"Resenhas" (Repost em homenagem a Sérgio Blank)



Primeiramente, um alerta: não sou do tipo que acredita em "arte regional", portanto nem de longe me chamem para celebrar "A literatura capixaba", como se isso de fato fosse algo real, e ainda, algo digno de nota por alguma razão. Trata-se de um enorme equívoco, apesar de largamente usado pelo jornalismo local, esse conceito, porque creio fundamentalmente que arte, seja aqui ou lá no quinto dos infernos que seja produzida, é sempre o testemunho humano sobre o mundo e a vida, independentemente da forma com que seja produzida ou em que se faz para chegar até seu público. Por isso, atrai para si, desde sempre , uma idéia universalista do que é ser gente no planeta Terra, independentemente das intencionalidades ou o contexto de sua produção.

Ainda que sejam naturais e louváveis iniciativas pragmáticas e de incentivo cultural do tipo financiamento público para autores e artistas locais ou regionais, seja por município ou estado da federação, ainda que sejam desejáveis , até , as tais bolsas de incentivo, as estantes em lojas especializadas em livros de autores locais, para que a população que consome ou consulta essas artes  possa, primeiramente, visualizar e tomar conhecimento de que eles existem, nesse ambiente fisico de tradicional  competitividade aonde possivelmente qualquer iniciativa independente seria facilmente sufocada pelos lançamentos de marketing e perfil block buster com financiamento robusto, é natural desejar que todos  saibam que aquilo ali está sendo produzido por conterrâneos, dentro de um outro universo de leitura, mas isso não se aplica de forma epistemológica ao conhecimento, ao saber, ao "objeto" artístico e muito menos à criação, como se houvesse uma possível definição por solo. Somos humanos, no fim, e é isso que nos define, sendo a classificação algo meramente didático apenas para situar a língua, nacionalidade etc

Arte não é artesanato, e por isso difere imensamente em sua presença material e intencional, e embora o livro, o tema, os personagens, a linguagem possa ter  recorrentemente o sentido de registro e  pesquisa das particularidades regionalidades retratadas, isso não se aplica à finalidade do trabalho em si. Como tantos já disseram, por analogias, como no exemplo: se Camus é um escritor Franco-Argelino, natural que se apreenda de suas obras muito dessa influência geopolítica e cultural, Dostoiévski e Tolstói são russos, e isso se vê logo em muitos aspectos através de suas obras, mas porque essas referências nacionais, culturais, de fato representam "algo", contrariamente ao que sugere em termos de afirmação de particularidades uma tal "literatura capixaba", "literatura carioca" ou "paulista", enfim, a se mostrar autônoma e independente como regionalismo forjado sabe lá Deus por quê e para quê.

Dito isso, faço minhas sugestões desses belos livros produzidos localmente,  mas que nem por isso estariam passíveis de serem incluídos nesse conceito apequenante e terrivelmente equivocado de "Literatura Capixaba", uma velha quimera a nos re-habitar nos tempos pós-modernos.

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ROMANCE: "OS INCONTESTÁVEIS", Saulo Ribeiro, Cousa 2018. Um "ROAD MOVIE" por definição, só que em forma escrita. A presença forte do melhor imaginário como uma sessão de cinema que se desenvolve na mente do leitor enquanto acompanha os diálogos extremamente criativos e as aventuras desses irmãos rebeldes e roqueiros em sua trip pelo osso do norte capixaba atrás de um Maverick envenenado que pertenceu ao pai. Coisa boa, leve, o estilo maduro do autor em transformar uma aparente viagem qualquer de fim de mundo em um testemunho intenso de vida que se movimenta ao viajar. Tem algo de "Beat" por aqui, mas enriquecido por um contexto histórico bastante trágico a nos retratar em nossas mazelas herdadas no campo. De um certo ponto pra frente, a estética "road movie" dá lugar a um universo "Tarantino" de ação tensa, contudo sem perder algo de cômico quando nos damos conta de que todos somos meio que personagens, em vida, de uma certa valsa macabra que não escolhe hora nem lugar para deslanchar. Há uma questão forte, que subjaz: a vida, em essência, está mesmo é no trajeto de um ponto a outro, muito mais que num destino?


 "O JOGO DOS FILMES". NÃO-FICÇÃOBernardete Lyra, Ed. A Lápis, 2018. Resultado de muita pesquisa e vivências pessoais na fascinante área do cinema, mais um belo trabalho da pesquisadora/escritora, que propõe a via lúdica como chave, ou antes, mecanismo intuitivo criador de chaves de leitura dos filmes. Não apenas como "leituras", no sentido intelectual, mas vivências. A arte, no fim, é algo que apela aos sentidos como um todo , e não necessariamente e unicamente à intelectualidade cinzenta. O sentido de jogo aqui, é rico, e não tão simples como pode aparentar.

