Triângulos

 SAUDADES DO RIO: DO FUNDO DO BAÚ: BOLA DE GUDE

                        À vera ou à brinca? O antigo “Campo de Aviação” era a praia da molecada.

                        À vera: Sandim foi recolhido outra vez pelo camburão enquanto estava no campinho e catava triângulos e linhas riscadas no terreirão lisoamarelo de chão batido.

                        À brinca:  plena temporada de bolinhas de gude,  ele exibia junto com um grande relógio brilhoso no braço as  peças raras da sua bela coleção, aquelas pérolas de vidros verdes-azuis transparentes. gudeiras perfeitas em suas órbitas preservadas. no bolso da bermuda tinha esferas de metal, utilizadas para situações específicas dentro da partida do triângulo. gudes são os cavalos de batalha, os peões. esferas são generais.  arriada é minha, bate-purra falei primeiro, se ficar no triângulo. mão-de-três, e eu só pingo as que eu casar se a morte for no estalo. de resvalo não vale.

                        À vera: da primeira vez que o levaram, Sandim voltou olho roxo, perna engessada, uns cabelos faltando na cabeça e curativos. alguns disseram que era a história de uma tal bicicleta do dono da farmácia, vizinho de aí umas duas ruas, que desaparecera da garagem durante a noite. Sandim desconversava, mas tava sempre com dinheiro na carteira, camisa social de manga curta e bermuda cargo esperta, risonho e campeão de gudes, pipas e piões. novo nos seus quatorze-quase-quinze, mas corpo de homem feito, agradava às mulheres.

                        À brinca: Sandim entornava o dia desde cedo: café-com-pão-manteiga-não na corrida para o ginásio. atrasado sempre, platéia de fundo de classe, liderança na pelada do recreio. lições banguelas no caderno, pouco lápis, pouca caneta, rixas constantes nas tradicionais esperas fora de sala. era querido pelas professoras, mas os homens o olhavam com meia dúvida. diretoria dia sim dia não, suspensão mês sim, mês não. Sandim matava o tempo nos rios, nas cachoeiras, no Poção, na Prainha, ou no caminho dos sítios vizinhos à cidade. fumava cigarro de paia e gostava de uma cachacinha quando dava tempo. tomava sempre misturada com Coca-Cola ou Sprite. Fanta não, que dava dor de cabeça.

                        À vera: Sandim prestava serviços de jardinagem semana sim, semana não, na casa de Dona Estefânia. Dona Estefânia era balzaquiana, bonitona e perfumada, e ainda tinha uma outra característica particular: era mulher do Cabo Peixoto. que gostava de dar uns tabefes na esposa. tempo passava, o jardim continuava sem tratos e sem flores, mas Sandim estava sempre na casa de Dona Estefânia, coincidindo seus talentos de jardineiro pelas tardes com as ausências justas do soldado em plantão e o costumeiro olho roxo a alvorecer no dia seguinte no rosto da dona que volta e meia  distraída tropeçava na quina. não ia dar certo essa vocação de jardineiro, e um belo dia  Sandim apareceu no campinho de triângulo mancando de uma perna e sem os dois dentes da frente .

                        À brinca: dias depois do ocorrido, despedido da função de jardineiro, Sandim arrumou logo outra ocupação e vinha rareando nas partidas de bolinhas de gude no final da tarde.  entregador de uma farmácia no Centro,  sempre vinha de uniforme do trabalho pra casa.  pai, não conheceu. ajudava a mãe com parte do mirrado salário, dizia a ela que lhe daria casa própria e um futuro melhor um dia desses

                        À vera: durou muito não, a nova profissão, e ele foi pego de calças curtas novamente quando foi entregar remédio na casa de um fazendeiro, em horário fora do comércio . cadeião e porrada por uma semana. Cabo Peixoto estava de plantão e auxiliou com muito empenho nas atividades investigativas e correicionais do contumaz meliante.

                        À vera: depois da última temporada no inferno, Sandim sumiu por uns tempos, com parada na capital errejota. especulações daqui e de lá, mas ninguém sabia ao certo. voltou na época do natal, depois de dois anos. meio mudado, sotaque puxando o xis, a feição mais triste, mais séria, cicatriz nova no queixo, carregado de gírias e jeitos exóticos. mandou reformar a casa da mãe e mostrava uma pistola novinha nove milímetros sempre por baixo da camisa. ninguém mais lhe cassava a voz na rua. as pessoas agora vinham pedir conselhos e favores. ele fumava uns troços diferentes com umas mangueiras e tubos de fumaça direto na laje do sobradinho enquanto administrava pipas, e de vez conversava sozinho, apontando o vazio do espaço, e dava uns tiros pro alto quando bebia cachaça.

                        À vera: mês depois do retorno de Sandim, Cabo Peixoto desapareceu da cidade, e daí a  um tempo foi dado como morto, assim como um certo fazendeiro. Dona Estefânia continuou recebendo a visita de Sandim, ora pelas tardes, ora pelas noites. ora sem tempo certo pra acabar. não escorregava mais nas quinas nem surgia de olho roxo nem braço arranhado de roseira e o velho jardim  seguia sem outros cuidados, mas agora botando flor que é uma beleza.

 

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publ orig "O Aleph", outubro 2015 - reedit contos "O domador de ventos", reg AVCTORIS/Jan 2017)