O pai do meu amigo era um espião


Espião dá depressão - Home | Facebook

Quando completamos dez anos de idade, junto com toda a sabedoria do mundo ganhamos ainda uma espécie de sexto sentido, uma antena parabólica mais aguçada e perspicaz, que consegue intuir as verdades das coisas ainda não acontecidas. E aquela verdade foi aos poucos se revelando, à medida em que entrávamos e saíamos da casa do nosso querido amigo A, depois das sofridas e intermináveis sessões das aulas de quinta série. 

 Estávamos nos anos setenta e qualquer coisa, pleno auge da famigerada ditadura militar que assolava o país havia mais de dez anos e ainda levaria outros dez para acabar. Numa época onde as expressões “sete de setembro”, “patriota” e “nacionalista” garantiam o brilho de qualquer discurso duvidoso e acresciam uma boa reputação a qualquer criatura suspeita sob o sol, e onde, em contrapartida, os termos “comunista”,  “hippie” e “ter idéias próprias” eram altamente perigosas e clandestinas, além de terminantemente proibidas para crianças desde o nascer ao por-do-sol, -- dentro do espaço que compreendíamos como “rua” -- e é claro, depois do pôr-do-sol também, até o nascer do sol no dia seguinte, por precaução, no outro espaço comumente denominado “casa” ou “lar”. 


A verdade é que, por essa razão ou outras inteiramente desconhecidas, nós todos corríamos enormes riscos naquele tempo, simplesmente por estarmos ali, naquele lugar, naquela época, por um  mero acaso.

 Enquanto o pau quebrava, literalmente, desde os idos de março no perigoso mundo adulto, aquela casa tornara-se nosso quartel-general. Os pais ausentes, uma empregada que mais parecia uma segunda mãe: bem humorada, liberal e preparada para nos auxiliar nas melhores bagunças e ainda fazer uns lanches inesquecíveis de tudo que é doce, sanduíche e suco. De vez em quando ela também entrava no time de vôlei de rua, e ainda pegava no gol quando faltava um ( pensando bem, ela não lembrava muito uma mãe, vamos lá). Além do local privilegiado e a riqueza de opções em sua casa, nosso amigo ainda dispunha daquela raridade de ter duas irmãs, uma de idade mais próxima à nossa, e outra menorzinha, que não apenas não eram chatas, como costuma ser a maioria das irmãs, mas compunham com o resto da nossa seleta turma uma equipe e tanto para nos ajudar a desfrutar de uma vizinhança com quadra de esportes e rua larga e deserta, além de um quintal gigante com árvores, muita terra, mato, areia e um cachorro Pastor Alemão amigo. Sem contar que a mais velha, V., era realmente uma graça, com aqueles seus olhos marcados por tons sombrios e o jeito superior e fingido de dizer que não gostava muito de mim. Não gostava, né? – eu comigo lembrando, com aquela fratura de alegriazinha besta – dizia que não gostava mas era quem mais ria das minha piadas e sempre dava um jeito de aparecer e ficar zanzando pela área quando estávamos lá ao redor da mesa de pingue-pongue. Havia ainda  um outro quarto com uma variedade enorme de brinquedos, desde os tradicionais jogos de tabuleiro de todo canto do mundo, -- do qual A. era aficionado --  uma coleção de carros de metal em miniatura matchbox , um estojo de química, jogo de ping-pong, robozinhos de controle remoto e ainda, algo meio inexplicável para um garoto daquela idade, meu amigo ainda dispunha de uma coleção de artefatos indígenas que o pai dele trouxe do Xingu, em uma de suas muitas viagens pelo país afora. Seu pai, que conhecíamos mais por fotografia do que em pessoa, era sempre ausente, viajava muito.

                        E foi justamente por conta dessas ausências contumazes dos pais em casa que saltou logo minha curiosidade infantil diante do quadro benéfico que se instalava naquelas tardes com essa turma toda de quatro ou cinco amigos. Nenhuma outra casa tinha aquela perspectiva do mundo dos sonhos. “Minha mãe tá na escola dando aula. Sai cedo e só volta à noite”. “Meu pai tá viajando”. Invariavelmente eram as respostas quando alguém indagava sobre o assunto. Logo esquecíamos e aproveitávamos o que as tardes traziam de bom, sem adultos inoportunos para acabar com a festa.
O tempo passou, e um belo dia vimos pela primeira vez o pai do nosso amigo, que por acaso tinha se demorado em casa por uma semana a mais, entre uma e outra viagem. Alguma coisa com seu vôo tinha atrasado e ele precisava remarcar a passagem. Num mundo onde mal as pessoas, numa cidade perdida nos confins do Brasil, sequer possuíam automóvel, não é difícil imaginar o quão fantástico era estar próximo de alguém cujo pai voava assim com tanta frequência mundo afora; era quase como conhecer por tabela o próprio Flash Gordon. E o Senhor L (acho melhor a abreviação enigmática, cujas razões logo compreenderão), era mesmo um cara diferente. Eu não era lá muito entendido de estilos e roupas de pais ainda com a idade de nove ou dez anos, mas notava-se logo as diferenças. Seu aspecto lembrava muito o que víamos nos filmes americanos, quando se designava o visual disfarçado de um agente secreto inimigo da temível URSS, ou CCCP para os entendidos, siglas que sequer poderíamos pronunciar em segredo, com medo das consequências. A grande sacada era que eles tentavam com uma quase-perfeição imitar o jeito americano típico, para se fazer passar pelo americano típico, mas acabavam se entregando uma hora.