Partindo de um rico exemplo ntuitivo de observação pessoal ainda na infância, a autora relembra o sentido de "jogar" como no viés da criança, e desenvolve o conceito da necessidade desse lúdico ser revivido como num sentido fenomenológico de se "reinventar a experiência do olhar", a proposta do espectador se dar a chance de tentar absorver uma dada experiência, na tela, usando para isso de todas as percepções possíveis, e não apenas o senso crítico cartesiano. De um lado, isso é sim, jogo, no sentido puramente lúdico e intuitivo como na analogia universal em que a  criança vê o mundo não como "objeto em si", de sentido e destino limitado, fechado, mas como proposta e linguagem eternamente a se recriar ,de forma infinita, não-fechada.

De outro lado, porque na apresentação de cada autor, cada cineasta e sua proposta-filme, cabe também se aprofundar no imaginário e signos mais utilizados como referência particular (diretor/roteirista) em sua proposta, que por mais particular e hermética que possa parecer, sempre oferece passagens para o espectador. Cada autor cria seu próprio elemento de jogo, suas regras e suas estéticas recorrentes, personagens, paletas de cores, objetos simbólicos e através dessa imersão, tipicamente rica e multifatorial como é no cinema com toda sua sinestesia a contaminar fortemente os sentidos é que se desvelam as mais ricas possibilidades de partilha para o espectador.

Essa absorção pode estar no sentido geral de  um desafio de uma "grande brincadeira" de viagem interpretativa, deixando um pouco de lado a via usualmente racional-cartesiana de análise, que por mais que possa trazer referências exteriores ou até buscar significação dentro da própria égide do autor criador, por vezes sepulta boa parte da riqueza interpretativa e de certa forma, anárquica, do resultado-obra,(filme), estagnando-se nos estereótipos não desejáveis para quem lida com qualquer atividade artística.

Lembremos aqui que a criança, quando brinca, leva a sério a brincadeira. Através dessa nova habilidade de percepção, surge o panorama de uma experiência muito mais larga com o cinema, destinado a torná-lo uma real vivência, e não apenas uma experiência de rasa erudição. Talvez , ao fim, ainda seja possível evitar pré-conceitos e jargões e senso comum tão veiculados do ponto de vista crítico, quando alguns cineastas e/ou filmes são tachados de herméticos, e da mesma forma outros são descartados por aparentemente trazerem a lume algo que é considerado um sentido raso ou excessivamente explícito. Quando a experiência do cinema passa a integrar a vivência, já não estamos falando mais de "crítica especializada", mas muito mais a história de absorção e inter-relação da arte com a própria vida, o que sem dúvida aumenta seu valor.

Os textos do livro sempre trazem um suporte de referências e abordagens paralelas de um viés teórico  que não poderia deixar de existir para uma autora que em sua trajetória sempre se destacou na pesquisa cinematográfica. Por seu caráter universalista, já é , desde já, leitura obrigatória para quem gosta ou pretende estudar cinemas/cineastas por estas nossas terras.


MINIVIDAS, POEMAS. Wladimir Cazé, Cousa 2018. " (... ) passado sempre insepulto/tumulto a todo tempo/todavia a voz não se levanta em vão..." (pg. 09). "(...) abalados alicerces/ano após ano após/desfilam por nós os estandartes das hordas hostis/a jorrar como correntezas de azar/a escancarar riso escárnio amargura sarcasmo/a dor arrancando raízes entranhas adentro/aridez nos gestos/aborrecimentos/aspereza nos dias ausência de agasalho/avesso de alívio/algoritmo gago/ritmo engasgado/acenos aflitos precários apelos/aparições impalpáveis pavorosas abominações/fartos arames farpados/no alfabeto do maniqueísmo/ indícios avisam/ abismo adiante " P. 37)

No início ou no final do livro, assim fala o poeta em seu mais novo trabalho, poemas sem títulos e com forte conteúdo existencial/político como a profetizar novos tempos. O poeta, como no dizer de Octavio Paz ou como na crença da Grécia antiga, sempre o arauto do tempo novo, seja ele bom ou ruim, o bruxo, o vidente. Tanto melhor (ou mais trágico) se fazem seus versos quando a própria realidade vai se formando dia após dia, mês após mês,  no desdobramento retumbante destes tristes tempos a confirmar o vaticínio. Ou, como no seu próprio dizer na cunha recorrente e feliz de novas palavras, quando a "nanonimidade" manda, o castelo de cartas desmorona.

