Despedida de um mestre




https://revistacult.uol.com.br - Roberto Machado
 


Estávamos todos lá, em final dos anos 90, na primeira vez que o vi pessoalmente,  Ele vinha a Vitória palestrar e promover seu último livro, "Deleuze e a Filosofia". 

Duas horas antes da palestra no auditório já lotado de tudo que é turma de humanas e sociais, da Filosofia à Sociologia, Direito, História, fizemos uma reunião -- era convidado do Departamento de Filosofia e portanto tínhamos a prerrogativa --  eu e mais uma turma de estudantes do último ano de Filosofia da UFES e meia dúzia de professores do próprio departamento, entre amigos, admiradores e outros mais próximos da sua linha de trabalho e pensamento . 

Eu tinha meu gosto pessoal pelo trabalho do autor e havia lido algumas de suas obras, na época o melhor intérprete e anunciador de Nietzsche neste país medieval. Na hipótese de que o governo FHC não tivesse quebrado a universidade naquele ano ou pocado de vez com noventa por cento das bolsas de pesquisa na área de humanas -- fato que durou quase dez anos e só foi revertido no governo Lula, um massacre neoliberal que até hoje traz seus sombrios reflexos por aí afora -- eu mesmo teria sido um dos seus orientandos em mestrado por conta de ser ele praticamente o único que desenvolvia esse ramo de especialização e desenvolvimento de tema que de fato me interessava depois da graduação.

Mal iniciada a reunião informal, numa sala pequena em que mal cabia a única mesa grande de 12 cadeiras, toca à porta uma estudante de um dos cursos do IC-II, com um caderno grande em mãos. Pelo que ouvimos, ela imaginou que se tratava de uma sala dos professores e pedia orientação para uma questão que não havia entendido sobre o grego Platão para um trabalho acadêmico.

Supreendidos todos pela interrupção, nós estudantes é claro, meio intimidados pela sala cheia de mestres e doutores, nem passou pelas nossas cabeças irmos até lá resolver a parada. Da mesma forma, os demais professores presentes, creio que meio embaraçados pela situação, entreolharam-se sem saber o que dizer, até que o docente encarregado da reunião, um dos anfitriões da estada do Professor Roberto Machado na Ufes, disse em tom meio burocrático, com educação, mas frio: na verdade, aqui não é a sala dos professores, ela fica ali e ali, perto do corredor tal, e se você for lá agora, tem vários mestres por lá que vão lhe atender. 

A garota  se desculpou e ia saindo com aquela expressão mista  entre envergonhada e meio puta porque achava sim que seu problema talvez pudesse ser resolvido ali na hora, quando sem aviso o Roberto se levantou da  posição de ponta da mesa e foi atender lá fora ao que ela queria. Nem preciso tentar descrever a sensação que pairou na sala durante aqueles 15 minutos entre terror, embaraço e glória para nós estudantes provocadores  para quem  faltava pouco pra gargalhar da expressão abismada no rosto dos honoráveis mestres ao redor. Alguns deles, queridos e competentes mestres com mais de vinte anos de trabalhos honrados na casa, com dedicação e método.

E de lá volta o Roberto, feliz no seu jeito leve e comunicativo, elegantemente não comentou mais detalhes sobre o que se tratava o assunto e retomou com clareza exatamente o ponto de sua explanação onde havia parado minutos antes de ter que se levantar. Com sua fala poética e um enorme conhecimento de autores, literatura, psicanálise, logo estariam todos dando risadas.

A atitude "Deleuziana" assim, de forma simples e direta, havia tanta coisa por detrás desse gesto simples, a atitude vista e sentida no tapa, um violinista Nietzscheano que toca suas notas e compõe melodias antes nunca vistas usando a mesma notação musical, o mesmo instrumento e formação, mas desafiando completamente uma certa noção de harmonia e ritmo, extraindo assim outro som e sua música se torna outra.

A curiosidade pessoal, minha, não deixou por menos, e pôde constatar, posteriormente, como essa atitude dele naquela sala, em tão pouco tempo ali entre nós, era de fato o que o caracterizava como pessoa, docente, pesquisador e filósofo, professor carismático e muito estimado pela vida afora, conforme depoimento de diversos amigos -- alguns inclusive que tiveram aulas e fizeram mestrado ou doutorado orientados por ele na mítica UFRJ.

