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O último mergulho

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Enquanto o horizonte diminuía à proporção em que a viagem abraçava seu destino, o carro descia vagarosamente o último trecho de morro antes da chegada. Lá na frente, num pequeno ponto de luz, o vértice azul de um mar verde e brilhoso  triangulava num foco de aumento constante. Como as lentes de uma câmera em mãos amadoras, procurando alcançar em zoom seu objeto num ponto específico da paisagem, o vértice de mar apontava como uma seta para baixo,  ainda a longa distância,  transportando a luz para o interior das quatro visões infantis que, justamente nesse instante, paravam toda a bagunça no banco de trás do automóvel e silenciavam por uns segundos, estendendo a vista até onde dava e atravessando com o olhar o pára-brisas daquele poderoso Fuscão VW Azul Claro  rasgando o universo em direção à praia. Um ano se passara, até então, desde que tinham ali estado pela última vez os quatro irmãos. Vinham há duas ou três horas na estrada, e como fazia parte de uma brincadeira ritual, rep

Uma manhã qualquer

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  Ouvidos eclipsados o vento no rosto segue a moto zunindo nesta manhã fria de agosto Campos se abrindo estrada vazia,  cavaleiro e montaria na trilha lisa e preta,                              perfeita de petróleo seco sobre a via Ambos numa única alma , ruidosa e azul sob o céu definitivo  de agosto As essências no ar: de terra, de barro, de barranco molhado de grama, de  pasto,  gado solto no mato pássaros e cães comportados lavradores e seus filhos sorrindo torresmos, polenta na mesa frango com macarrão borboletas e aguardente em manhã de domingo As essências do ar: úmido de florestas nesta manhã quase infame café e palhas fermentadas, acre odor misturado e o perfume  suavemente obsceno da flor  de  macadâmia Tudo isso entrando pelos olhos, pelo nariz pelos poros desse elmo de fibra carbono esta armadura de aço Dom Quixote andante aventurando-se num vôo cego pelo espaço Voando baixo e perdendo a ilusão do tempo que deixa de fluir, como água e

Ser e Existir

para Manoel de Barros De tudo o que se vê no mundo a metade existe somente na nossa cabeça                                       os olhos é que mundeiam para enxergar Isso, porque ainda nem falei de Heidegger para quem, o que existe mesmo são os humanos O restante das coisas, bichos e plantas ainda que se esforcem , nunca conseguirão pois possuem unicamente sua essência podem ser, mas estão condenados a nunca existir Esta minhoca que agora cava sob meus pés redondeando num girobolante escarafunchar do barro aqui neste terreiro de chão batido parece não concordar muito com o Filósofo assim como estas formigas que, em organizada carreira, carregam apressadamente suas folhas nas costas e seus grãos de  açúcar furtados no pote da cozinha ciência de chuva que se aproxima Acho que não preciso dizer a elas que Heidegger não estava certo

o mapa do destino

Eu não sabia onde encontrar a vida ninguém me disse nada e eu nunca tive nenhum mapa Se aprendi algo, foi sozinho correndo feito louco jogando muito alto sem tostão para pagar Eu não sabia onde encontrar a vida eu não tinha nenhum mapa e nem pude ensaiar praquando a hora chegar Tudo que sei e eu sei muito pouco tive que arrancar à força eu tive que sangrar pra ver Não tenho medo da morte tenho só de nunca ter vivido Eu não sei onde encontrar a vida eu não tenho nenhum mapa nem pude ensaiar praquando a hora chegar Me criei nessas areias finas no martelo dos tempos e da destruição deste instante alimento meu futuro... Sou um exterminador implacável das minhas próprias possibilidades

Rimbaud

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Por que se escreve?  Para quem se escreve? Sobre o que se escreve ? Escrever é nada mais do que mirar-se em espelhos. O impulso de pegar uma caneta, um lápis, um teclado ou um giz e sair rabiscando raivas, desejos, frustrações, impressões, histórias inventadas ou acontecidas,  pode surgir pelos mais variados motivos.  Talvez por uma necessidade primordial e inconsciente de tentar ser lembrado, aquela noção de não passar pela vida incógnito, ou quem sabe, de poder perpetuar-se no tempo através das idéias?? A busca, ainda que vã, em legar alguma coisa não perecível, algo além de si próprio? Ou  até o simples preenchimento do tempo ocioso com este passatempo lúdico, de forma despretensiosa.  Se escrever também envolve criação e arte, busca-se eventualmente um "algo a mais" , aquilo que possa transcender o próprio escritor, aquela busca ancestral de deixar  para a futura humanidade outra lembrança que não sejam filhos ou árvores. Escreve-se também por de