OS DIAS ÍMPARES, Sérgio Blank. Coletânea de poemas. Não há como avaliar uma coletânea como se fosse um único trabalho, um dado livro em particular. Um livro, por si só, já é coisa que encerra tantas tendências, uma fase, uma época enfim, uma dada experiência de mundo do autor, tantas falas que congregam determinada lida com as palavras e revelam seu amadurecimento estético ou mudança mesmo , pura , do gosto da escrita para navegar na direção que seu próprio espírito o conduz. Então , genericamente, fica o registro e a recomendação da aventura de se ler Sérgio Blank por inteiro, sem saltar as fases criadoras muito bem expostas nessa bela coletânea.

O que chama mais a atenção e empolga é o espírito anárquico do autor, desde ainda jovem, , como em "Estilo de ser assim, tampouco", há quase quatro décadas atrás. No percurso do tal tempo exterior que às vezes nós mesmos nos colocamos a  questionar , como se vê dos trabalhos subsequentes, veio muito experimentalismo no caminho. Percebe-se, no correr dos poemas e ousadias estilísticas, os objetos de leitura do autor cambiando (tanto do mundo quanto dos textos)  à medida em que os novos livros vão surgindo como explícitos resultados de vivências e influenciando fortemente a pegada. Não há gênero mais contundente para ser observar isso do que a poesia, pelo pulso que a conduz, pela força da expressão intentada pelo poeta. Se ele vivencia novas emoções, se abandona antigas convicções e adota novas, se o seu pulso se expande ou se contrai, isso aparece muito mais que na prosa, e é bastante fértil comparar esse andamento ao se cotejar obras produzidas em diferentes fases.

Blank é sempre um anarquista, seja para onde apontar sua pena, seja de onde vierem suas influências. Isso nunca morre, em todos os trabalhos.  Ainda bem, pois a condição prévia de liberdade para pensar e sentir o mundo, seja em que categoria ou presença estética que o inspire, torna mais potentes os versos, e mesmo quando em situação de delírio possível como em toda boa poesia, também os dota de maior legitimidade pelo vivido.  E nada escapa à sua verve crítica. A solidão, deus ou a ausência dele, as religiões institucionalizadas, apequenando qualquer sentido de espiritualidade, a sexualidade conformada e com hora marcada, elegendo seus tipos não por acaso afeitos ao sistema econômico e moral vigentes, a burguesia e a sua pobreza inerente de ver o mundo apenas como insumos para a fábrica e as pessoas como  autômatos .

O poeta também é um erudito, posto que no trajeto de pensar-sentir o mundo vai adquirindo e experimentando o conhecimento, vai bebendo de diversas fontes, mas não se trata, por fim,  de uma erudição vazia ou academicista em  sua artificial formalidade ou estreiteza de olhares, a pretensa e tantas vezes pedante seriedade que deixa de ver , como no dizer de Cazuza, "o perfume de uma flor no lixo" para perder-se nos entraves pesados da mera crítica literária fria , quando não puramente burocrática.

 A crítica do poeta é  aguda, em alguns momentos, e genérica vulcanizante em outros mas não se mostra em momento algum como "proposta de um novo mundo" Não existe esse viés salvacionista nem que levemente sugerisse a superação das mazelas humanas por algum tipo de coletividade ou por alguma panacéia social. Outra força a marcar o anarquismo criativo do autor.

Mas esse anarquista é também um doce poeta. Mesmo sabendo dos desencantos tão recorrentes sobre o amor -- nuance que surge frequentemente por uma  megadose de melancolia em diversos momentos de sua obra --, da reiterada natureza humana de se frustrar nos jogos de Eros, ele não deixa de mostrar sua crença, quem sabe mais uma suspeita, por afirmação ou negação, de que ele exista de alguma forma, enquanto possibilidade ou ao menos como força a induzir as pessoas nessa direção, independentemente do resultado possível para o indivíduo, em especial.

Outro aspecto interessante da coletânea de poemas "Os dias ímpares", é que dá um importante testemunho estético de uma época da qual sobraram poucos registros em nossa história local. Mais precisamente, início dos anos 80, indo para os 90, uma vez que as obras reunidas contemplam esse interregno. Mais um motivo para se inserir o conjunto da obra de Blank como ponto de passagem interessante e necessário para uma maior compreensão da poesia em nosso meio, usualmente tão carente de memória. Há nisso, até, uma espécie de contradição, que há de integrar toda boa poesia. Sérgio, que teoricamente estaria inserido mais na ótica da "poesia marginal" pelo formato de sua abordagem e sua inserção na cena literária, acaba, com muita justiça, de alguma forma se tornando cânone e referência de toda uma geração, pela relevância dos seus escritos. A curiosidade jocosa é tentar saber se isso mais o agrada ou não.