E o pai dele não mentia, na aparência. Quanto mais americano parecesse, mais graduado na escala russa de espionagem, e assim mais deveria ser temido. Cabelos cortados curtos com um pequeno topete, aparado com máquina nas laterais, costeletas curtas e aqueles óculos pretos e redondos de armação policarbonato, semelhante aos operadores dos submarinos nucleares soviéticos que víamos nos filmes de guerra de Hollywood. Relógio tradicional de aro de metal branco e correia marrom, calças sociais, cinto da cor dos sapatos, sempre brilhantes, e normalmente camisa social de manga curta, com alguma caneta no bolso esquerdo. Tudo assim, óbvio, é claro, como já sabido, para disfarçar e tentar se parecer com um americano típico. Mas aquilo não enganava ninguém. Nem a nós mesmos, simples crianças investigativas em prol do bem da pátria verdamarela. E ele além de tudo era dissimulado, o pai do nosso anfitrião, a ponto de certamente esconder tudo isso da própria família. Nosso amigo tão querido e sua família receptiva e inocente sequer deveriam saber das consequências. Incumbido de alguma missão secreta pela KGB, veio pro país na surdina, casou-se por aqui e foi se arrumando, mas sem deixar de lado as atividades proscritas, das quais de tempos em tempos, regular como um relógio suíço, devia reportar aos seus camaradas patrões. Sempre de poucas palavras e sorriso amigável no rosto, às vezes fazia perguntas sobre nossos brinquedos preferidos e qual a matéria da escola em que nos destacávamos. Recomendava levar a sério os estudos e principalmente que nunca deixássemos de jogar xadrez, seu jogo favorito. “O Xadrez é a metáfora da vida”, eu sempre o ouvia dizer, e mesmo eu tendo recém-iniciado minhas lições básicas no mundo de cavalos, bispos e rainhas, e ainda sem saber direito o que vinha a ser metáfora, achava aquilo de suma importância. E entre nós, se tudo isso que eu disse antes ainda tivesse botando em dúvida seu status de chefe da KGB, bastava olhar para aquele par de sobrancelhas para tirar qualquer dúvida. Aqueles bichos de pelos eriçados grossos e refratários a qualquer tipo de pente ou tesoura, eram sem qualquer dúvida, a herança de alguém que algum dia habitou as regiões vizinhas da Sibéria ou coisa parecida. E ainda gostava de xadrez!
                        Algumas vezes, indo pegar um brinquedo esquecido na sala, eu o vi ao telefone no quarto ao lado, cheio de tapetes e estantes, que funcionava como uma espécie de escritório, falando em voz baixa uma língua estrangeira. Também não entendia nada de línguas, como acho que até hoje não entendo, mas naquela época eu já me lembrava o suficiente das aulinhas chatas de inglês e sobre as torturas do verbo “to be”, pra compreender que o que ele falava era mesmo aquele  inglês das provas chatíssimas e arguições orais. Mas isso era novamente algum plano para despistar a língua original, sem dúvida.  Meu amigo tinha me falado tempos antes que seu pai concluíra dois cursos superiores e falava mais de um idioma, além de já ter morado em outros países e contar no currículo com diversas viagens internacionais. – “ahaaaa”, pensei. Na ingenuidade da fala, a malícia de todo um disfarce vindo abaixo. Meu amigo em sua inocência, nem sonhava. Naquela sala com cara de escritório, mal iluminada por uma luz amarela, o Senhor L caminhava par um lado e outro, tinha dia que parecia nervoso, abria umas gavetas com chave escondida no armário de vidro, fumava uns charutos sempre acompanhado de um copo de vinho ou conhaque. Na estante, vários livros sérios de capa dura, microscópio na mesa, globo terrestre, livros de interesse destacado por geografia, coleção fabulosa da amarelinha “NatGeo”, que vi pela primeira vez em sua casa, outras revistas de viagens e uma chaise para fumar. Seria um tipo de professor? Algum executivo? Malocado atrás da porta do escritório desta segunda moradia que passou a ser a casa do meu amigo, uma vez que eu passava mais tempo lá do que na minha própria casa, eu espreitava o Senhor L, de vez em quando, enquanto ele anotava coisas num bloquinho de papel cujas folhas depois ele amassava e guardava no bolso. Logo ele sumia por mais umas semanas ou até meses, e a casa retomava nosso paraíso de sempre. 

