"Quarto de Despejo"

 



Terminando hoje a leitura 
desse tratado de humanidade 
com a curiosidade e o encanto 
de lembrar como a poiesis 
se manifesta com tanta força 
mesmo por um meio 
informal de aquisição 
da palavra

Tema que me tem sido tão caro 
e objeto de pesquisa 
nos últimos tempos: a força necessária 
da palavra que surge rompendo 
mesmo sem qualquer referência 
literária do autor

É coisa para não se esquecer 
Pra carregar vida afora 
quando a metáfora surge da hora 
em que se aquenta na faina

Ao contrário da lavra elaborada,
a lavra-dura de quem caleja as mãos 
na lida, o peito na vida 
e  -- sendo negra --, as costas 
marcadas pelo sistema

Que aflora em suas tantas 
pontas cortantes: 
A manutenção da favela 
como celeiro de mão-de-obra 
barata, substituível 
para uma economia de bacanas 
fingindo que ela não existe

A não oportunidade do ensino 
e da formação que perpetua 
o ciclo de uma engrenagem
 socialmente injusta

A lavra-dura de quem caleja as mãos
E o valor do verso, então 
pede para ser avaliado
não mais por regras rígidas 
de métrica, rebuscadas palavras
mas sim pelo seu pulso 

Pulso do criador, pulso do leitor
e a luta incessante que ele enseja 
que simboliza, que carrega

E nasce nem sempre do livro 
do cânone, da lapidação 
mas do desafio desse canto
em se manter enquanto comunidade 
ou na perplexidade do espanto
quando o morro descer à rua
(E uma hora dessas vai)

Mudaram as eras, os costumes 
mudaram muitas leis 
e houve avanços em 
algumas direções 
(Coisa que se ameaça hoje 
hediondamente)

Mas persiste triste
além da pobreza debilitante 
às margens do superávit banqueiro 
cada vez maior
Esse racismo difuso ou contuso
nosso de cada dia 
que não se queda nem se amofina
mesmo diante da agonia 
visceralmente retratada
pelas mãos de Carolina