A Maçã

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Fosse pela sensação de percorrer estas brancas curvas vagarosamente sem juízo Morder sem muita força a maçã que brilha no escuro deste quarto aceso e ver você se contorcendo em formas e sons incandescentes Fosse pela paz e o desespero que habitam juntos este mesmo peito e a ansiedade  quando em minhas mãos tomo seus cabelos beijo teus seios e o seu perfume me invade e me leva a tantos lugares que até perdi a conta Por muito menos rogaria a Deus que levasse mais de mim do que apenas uma costela persistindo o sexto dia, então como o mais sublime de toda a criação Fosse pela sorte de poder vê-la ao meu lado quando acordo e chegar ao fim do dia sabendo que estará à minha espera Fosse pelas diferenças de opinião diferentes visões de mundo que não se igualam, mas se entendem, amadurecem e sobretudo se desarmam porque sabem transigir abrindo mão do que é desimportante para que algo maior possa fluir Eis que a vida não é sempre flores mas é tam

Sobre meninos e facas

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Para Ziraldo, e os milhões de "meninos maluquinhos" que ainda habitam este planeta.. Também uma lembrança do "Livro perigoso para garotos"..., livro de passagem, algo de original e raro que alimenta, através de pipas, piões, carros de rolimã, bolas de gude e rojões, a memória da  alma de nossa eterna infância de meninos... ...Desde pequeno adorava facas, em suas mais variadas formas: as facas "facas", propriamente ditas, incluindo as mais comuns, de mesa: aço inox sem ponta e geralmente sem corte_ as únicas autorizadas pela mãe, para seu desespero; Amava também as facas de ponta de ferro; maiores, mais afiadas, triangulares e de cabo de madeira, roubadas escondidas da gaveta da cozinha e malocadas dentro da bermuda, perto da barriga, disparando numa perigosa fuga em velocidade, quintal afora, para contemplar, isolado e sossegado, o objeto sagrado do pequeno ato furtivo. Tinha também os enormes facões de mato, desbravadores, cujo acesso era raro,

SAFARI

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"Tigre, tigre que flamejas Nas florestas da noite. Que mão que olho imortal Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?" (William Blake) Terra  elemento ser a composição de nossos braços a morada do último pó nesta odisséia pelo espaço Irmãos de sangue forjados na luta na árdua sina que se expõe ao inverso: quanto mais dura a lida,  maior o amor de mãe e o sentido do universo Trovão na lua minguante conversas de fogo que pressente matança pedras  cortantes afiam nativos, ritos e alianças Libações,  pacto entre  astros e  matéria perecível o medo é desconhecido destes passos que não vêem na fuga saída possível Entre  gritos,  tambores e cajados África de maracas, djembes e lanças atiram-se ao negro Érebo os bravos Maasais e Morans  convidam para a dança O grande rio, afastado à  minguada chuva sobre os espaços transitórios do solo firme a estação e suas crias à lamúria a terra escolhe          

O perfume de Laura

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(texto em livre adaptação do livro"O Perfume", História de um Assassino, de Patrick Süskind) Ao nascer, o que se vê, o que se ouve primeiro?  Grenouille e o pesadelo de qualquer homem no mundo inteiro.  Se a memória tivesse voz, aos berros diria que nada se vê e nada se ouve naqueles segundos, e é mesmo pelo cheiro que nos toca o primeiro sentido do mundo , não importando ter nascido entre finas rendas ou em na lama. Primeira consciência: acordes e blends, antes de enxergar. O cheiro da mãe, do berço, dos primeiros rústicos brinquedos: leite, a fragrância da vida, alimento. Amêndoa, cedro, limão, jasmim: Respiração: pulmões se abrindo, o sofrido choro. Patchouly, vetyver, sândalo, alecrim. Antes de pensar, antes de andar. Bergamota, gerânios, musgo de carvalho. Antes de ouvir. Almíscar, incenso, thymo, tomilho. Antes mesmo de chorar, e muito antes de falar. Sálvia, âmbar , gengibre, cardamomo. Café, couro velho, tabaco, cipreste: para cada corpo, um resultado dife

CONTEMPORÂNEOS OU MEDIEVAIS?

Tristeza esse retorno ao fundamentalismo, em todos os gêneros: religioso, político-ideológico, e até científico. Uma lástima observar esse retorno à idade das trevas, o radicalismo e a polarização imperando em todas as suas formas, quando deveríamos estar aproveitando os novos meios de expansão da mente, propiciados pela facilidade do acesso à informação emtodos os níveis. Aproveitando a elasticidade antes nunca vista nos meios de comunicação em rede, que propiciam um contato maior entre as pessoas, uma maior aproximação e conhecimento das diferenças, além de um debate mais universal de todos os temas, algo que deveria ser enriquecedor por natureza. Por outro lado, bem ou mal, deveríamos, sem achar que as conquistas pararam e que a estagnação tome conta, comemorar a consolidação de um Estado de Direito, imperfeito e ainda longe do ideal, mas construído e mantido com tanto sacrifício por todos os agentes políticos durante décadas, em particular num país como o Brasil, que viveu tanto