O domador de ventos




                                                                                                           



                                                                                                       




                                                                                                  Tarde vento, sol a pino
                                                                                      o elo: a seda , a cola
                                                            e um menino
entre o morro e o mundo a empinar pipas
alinhar vidas e sustentar o vôo em asas translúcidas
de céu seco em azul de pura ventania.

                        Pilotos veteranos se aprontando para os  duelos. Curumins na arte de planar quedam-se na beirada do campo para apreciação. Enquanto a vida ainda não vale, os menores arriscam jerecos de papel comum de página de caderno ou  de pão. Levantados ao baixo do ar com muita correria e empolgação,  pouca linha improvisada de costura: fina, imperfeita, rompedeira.
                        Os maiores, galopando ansiosos o vento esperado de agosto, meninada correndo em alvoroço, torvelinho se aventando no antigo campo de aviação . No lugar,  há tempos já não subia nem descia avião, mas tornou-se o aeroporto natural das pipas e a casa de todo vento. O gosto de agosto na saliva da espera.
                        Tarde à vontade, pacto  não escrito pela confraria do ar: agosto era diferente. Nem era mais férias, mas também não era retorno absoluto às obrigações. Agosto era pipa. A dor no pescoço. O abestamento dos olhos com aquele céu pintado. Não tinha mais pelada a tarde inteira, o  campinho agora tomado por carretéis e lascas de bambu com suas farpas cortantes; agosto ninguém estudava mais  pra prova na manhã seguinte, não tinha lanche da tarde, em agosto quase nem tinha mais almoço. Em agosto paralisava-se todo o resto,  tudo o mais que esperasse, porque antes do dever, pipa era a  felicidade. Prioridade das pipas navegando como os imponentes galeões  de velas e cores sobre a cidade. Quem já segurou a linha esticada e pulsante é que sabe: os  batimentos tensos no barulho da seda no vento, o coração pelo fio..... a subida... a febre...a boca seca... Olhos fixos queimando contra o sol, a pele desidratando-se na ansiedade do vôo.
                        Os melhores ganhavam a frente e apresentavam credenciais. Amador improvisava,  experiente experimentava, exibia seu apurado estilo na folha suave --papel de seda-- cada um com sua melhor aposta. Arte e  técnica calculadas para deixar sua marca  no manejo das cores borboletas teleguiadas no longínquo não-findar do céu. Todas rumando por identidades e insígnias diferentes, cada uma a relembrar  o feitio próprio do cavaleiro audaz a galopar com seu brasão e escudo: Estampa do glorioso Botafogo, já se sabe: lá vem Carlim. Azul-vermelha, quadriculada em  xadrez, é Sivanildo; Aquela amarela papel rajado é o Cebola; não o Cebolinha pequeno, filho, mas o Cebola pai mesmo, aficionado; A de papel pardo-pão pequeninha é Salamonico; Verde-esperança, o Geraldinho; Marquito, imperador como sempre, exibindo os cruzados em diversas pipas, sua obsessão: Os brasões e cruzes contrastados, como nos escudos medievais, a centenária luta dos mouros com os cavaleiros : corpo amarelo: cruz azul. Corpo vermelho : cruz branca. Corpo branco:  cruz vermelha.
                        Estratégia é arte de véspera: colas, linhas, tesouras e facas. carretéis, manivelas, latas de alumínio ou garrafas para o enrolo da linha grossa número dez  e "fio urso" para as pipas maiores e cuícas gigantes, fio pesado e difícil de arrebentar. A artesania de tudo aquilo: mãos ágeis desfiando bambus cortantes com cuidado e montando  o esqueleto leve lixado que, uma vez mergulhado em capa de papel brilhoso orgânico dos bichos chineses em breve ganharia os ares. Descascar bambu-fino rebuscado no mato com precisão. Não pode ser verde nem seco demais. Bambuvida, garoto, onde todo o cuidado é pouco : verde enverga antes da hora e  o seco quebra muito fácil. De vez em quando uma mão cortada, bambu-faca, esparadrapos improvisados no estanque de todo sangue: papel salpicado de digitais vermelhas. O sangue pela arte. A literalidade do belo. Corpo de seda, bambus desfiados tirando lisos do excesso de peso aparado por artistas. Varetas apuradas e alinhadas em três vias duplicadas em hexágono de retas paralelas alinhavadas fixas e perfeitas.
                        Não é tudo igual, quando o papel de seda no bambu se alevanta. Só vê igualdade nas flores quem não está afeito ao perfume. A natureza do vôo sustenta a graça. Esconjuntados objetos enquadrando o céu perfeito, dragões de grandes pés e cabeças, papagaios berrantes de muita cor e pouco movimento, jerecos aprendizes poluindo o primeiro andar, criaturas semínimas de onde mesmo em pequena lonjura sequer se vê. Nada disso é pipa. Quem sabe, é porque soube: a Lei do ar.  Pipa não tem igual. Amadores vão de jereco, papagaio e cuíca. Geringonçam de vez em quando, quando a grana sobra e o céu é grande. Artistas só voam de pipa. A Ferrari dos céus, manobrável e veloz, a configuração perfeita para o vento forte do mês mais seco.
                        Cabresto estudado sob medida para esse puro-sangue.