Como não podia terminar a noite sem a chave de ouro, combinamos antes da nossa reunião informal, que ao final, cada um dos estudantes do último ano de Filosofia poderia , pra não desgastar fisicamente o professor recém-chegado do aeroporto e que ainda teria duas longas horas de palestra e debates pela frente, fazer uma pergunta de interesse com seu próprio trabalho de leituras e monografia etc, e a minha não podia ser outra: tinha que ser sobre o "Eterno Retorno", o conceito mais metafísico, difícil, polêmico e talvez um dos mais mal compreendidos em toda a obra de Nietzsche.

Ele deu uma risada sagaz, falando que como todo mundo, sempre achou esse conceito também o de maior dificuldade de assimilação porque aparentemente contradizia , dependendo do enfoque, todo o resto da obra, e não é preciso aqui dizer por quê. Ele narrou uma experiência, depois de uma pequena pausa,  usando um caso pessoal: 

"Eu estava lá, naquela cachoeira, acabando de chegar, depois de uma agradável viagem entre pastos, bois, terras verdes e muita árvore. Tava meio ansioso pra chegar logo, respirar o ar puro de montanha e quem sabe testar um mergulho naquelas águas geladas. Contudo, mal cheguei, na hora de fechar a porta, nossa amiga no banco de trás, não percebeu minha mão abrindo a porta e a fechou por cima de meus últimos dois dedos. Eu vi estrela, depois tudo ficou preto, comecei a suar frio. A dor doía tanto que eu não conseguia falar, chorar, só gemia como um bicho. Naquele intervalo doido que você perde a noção e as pessoas ao redor batem cabeça pra saber o que fazer, -- se te levam ao hospital, se põem gelo, se verificam se houve osso quebrado, se te dão um remédio enfim -- eu figurei por uma fração de segundos e enquanto ouvia vozes distorcidas ao meu redor sem entender mesmo o que elas queriam me dizer, meu pensamento mais arredio, mais profundo me trouxe logo sem rodeios a idéia do "Eterno Retorno de Nietzsche", como posta no "Zaratustra". "Amor fati?" Não era afinal um tipo de loucura? afirmar a vida entre altos e baixos, entre dores e prazeres, felicidades tão raras e tanto sofrimento? Me lembrava da pergunta: Se ainda lhe fosse dada a chance de escolher, você reafirmaria cada momento, cada instante vivido, em suas alegrias, glórias, fracassos, dores e prazeres? ou negaria tudo, chutando para o espaço, quem sabe uma "outra vida"? Eu confesso que por uns instantes quis chutar tudo, quem é que nessa vida aguentaria ou gostaria de passar por tudo de novo, se nesse processo tivesse outra vez aquela porta macegando meus dedos por uma eternidade, a  dor que naquele momento eu estava sentindo, tão potente que eu era incapaz até de traduzi-la em sons, em palavras, em qualquer comunicação?  Não há resposta, na verdade, para essa questão, uma resposta conceitual, no nível da lógica-explanação, proposicional. Quando Nietzsche fala de "amor fati" não envolve a resignação schopenhaueriana de tudo que vem sem motivo ou tentativa de ação de um sujeito passivo. É um ato posterior de re-valorização da vida. Pressupõe não onisciência ou qualquer hipótese de um sujeito absoluto, o tal racional que advém do Iluminismo, mas um sujeito capaz de valorar toda experiência do vivido com suas próprias lentes, afirmando-a em vez de negá-la, como consta enormemente da tradição do pensamento ocidental, a qual Nietzsche combatia ferozmente, pois repleto de uma insidiosa negativa da vida postulada pelas doutrinas religiosas".

Eu, de mim, confesso que pela primeira vez na vida talvez tenha ficado decepcionado com a Filosofia num sentido maior, aquela resposta me pegou de surpresa. A questão era central para a linha de trabalhos que eu vinha desenvolvendo em segredo. Entre três ou quatro pontos para futura prospecção usando a obra nietzsheana como base, aquele sim, era o mais importante porque um divisor de águas. Eu queria então algo mais conceitual, um desdobramento, analogias, afirmação ou derrocada de críticas em comparação com outros pensadores, filosofia, ou declarar logo que Nietzsche estava em um de seus delírios quando elaborou isso que ele fala em diversos momentos do seu pensamento.

O aprendizado da filosofia no filosofar. Duas lições duras e alegres ao mesmo tempo, de um grande mestre, fora tudo o mais que sua vasta e tão arraigada obra nos legou para sempre. 

Que seja  eterno esse retorno.