Leituras 2020 (III)




I.


O que move o poeta

quando desembesta 

em arauto da era?


Luta contra os próprios demônios

ao conduzir a alma feito alvo

Manejá-la como arma em praça pública


Ou abarca como em sonho outros sonhos

pela chance de combater o mal 

O mesmo que, ao flagelar a humanidade

atinge também a sua própria carne?


Quem o convidou 

Quem o pôs nesse cadafalso

e sustenta ainda sorridente o carrasco

disfarçado de pedestal?


O que move o poeta

quando desembesta 

em arauto da era?


II.


Acredita no que diz, o bardo 

quando professa sua fé

acolhendo a voz que o atravessa ?


Figura máscaras líricas

que em outros tempos

tocaram povos e nações?


Ou o dizer, entoar, clamar

é nada além de botar pra fora 

o paiol instável das emoções


no sangue ácido do momento

Fluido que por dentro 

corrói a fera?


III.


Lorca, Brecht, Maiakovski 


O soco, o tiro

O grito na noite 

A marcha nas ruas 


Passos demarcados

Avançando contra os soldados 

A proximidade do fim


Ainda assim não fugir, não refugar

sabendo que no mundo não haverá

mais consolo em qualquer canto 


Ganhar a própria alma 

quando a guerra parece perdida 

Ação como palavra 

O peito contra o mundo atroz


A derradeira ousadia de um só 

ameaçando tiranos

Insuflando coragem 

no coração dos homens 


(Um poema vale de si por mil hecatombes)


IV.


É guerra, é doença 

A fome multiforme que dissuade

Máquinas que massacram


Cedo ou tarde é desgraça que se metralha 

      Chumbo, fagulhas e farpas


Discursos em morticínios

Mitos esquivos na noite 

Mitos 

                que matam com alarde  



V.


Mais que a coragem, -- notória 

nesses imensos corações -- 

Corpos procurando causa 


Onde estavam as razões?

(A voz, lá dentro, em algum lugar)


Acreditariam nela 

no passar da história

Meia hora depois do primeiro cadáver 

Apreendido, interrogado 

que agora  jaz retalhado à mesa?


Morreriam pela verdade 

(Ou, quem sabe, pela beleza)

O espírito feito fogo 

Indômita a vontade 


Morreriam pela verdade?

(Essa perfeita antinatureza)

Abrindo bem os olhos 

na hora do fuzil


E, de costas para o paredão

De frente para o inimigo 


ainda gritariam, sem tremer:

-morte ao ditador!

-morte ao sistema!

-em nome da humanidade!

...

-liberdade acima de tudo?


VI.


A ingenuidade de Maiakovski

Suas cores relatando um universo 

que se expande ao limite

e não se contrai 

nem mesmo quando encontra aparas


[O mal,

quando vem, não tem cor

em sua bandeira]


O risco da arte servir à causa 

E aos poucos vê-la se deteriorar 

(O trágico das causas 

que não estão à altura)


A inteligência contundente de Brecht

Acidez feita remédio contra a insanidade 


Alteridade sólida à luz da pele . O cheiro

e a fala das ruas. Um outro conceito de humor 

tornado amor por essa estranha abstração

que engendra as massas


O gênio de Lorca,

sina cigana fervida no azeite

Ecos de Flamenco na paleta infinita


A beleza das partituras

bem encarnadas que entornam 

vida onde tudo era pedra 

                                        e deserto


A luta aberta contra o mal

Coragem surreal e sozinha

Pois sendo o único caminho digno


A vontade de ser povo no corpo

mesmo não sendo em espírito

A capacidade de saber o novo

antes que o mundo o saiba 



VII.


Voz grave 

onde a vida se ameaça


Colher o doce 

          quando incide 


Às margens dessa estrada

rir uma certa felicidade 

O riso de quem duvida

das barbas ralas do terror 

respaldado em armas


O grito solitário no último instante

Saraivada de tiros fascistas

assassinando versos ainda verdes

no peito do autor 


Noticiário com ecos

das sementes recém-lançadas

(Nenhuma tumba interdita a flor)



VIII.


A constatação surpreendente

de que fariam tudo de novo 

Ainda com mais força

Mais firmes as passadas

Mais alto o grito 


Pois as razões jamais estiveram lá fora 

Sequer a vida em si mesmo

que tornara-se assim algo insustentável

quando posta de joelhos



IX.


Processo de descobrir o âmago de si 

na inexata lida com os condenados

Morre-se, de todas as possíveis mortes

Mas a forma e a força do gesto

Sua beleza é o poeta quem dá


Simultâneo destino de ser

um anti-animal, um não-natural

Desafiar com a ação o mero instinto

e se apegar à nova cria sem pudor 


X.


Sonho:

Uma vez liberto

de todas as crenças

Escolherá antes o nada

que a certeza

de uma determinação 


Delirio: 

Coabitam em seu peito

na mesma época a multiplicidade 

de todos os discursos

E  o tempo único 

linear e insubstituível 

das pequenas coisas


Subjetividades 

talvez tragam em seu bojo 

um outro gosto de realidade


XI.


A essência do homem não existe

É o que ele ainda não é


O tempo do homem

é justo o que ele não tem 


Poeta é o que transcende ao homem

É a força que absorve e morde 

Porque necessita deixar sua marca 

(Não há poesia que não mostre os dentes 

quando confrontada)

E nisso reside sua  virtude


Profissão vate

Ver outros mundos onde 

as hordas administram ruínas 

e assim manter  a esperança


Recusa, insurge-se, dissolve abismos 

(Embalando no caminho outros sismos)


Metabolizando enquanto respira

o paradoxo que traz nas tripas 

Conflito orgânico 

que a ninguém mais é dado ver


(Lá vai o homem) -- À frente, o poeta


Com ele, o espírito da época

que ainda está por nascer