                        Rabiolas gigantes e coloridas subindo ao firmamento pela primeira vez, no equilíbrio carnaval de fitas alinhavadas, cíclicas, padrões alternados seguindo a cor principal metros e metros sob um sol  estival , capaz de queimar o fundo do olho de nóstodos pequenos Monets estudando dia pós dia o melhor ângulo da ventania. Quedando-se ao sopro inclemente das tardes rompantes. Pipas, o êxtase dos céus. Agosto. A cria produzida noite passada, --dia inteiro na tarefa -- alimentada e cuidada no coração-criatura irmanando-se em sangue, veias e sentimentos subindo aos céus pela primeira vez, É a sensação de liberdade sobre um ser todo-feito de luz. Cuida senti-la, perto não-ainda liberta à vida. Ela respira. Logo mais  ao longe, próxima tarde estará lá em cima, pulsando seu âmago de vento sobre a linha tensa e quase reta, esmedida com alerta para não dar barriga e responder prontamente aos comandos manuais.
                        Cuida menino, a linha umbilical da própria vida, a pipa de seda é o futuro que delavante toca o pingar das nuvens beiradas na batida do vento. Coração. Pulso. Calmaria. A emoção que sobe à boca, o vento que engole o peito. O gosto seco do ar. Agosto atravessa a gente, queimando as narinas, fixando o olhar.
            Batida sincopada, as mãos espreitando a vida pelo um fio. Tarde inteirinha no liberto do morro aparando  chuvinha que se avizinha, rara até setembro. Mas a água ainda é longe. -- Dá linha, dá linha,  até perder de vista. Dá linha, dá linha...  -- Mas ela ainda tá lá! não dá pra ver mais. Mas ela tá lá! Eu sinto que tá! Ainda não perdi, cê vai ver.  -- Puxa no carretel!
             Feito pescador que não vê além da superfície do mar aonde lançou o anzol, mas sabe que tem peixe rondando a isca e ele arrisca-se assim mesmo na profissão de fé  enquanto o anzol flutua e o chumbo pesa pra baixo. Pescador não vê, mas sente quando o bicho fisga. O vento suga. A pipa vai, estica quando sobe, gorgoleja quando baixa, emudece no já-alto e estabiliza no paravento bom. Peito brilhoso de seda, não folgada demais pra não soltar amarras, não esticada demais pra não furar. Esqueletos bambus precisos e leve-leves. Leve é o que voa, o que vive. Rabiola de sustentação e controle. Enorme. Maior,  mais equilíbrio e inevitavelmente mais pesada. Menor, mais louca a pipa, mais leve e mais longe no céu. Mais pesadas, mais bonitas, e não vão muito longe. As malícias das proporções entre o doce e o amaro. Um sobe , outro desce. Pipa de combate não pode ser grande.
                        Céu colorido de sedas. Testa queimando contra o sol que derrete o fundo do olho. Sol que  apanha todas as paisagens ao redor.
                        Súbito, delavêm as rivais do morro vizinho. No previsível. Hora da briga. Vento contra,  nós aparamos daqui, com sorte. Todos juntos. Vento a favor, mudamos com ele, e atacamos primeiro e eles aparam de lá. Pipas lançadas, velas diminuindo ao longe, pontilhados impressionistas sobre o céu
                        De Cerol, se tem coragem.
                        Sem Cerol, se falta coragem ou as mães proíbem na chinelada.
                        As mães sempre proíbem, desde que Joninha quase morreu ano passado por conta de um pescoço meio decepado. Benza Deus, Joninha tá vivo sabe lá como ainda mas não calcula direito, quase não fala, chora à toa, mija-se todo sem motivo e nem solta mais pipa.  O cerol foi cassado de vez. Melhor assim. ainda dá pra cruzar na habilidade e leva a melhor quem for o melhor. 
                        Cebolinha (filho) perdeu mais uma, sempre perde. Cebola (pai) consola e dá a sua pra ele, o moleque segue maroto e vai flutuar noutra freguesia, com medo de perder de novo.
                        Salamonico perde também a sua e chora, ele que vem chorando tanto nos últimos dias. A segredo de Ruy-ruivo, a gente sabia já: hoje era dia de não-tem, na casa dele Salamonico. O pai sem emprego, a mãe saída de casa fazia três meses. Dia de não-tem era quando ele passava o dia inteiro na rua, a camisa suja, a mesma bermuda de ontem caindo na bunda e cada um da turma levava ele pra lanchar em casa, alternado. Nos dias do tem, ele tava sempre mais satisfeito e ria junto com todo mundo. Suas pipas eram as maiores, e costumava vender algumas na temporada.
                        Mais aguardado, Marquito chega mais tarde, depois que todos já estavam lá, e é o rei no terreirão de chão batido na poeira. Todos silenciam quando ele avança na armadura do vento, sempre traz novidades no feitio, pipa de peito cruzado nos cimos, rabiola de respeito larga na saída e finafinando comprida à medida em que vai pra ponta, feito rabo de lagarto Teiú. O laço final na amarradura era sua marca registrada, além dos cruzados no peito da pipa. Marquito solta a mão e ela vai alteando cada vez mais até estacionar rum pontinho perdido, longe das vistas, apenas sentida pela tração na linha. Todos param pra ver. Meio-dia não tem vento. Só quem solta pipa sabe. Horário de vento forte é mais tarde, na hora do café. Mas para Marquito a regra não tem valia e o vento sempre vinha fora de hora. Ele sobe com a pipa na mão, hora do almoço mesmo, no terreirão perto do cemitério e empina. O campo abre e ele vai. Sempre sozinho. Vai vingar a pipa perdida de Salamonico, os pequenos donos de jerecos espalham a notícia. Todos se apinham pra ver. O vento vem buscar e levanta.  Ele estabiliza, o sopro forte, controla com uma das mãos, conversa sozinho baixinho. Fala consigo , parece, mas fala mesmo é com o vento. Só vemos a boca se mexendo no longe, nenhum som, enquanto a outra mão faz mestria no ar feito regente de orquestra. A camisa de malha , desenho de prancha nas costas, seus cabelos longos de um louro queimado base-parafina surfista carioca – da sua terra dourada do ridijanero -- revoam com a ventania.
                                    Marquito administra,
a pipa  parece parada, tem vez.
                                      Estudando os estáveis do ar.

