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ENSAIO: Amor e sofrimento no "Werther", de J.W. Goethe

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"Ah, se pudesses expressar tudo isso, se pudesses imprimir no papel tudo aquilo que palpita dentro de ti com tanta plenitude  e tanto calor, de tal forma que a obra se tornasse o espelho de tua alma, assim como tua alma é o espelho do Deus infinito".... ("Werther", J. W. Goethe) "E se adormecesses? E se, no teu sono, sonhasses? E se, no teu sonho, subisses aos céus e ali colhesses uma estranha e bela flor? E ainda se, ao acordares, tivesses a flor na tua mão... Ah, como seria, então?" (S.T. Coleridge) O que não se faz por amor? Até onde se pode ou se deve ir quando se ama? Onde está o sujeito ou o objeto no meio da sublime sensação quando ela ocorre, tornando por vezes seus onipotentes atores em meros fantoches e objetos nas mãos de forças que surgem e se desenvolvem à margem da simples razão humana? Aonde se erguerão agora os conhecidos e duros limites do mundo físico que de repente parecem se dissolver no próprio ar? Existe diferença significativ

Terra dos justos

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  Coletivo sacudindo nas vias urbanas, por volta de 7:30  da manhã de uma quarta-feira e Alzira  já estava a bordo, carregando no colo um vaso de plástico preto, cheio de cravos coloridos. Ela é morena, aí pelos seus sessenta e poucos, baixa e circunspecta. Seus óculos de lentes grossas escondem olhos tímidos e um olhar perdido nas paisagens lúcidas de abril que passam pelo vidro lateral do ônibus. Quando não olha para fora, mira apenas seu vaso de flores, alimentando-as com suas expectativas. Não é dia santo nem finados, não é feriado, não é nada, não é nada... Mas hoje completa o primeiro ano da passagem do Reginaldo.  Segue o ônibus pela via, sempre com aquela delicadeza habitual dos motoristas modernos. A cada novo ponto, pára bruscamente, acelera até o máximo de primeira e segunda marchas, então subitamente pára de novo, metendo o pé no breque e sacudindo os passageiros impacientes que reviram o estômago antes das 8 da manhã. Uma buzinada daqui, uma reclamação de um outro

Os tobogãs de agosto

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Peito aberto na chuva Na fuga da tarde Matar aula,  aventura Que nunca tem idade Duas rodas sobre o morro Espírito, velocidade Luzes, Exposição Na feira da cidade. Gostando dos pingos  Batendo no rosto Os ventos de agosto No alto da colina Na boca, o gosto ainda doce  Os beijos daquela menina. Chicletes, música boa,  Balas de hortelã e adrenalina. Parque da festa, de diversões Gente modesta, maçã-do-amor. Meninos pequenos, meninas-com-as-mães Bate-que-bate , meninos-carrossel "Moço, um ingresso!", uma entrada pro céu Roda que gira, gigante-que-bate Gira-que-bate essa roda de parque Festa do povo, cheiro de pólvora Crianças que rodam Traques-rojões Túnel do amor, trem do terror É festa na cidade do interior. Montanha-russa, algodão-doce Crianças adultas, adultos –crianças Ingressos pros sonhos Cavalos e cores girando Em um mundo de sonhos Fantasias, pipoca, choro                       E muitas lembranças vãs Memórias de alg

Rimbaud

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"Detesto todas as profissões. Mestres e oficiais, todos campônios, ignaros. A mão que empunha a pena equivale à que guia o arado. - Que século manual! - Jamais me servirei das mãos! Depois, a domesticidade leva demasiado longe. A honradez da mendicidade exaspera-me. Os criminosos repugnam-me como castrados: quanto a mim, estou intacto, e pouco se me dá..." ----------- (Rimbaud) Por que se escreve? Para quem se escreve? Sobre o que se escreve ? Destoando intencionalmente da provocativa chamada ao  engajamento proposto por Sartre, entendo que e screver é nada mais do que mirar-se em espelhos.  O impulso de pegar uma caneta, um lápis, um teclado ou um giz e sair rabiscando raivas, desejos, frustrações, impressões, histórias inventadas ou acontecidas, pode surgir pelos mais variados motivos. Talvez por uma necessidade primordial e inconsciente de tentar ser lembrado, aquela noção de não passar pela vida incógnito, ou quem sabe, de poder perpetuar-se no

