A glamurosa vida de escritor

Ser por vocação o eterno estudante

que anseia sem medo cada nova lição

Dormir tarde ou acordar cedo 

(Isso quando não incorpora

as duas coisas numa mesma rotina)


A faina que nunca termina 

Uma idéia que amadurece

Uma personagem que cresce

Uma impressão


É preciso mais tempo 

Tempo 

        Tempo 


O tempo fundamental da leitura-plantio 

Da pesquisa, do ensaio, do laboratório 

(E tudo é laboratório)


O tempo crucial de crescerem os ossos 

Aprimorar os olhos, adubados por dentro

Em marés necessárias de introspecção 


Cultivar viagens por estranhos planetas


Sentir na língua o coração do mundo 

quando, na raridez da vida, a boca

aberta alguma vez alcança sua mordida 


quando os filhos recém-paridos

renegam os pais e saem pela estrada 

cantando e contando as próprias razões


enquanto aguarda o homem do correio 

tocar novamente a campainha 

E todos à sua volta estranham

o fato de você alimentar tantas estantes 

mesmo que pra isso um dia

possa vir a passar fome 


Viver com fome

Acostumar-se com esta sede 

que não sacia desde menino


Os inacessíveis, as áreas interditadas

- Não, preciso ler

- Não, muita coisa pra revisar

- Não, estou finalizando um negócio aqui

Estou a meio caminho de alguma coisa 

(que tantas vezes revelar-se-á coisa alguma)

- Não, estou bêbado. De vinho, vida ou de um 

novo texto


Sentir na boca o coração da vida 

quando o pulso vem ditando ritmo 

e onde antes tudo era nada surgem

imperfeitos jardins em toda sua confusão 

de cores, feitios e cheiros. Bonitos


Sentir na boca o coração da vida

No mais simples lançamento de livro 

ali na livraria da esquina, e ver 

aquela criatura de papéis e cores 

celebrando com coragem 

outras derrotas, outras vitórias

e suas dores


com estes olhos que a terra há de comer 


Descobrir que existem também

Outras dessas criaturas insanas que

por excesso de juízo ou completa falta 

dedicam-se à mais alta e complexa das artes 

sem imaginar que outro tipo de existência

possa, com sucesso, tomar esse lugar


A arte de recompor-se, continuamente,

até que a mesma águia que devora

noite após noite o fígado de Prometeu


            aponte no céu a cada despertar