                        O vento também para. Mas foi Marquito quem quis: ele chama, depois, e o vento vem. Eu vi. Daí  um pouco, ela estrila a seda lisa mudando de direção. Marquito segreda no ouvido do ser, muda suave o sinal da mão. Finge que não vê os adversários achegando-se mais pela orelha esquerda do campinho. Eles dominam o topo do morro vizinho, inimizando nosso espaço. O gesto agora é calmo, argumentativo. Marquito sabe, mas finge que não vê. Apenas conversa no ouvido da pipa. A três metros de distância, ele levanta e abaixa o braço amansa o ar lentamente depois arriba de vez, vento quente baixo pra cima, furacão feroz. Ele chama e o vento vem. Dois carretéis de Linha dez emendados, um absurdo de metragem e numa fração de segundo a pipa ganha distância e some no espaço. Barrigada de linha pela milhagem, ela responde distante aos comandos. Cria atenção pela beleza, pela envergadura e pelo longe até onde vai, e na cobiça logo caem em cima os despeitados desafiantes do morro de frente, fustigados de perto agora pela criatura de corpo sedoso que faz barulho sobre seus ouvidos. Eles galopeiam várias rivais no ar, questionando o ar imperial daquela ousadia. Vem verde riscada de lá, rápida do morro à direita. Marquito é rei e debica à esquerda, fugindo quando quer, e ninguém o alcança. Sonseia um não-sabimento e chama todos à distância de  um não-volta perigoso. Súbito recolhe a linha velozmente na manivela de madeira de guarda-roupa velho que ele mesmo fez e lixou até ficar o liso perfeito, e num piscar a coisa já está mais próxima e controlável. Ainda não investiu. espera que eles venham em bloco. Surge outra, vermelha maior à esquerda, encostando no lado contrário por um capricho de vento que muda a direção sem aviso. Marquito sabia como sempre do vento antes dele surgir e mudar. Logo, aquela imensidão de sedas coloridas está de novo em suas mãos, uma rabiola enorme, de cores alternadas e a beleza domesticada e quase falante de puro vento, pairando a meio metro das mãos, no soprar de sedas sôfregas.
                         Agosto é assim. (O mês dos ventos, quem solta pipa sabe). O imperador volta ao alto e dá linha novamente, debica agora à direita, fazendo rápido o conhecido movimento do "S",  pra fazê-la dançar, e depois, derriçando direto numa puxada única, de mão a mão, deixando carretel solto, jogado sobre o chão, e andando metros atrás, gato ágil e incansável sobre o terreirão liso. Sob nova ameaça dos rivais vizinhos, eles morderam a isca e ele resolve agora partir pra briga. Em uma fração de segundo, a pipa, antes a mil pés de altura, agora ali pertinho, no tocável com as mãos, encostando a rabiola sobre as cruzes e catacumbas do cemitério velho. O beijo das mãos sobre a seda, no reconhecimento do filhote ao dono. A pipa quando volta lá de cima, nunca é igual mais. Está encantada. É outra criatura-agora porque destemeu o mundo. 

