Do que não morrem os poetas


Para  Sérgio Blank
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Poeta pode xingar, cuspir, vomitar
Curar-se por uma estação
ou eventualmente se engasgar
com o veneno
dos próprios versos
ao qual jamais será imune

Poeta pode rir ou chorar
sem aparente motivo
Desafiar a lógica
Superar a noção de perigo
Pode jogar com as emoções
para além dos territórios seguros
Até sentir, por algum paradoxo
que ainda está vivo

O que no vulgo soaria trágico
ou caricato, o repreensível
Exagero ou destempero dos nervos
No poeta soa mágico
sendo a pré-condição de existência
desse monstro sensível

A pele reflete o peito
e a vida se recondensa, se alarga
e contesta qualquer razão
Zombando da mesma praga
que ora o adoece, ora o conduz
Pode duvidar até da vida
Futucar a ferida
pra graça de ver vazar o pus

Com a mesma curiosidade e fúria
com que desperta furacões
acalma multidões em suas
águas azuis

Poeta pode se travestir
quando quer
Vestir-se de criança
De guerreiro e de mulher
De velho, de moço
De morto e de palhaço

E toda veste lhe vestirá
também o espírito

Porque nele, representar é ser
E todo-qualquer gênero que lhe
aprouver, ou lhe dê na telha
de inventar, pela pura descoberta
Pela alegria  e o mistério de estar-aqui,
Neste tempo,  neste lugar
a desafiar os domínios da morte
em agonias de existir

Sua travessia é pedagogia
E  luta
Um contínuo testemunhar
E mesmo tendo partilhado a ceia
com os deuses
ou, no inferno, do diabo
tendo roubado o pão
ainda torna  à Terra por compaixão
e distribui generosamente
os frutos de seus feitos

Pode ocupar o espaço existencial
de todo o espírito humano imperfeito
do mendigo, do andarilho,
do imperador em seus desígnios
Poeta pode morrer
pela imprudência das próprias mãos

Morrer de riso
De delírio
De gozo
De amor e de dor

Houve poeta que, ao morrer
se tornou passarim
Outros que encerraram o próprio
caminho, na sucumbência
de um dia ruim

Ele antecipa o tempo e a chance
do sentido ao provocar a vida
para que se entorne incontida
Inoculando no coletivo o vírus
de uma justificativa possível

Ao enunciar a verdade
que a ele, mais que a outros,
por um segundo se mostrou tangível

Uma alternativa ao nada

Pode morrer das doenças tantas, que
atingindo o excesso de humanidade
às suas costas, o acometem mais
que ao resto dos mortais

E tudo isso faz parte de um ofício
O único que é também essência

Poeta só não morre
de morte matada

que quando isso acontece
a esperança da era desaparece