Querosene

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“Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria”... 

                                              (Candeias Júnior)

 

 

 

E foi mesmo por causa das antigas latas de querosene cheias d’água, na subida lenta e escaldante dos moradores sob o sol na lombada do gigante morro, que algumas décadas atrás nomeou-se a primeira favela da pequena cidade.  O “Morro do Querosene” era lugar mítico, apelido carregado de uma aura sinistra e temerária à simples pronúncia. Amedrontava crianças, deixava as polícias em alerta, ameaçava a bolha moral, psicológica, religiosa e política  nutrida por décadas de tradição de uma cidade pequena nesses rincões onde supostamente sequer deveria haver favela.


Segundo os  jornais e à boca miúda, era de lá que vinham todos os bandidos pra botar medo na população da vila, na calada da noite. Mas contraditório como a própria vida, (e isso já observava eu mesmo, no olhar de menino) também era de lá que saíam  aqueles garotos criativos que eram os melhores caçadores de passarinho com seus estilingues incomparáveis, bem escolhidos e bem lapidados, eles que  inventavam as melhores pipas, construíam os melhores  carrinhos de rolimãs, falavam uma língua lá só-deles, jogavam futebol melhor que todo mundo e possuíam o talento de rapar a turma da rua quando se dispunham nas bolinhas  de gude à vera.


Era lá do Querosene que vinham as mulatas sinuosas no seu brilho, na sua beleza e na pele dos antigos carnavais com os corpos sobejando curvas e aqueles adornos sumários que encantavam  foliões e escandalizavam  as beatas nas bodas de Momo.


Era lá do Querosene que também vinham os punhados de eleitores em época de sufrágio, festa-e-cachaça na rua, carregados como gado na lombada de caminhões ou na barriga grande de ônibus velhos, apenas pra garantir a situação favorável dos padrinhos.


O morro era negro, desde sempre. E era lá  que nasciam infalivelmente, ano após ano, década após década, todas as empregadas domésticas, diaristas e quebra-galhos de que necessitavam as patroas e os patrões da cidade baixa, era lá que brotavam os faz-tudo, estivadores de café, jardineiros, peões da lavoura e noventa e nove por cento das cozinheiras dos lares urbanos, carentes de mão-de-obra em suas  máquinas orquestradas e azeitadas para  funcionar a contento.


Passou ano, passaram décadas, e o Querosene ainda está lá, naquela pequena cidade, habitado agora pelos filhos e netos do seu passado, fornecendo continuamente gerações de mão-de-obra barata para o consumo da civilização.


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publ orig "O Aleph", dez/2015 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)