                           Vai usar o cerol matador de cola-de-boi e limalha de ferro com lâmpada fluorescente macerada durante dois dias em pilão de louça na peneira fina, madurando o molho antes de molhar a linha. Marquito dá um banho generoso de cerol nos primeiros vinte metros da linha depois do cabresto, sob olhares encantados de toda a molecada diante do ritual proibido. Acende o Hollywood filtro amarelo enquanto espera secar a linha por uns minutos e parte novamente ao alto,  vento no peito, caco de vidro moído e colado, limalha de ferro na poeira corta até tijolo é só puxar forte e depois dar linha duas ou três vezes, o papel de seda fazendo aquele barulho de garganta seca bebendo vento no engasgo e ela logo está de novo no lugar mais alto, ágil  corisco buscando o desafiante que agora partira em retirada , acuado pelo vento contrário. Marquito dá linha, e sente o momento favorável, mergulhando sobre a cauda do oponente, e seus metros de cerol clandestino depois do cabresto são mais que suficientes para cortar qualquer coisa que ali encoste, sai cortando e aparando os adversários, pega três pipas ao mesmo tempo que vazavam na mesma direção em contravento, os adversários pulam e gritam inconsoláveis lá do outro morro, donde só vemos as figurinhas formigáveis e agitadas.
            Sem se intimidar, as outras da terra alheia vêm no socorro dos que se perdeeram,  voam ao embate, peito à mostra numa coleção de cores, caleidoscópios de papel ao reflexo do sol. Plural de confetes coloridos em pontos luminosos sob o alto azul claro : espirros de cirros a essa altura quase invisível. Nós, impávidos no chão, cabeça reta pra cima, dor no pescoço durante um infinito extasiados sem baixar o olhar e contemplando incansáveis  o sol seco de agosto agasalhando aquelas almas coloridas. Um show de fórmula um pairando nos altos.
            Não se sabe direito o que o sol vê, mas  percebe-se que ele fica mais feliz nos dias de pipa no ar.  Entre  nós e o céu : o sol e na cauda do ar esses mosaicos borbolêicos de todos os tamanhos, todas as cores, todas as técnicas para os infinitivos coletivos de confeccionar, empinar, debicar, cortar, cruzar, aparar, e quase sempre chorar quando se perde a perfeita pipa pra algum predador do outro lado do morro.
            Predadores sempre há, como navios do tesouro que navegavam durante séculos no mar infestado de piratas. Mas pipa que se perde é como filho partindo no mundo. Aquela preciosidade duramente trabalhada durante dois dias eternos, agora descendo lentamente a esmo cortada. Quando caem,  a meninada corre logo atrás, no resgate. Uma olimpíada de obstáculos e méritos próprios dos recolhedores de pipa, que sabem o preço do seu prêmio e fazem por merecer o tesouro que lhes cai nas mãos.
                        Pipas perdidas em árvores, em fiação, em telhados inacessíveis das casas. Todas são resgatadas como a própria vida que chama. Capturadas já quase sem vida, sem linha e sem dono, é de quem pegar. Tá certo. É a lei do morro. Quem pega, admira, estuda aquele pássaro na gaiola das mãos.  Repara a arte, observa o feitio e a sutileza da colagem leve que tanto revela do criador. Sente a textura da folha, a beleza da cor. Cinco ou dez voltas nas laçadas de corpo, qual a cola, qual o tamanho da margem para encobrir a linha do esqueleto sem pesar, quantas polidas nas varetas, quantas laçadas nos encaixes. Uma vareta e papel é jereco, duas varetas é papagaio ou cuíca, e três varetas, é a pipa: a Ferrari do ar. Só quem sabe sabe. Uma vez cortadas, se soltam das mãos do seu dono, toando na descida uma canção desamparada de despedida, como uma cabeça pendendo torta do pescoço num corpo morto abatido pela guerra que é sempre guerra e todo dia sói, descendo assim rota enquanto dança lenta e exibe o rosto à direita e à esquerda, como a dizer um não sofrido e continuado até o chão ou o topo de alguma árvore ou fiação. Destino de pipa quando cai é só  corpo mesmo, porque seu espírito já se amoldou faz tempo  ao espaço.
                        E de lá ele não volta.
                                                  
           
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texto publicado originalmente no blog "Aleph", em 01-06-2014 - reg AVCTORIS jul-2016