capazes de delimitarem ou explicarem até o "sentido último " uma realidade qualquer, e que mesmo sabendo-se da existência do sistema impessoal de regras objetivas que nos governa estruturalmente a todo instante, e do qual não se pode fugir, não se exime o indivíduo de escolher para si mesmo, com o ônus e o eventual bônus de cada efeito implícitos na atitude e seu imprevisível desenrolar, uma liberdade que é inequivocamente responsabilidade que não pode imputar outrem (caso que o existencialismo denomina como uma espécie de covardia). 

Dito por outras palavras: não há prêmio pela atitude que alguém considera correta, melhor ou mais desejável dentro dos seus parâmetros de escolha. A diferença aqui, entre a ética do dever Kantiana e a Liberdade-responsabilidade de Sartre é que, no caso de Kant, tão explicitada na "Crítica da razão prática", essa atitude não é livre, mas um imperativo, algo da esfera do dever, para que se imagine a humanidade agindo em sintonia da mesma direção. No caso de Sartre, existe a esfera do não querer, o não fazer, enfim, pode-se simplesmente dizer um não, e isso ainda é liberdade e nãó algum tipo de "erro de agir segundo preceitos universais" a perturbar alguma ordem racional necessária, como queria Kant.

Um grande diferencial de Sartre é que, pela primeira vez, desde Platão, não há um sistema, nem uma fórmula que dê conta das respostas. Como Kierkegaard recusando-se a refutar Hegel, para nao assegurar  o prazer nem a pretensa certeza à lógica como suposta regente da vida. São as vivências que agora assumem esse lugar, únicas e insubstituíveis. Variantes. Assim, Sartre, repudiando também Déscartes, outro conterrâneo famoso, ao realçar o valor do sentir-pensar-experimentar o mundo de uma outra forma muito mais intensa,  faz disso fonte nova e poderosa de conhecimento.

Edição comemorativa da Ed. Nova Fronteira, BOX 3 volumes - "Os caminhos da liberdade"