                        Livres novamente para explorar, uma hora a curiosidade falou mais alto. Filipe na parceria de crime, Breno de vigia na porta do quintal para ver se Dona Sandra, a secretária, não voltava pra sala, e Zé Carlos distraindo nosso amigo A. com uma interminável partida de Xadrez na mesa grande da cozinha. Depois de convencer a turma toda sobre minhas suspeitas, eu e Marco entramos no escritório pra escarafunchar gavetas. Chave escondida na mão, um olha daqui, outro espia de lá, meio nervosos, sussurrando; “olha lá, animal, abre aquela gaveta ali”, “já vi, porra, tem nada lá não”, “então abre a estante que deve ter”, “tá bom, me dá a chave”. Mexe em papel, gaveta destrancada na esperteza e decepção, os próprios espiões em campo pra quebrarem a cara na sequência: não tinha arma automática que nem o “agente 86 Maxwell Smart”, não tinha código secreto rabiscado numa folha para iniciar a terceira guerra mundial, não tinha o nome do verdadeiro assassino de Kennedy, o rascunho dos planos para o atentado de Pearl Harbour, -- tudo coisa de russos, é claro. No máximo, um monte de papéis carimbados, uma foto tirada nos Estados Unidos, próxima aos jardins da Casa Branca, outra em companhia de alguma autoridade americana e a bandeira nacional daquele país ao fundo, mais uma coleção de selos raros em envelopes especiais, notas de dinheiro estranho e alguns documentos com foto. Nada. Fecha tudo no cuidado, pra não deixar pista, e eu de cara grande no fim de tudo. Fazer o quê?  “Bora jogar bola que o sol baixou”.
  Tudo ia assim muito bem, e nosso amigo A. era muito querido por todos, inteligente, comunicativo e boa praça, e não poderíamos desejar algo melhor do que o quartel-general que se tornara sua casa para nossas missões de todas as tardes. Para melhorar ainda mais a cena, ele morava perto de uma quadra de futebol, que por sinal sempre à nossa disposição. Tínhamos bicicletas, peladas diárias, quintal grande com cachorro, jogos de tabuleiro e uma enorme estante com todos os tipos de livros.  Mas como felicidade escorrega fácil, depois de dois verões no paraíso, no retorno das férias de julho, fomos comunicados em sala que a família de A. não retornaria mais à cidade, pois havia se mudado para São Paulo. Depois do susto e da decepção inicial, o tema foi se assentando e as rasas especulações davam conta do básico: o pai provavelmente buscara uma melhor colocação profissional, a mãe seguiu junto, e assim se resolveram num lugar onde talvez o progresso batesse mais frequentemente à porta, diferente de nossa pequeníssima cidade desimportante. Mas pra mim, não. Nunca engoli a história, ainda sentindo o baque e – confesso, uma certa saudade extra de V. , a irmã de A, e seu jeito especial de dizer que não gostava de mim com aquele sorriso torto. Passei a buscar  com rigor nos meus apontamentos afetivos e memoriais os traços daquele sumiço repentino, numa época em que silêncio e sumiço sem deixar pistas não eram coisa incomum por estas nossas terras. 
     E não era nada difícil concluir o que aconteceu, pasmem. Em pouco tempo consegui fechar a coisa toda, na cabeça. As pessoas é que andavam muito alienadas à minha volta, a ponto de não enxergar o óbvio. Era só juntar aquele monte de informações. O visual do pai do meu amigo, sua tentativa soviética infiltrada de disfarce perfeito de americano, com seus óculos de policarbonato pretos, suas calças sociais sempre bem-passadas, o cabelo estilo militar, as conversas em um inglês certamente dissimulado pra não chamar a atenção para a língua russa materna, mais aquela  incontida admiração pela estampa da bandeira americana em fotos ou no quadro ao lado do globinho mundi azul no escritório. Era de se notar que o homem só viajava de avião numa época onde poucos na cidade sabiam o que era um avião. Ora, sem qualquer dúvida era um daqueles espiões da KGB, que tanto víamos nos filmes. Um espião russo mergulhado  em nossa insignificante e isolada cidadezinha no interior do país. 

Nesse contexto, o que o pai do nosso amigo iria querer por ali? Será que estava passando um tempo de desintoxicação dos arquivos mundiais de buscas e capturas, enquanto preparava um retorno estratégico ao topo da guerra fria? Acaso espionava alguma de nossas preciosas instituições locais?  Na cidadezinha havia  uma faculdade de humanas, duas escolas de segundo grau, um batalhão de polícia militar, uma escola de ensino agrícola e dezenas e mais dezenas de hectares de bois e café. 

A única coisa que extrapolava o caráter local e recebia pessoas, alunos e pesquisadores do resto do país e do mundo era a universidade pública, situada no alto da colina, na qual meu próprio pai era também professor. Mas quem é nessa vida que iria querer espionar uma universidade, aprender sobre processos educacionais, interferir na forma como alunos aprendem a ler, pensar, saber como eles descobrem suas matemáticas, geografias e biologias, como é que os professores debatem ou não suas realidades e suas propostas de futuro para o país? aquilo era extremamente desinteressante e não fazia nenhum sentido. Os espíões dos filmes levavam vidas muito mais emocionantes e realistas. Primeiro, cheio de mulheres bonitas e perigosas. Depois, carrões pra todo lado, armas secretas e embutidas numa caneta, num pente, num sapato, capazes de os fazerem superar qualquer situação. E por fim, seu trabalho era espionar armas químicas, indústrias e porta-aviões, bombas atômicas, resumindo não havia nada realmente interessante em nossa comunidade que pudesse ser do interesse de um russo inimigo qualquer. 

O fato é que todos nós, que estivemos tão próximos daquela casa e de nosso amigo nos últimos tempos, provavelmente estávamos desde sempre correndo risco de vida. Imagine só: certamente fomos documentados, estudados e filmados por minicâmeras secretas russas enquanto brincávamos inocentemente com aqueles quebra-cabeças espiões ou invadíamos em segredo o escritório do Senhor L, ou então quando  quebrávamos deliberadamente as vidraças da casa vizinha, na calada das tardes, apenas pelo tédio de ver quem acertava o vidro primeiro. Eu devia ter dado mais atenção à questão da sobrancelha e do jogo de xadrez. Aquilo era o desfecho mais que previsível da situação toda.
Fomos certamente flagrados por alguma anotação criteriosa e olhos profissionais enquanto nos apropriávamos dos frutos do quintal alheio, que por acaso era extremamente rico em jabuticabas, mangas e mexericas, e sobretudo, já deviam saber agora de nossas informações sigilosas sobre como pretendíamos dominar o mundo no tabuleiro de War, jogado visceralmente dia após, dia, exibindo nossas ganas de conquista mundial, tudo isso agora certamente já devia estar sendo debatido por todas as cúpulas ideológicas desse planeta. Éramos cobaias de um projeto maior. Nossas experiências no laboratório de química do nosso amigo seriam catalogadas e usadas como prova dos nossos planos subversivos. Era apenas uma questão de tempo, agora. Os russos iriam nos invadir a qualquer momento, e tudo por conta das informações do pai do nosso amigo, espião que revelaria  tudo.
       Não demorou muito, fosse pelo aumento da complexidade dos exercícios das infelizes matemáticas na escola, que tomavam inteiramente nossa atenção, fosse pelas questões diversas trazidas pelas voltas do coração permanentemente apaixonado, coisa que começava a dar tanto trabalho depois se instilar em meu peito já nessa idade, o assunto da espionagem sumiu da minha vida, assim como rapidamente tinha desaparecido primeiro da mente e do espírito dos outros colegas, comparsas e co-subversivos mirins que tramávamos os destinos do planeta nas tardes em casa do nosso anfitrião. Mas não há como não revelar um fato que  depois me pegou pelos pés, me angustiando ao reforçar ainda mais  minha compreensão do assunto . Depois de muito tempo desconectado, recentemente tive notícias de A, por outros colegas. Nosso amigo A., uma vez terminado o ensino médio, mudou-se de São Paulo com a família direto para Washington, para estudar carreira diplomática, pois conseguira bolsa integral na principal universidade daquele país. Não apenas formou-se com louvor, como fizera ainda mestrado e doutorado e hoje era um dos importantes nomes da equipe de políticos e conselheiros estratégicos do novo governo republicano do Tio Sam. Na sua foto feliz de rede social, ele aparecia ao lado do pai, já velhinho, ambos posando não apenas ao lado  da Casa Branca, como a maioria dos turistas, mas lá dentro, apertando a mão do próprio presidente junto com outros homens de uniforme, todos tendo ao fundo a figura esvoaçante de uma enorme águia azul vermelha e branca.

Minha preocupação agora era outra: quem avisaria aos americanos que estavam sob enorme perigo, lidando com uma facção de espiões russos?


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texto publicado originalmente no blog "Aleph", em 12-03-2014 - edit  reg AVCTORIS jul-2016