Elvis

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Naquela época todos gostavam de futebol, pipas, carrinhos de rolimã e bolinha de gude. Eu gostava de tudo isso, é claro, mas amar eu só amava mesmo Elvis Presley e queria ser igual a ele quando crescer. Cantar e encantar o mundo inteiro com uma incomparável voz capaz de enternecer uma velhinha nos seus noventa anos ou uma criança recém-batizada, e ao mesmo tempo com aquela atitude rebelde-heróica hollywoodyana dos filmes de sessão da tarde capaz de enlouquecer todas as mulheres.  Aos oito eu já adorava Beatles, curtia Raul, estranhava Mick Jagger e ouvia meio sem permissão do vizinho uns acordes de Panis et circenses, daquela turma genial de Sampa. Mas Elvis era diferente. Era uma verdadeira síncope, uma espécie de incorporação metafísica ("dos infernos", segundo dizia minha avó materna) que me acometia quando eu assistia aos filmes ou ouvia o primeiro compasso de "Blue suede shows", "Hound dog" ou "Jailhouse blues". Aquele som começava

Ver

Suspender o juízo sobre o mundo. Suportar o intenso barulho, o calor e o movimento incessante das coisas que pareciam inertes há um segundo. Sufocar por um instante todas as verdades pré-concebidas. Abraçar com o olhar todas as coisas que nos escapavam mas agora saltam e brilham e se compõem em novas formas novas cores e situações para um olhar que reaprendeu a ver. Surpreender finalmente a oficina das coisas na ação em que o ser finalmente se desvela não passivamente não escravo da mente mas um ser-em-ação que, ao passo em que nos permite conhecer o mundo permite-nos ainda viver um especial estado de encantamento por reconhecermo-nos bem ali no meio do  nosso próprio mundo essa criatura indeterminada que é o homem

Teatro

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Somos todos atores nesse picadeiro antes que a lona desça de vez. Enquanto houver público enquanto houver música dançaremos e cantaremos e sustentaremos nossas melhores falas mesmo que não sejam verdadeiras mesmo que elas não façam sentido ou o sentido seja um mero sentido inventado ou  comprado por um ingresso à meia apregoado em alto e bom som Somos artistas para o olhar do outro porque é esse olhar que nos essencializa nos tira do limbo eterno da não existência e nos arremessa com toda força da vida ali, sobre o topo daquele pequeno picadeiro onde fazemos graça com as tragédias fazemos tragédias com as graças empurramos para frente a vida com medo de tudo que não possui movimento... O que seria de nós sem as luzes os holofotes sobre nossa atuação o que seríamos sem a música de animação sem os aplausos, sem o olhar cúmplice das crianças e dos velhos da platéia? Há público mesmo quando não há show. Porque na verdade, nunca estamos sós. Representamos

O funeral

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Caído na rua como um simples objeto sem vida, um pedaço de pau ou de plástico, não sei. Mas havia algo de heresia e excessiva falta de cerimônia naquilo tudo, na forma como um passarim expunha seus esqueletos inanimados assim ao mundo. Aquele bicho morto merecia algo mais além de ser simplesmente pisoteado pelas rodas dos carros e solas de sapato anônimas. De vez em quando, ainda se submetia à provação de ser farejado de perto por algum cão de rua, que após uma ligeira constatação olfativa, logo perdia o interesse e se varria de volta ao seu destino incerto. Da varanda alta de casa,  antes de sair pra escola, logo cedo eu via aquele ser se desfazendo cada dia mais um pouco, e enquanto contemplava o formato de suas asas pretas e brancas aos poucos tornando-se o cinzento  terroso, ia percebendo a novidade da decomposição ir tomando forma enquanto simultaneamente desconstruía-se o objeto mágico e voador que a própria vida um dia tinha botado no alto do mais alto ar. Não soube

O caminho de todas as coisas

O CAMINHO DE TODAS AS COISAS Olhar ainda não é ver Escutar ainda não é ouvir Abraçar ainda não é ter ... Concordar ainda não é sorrir Perdoar ainda não é sentir Aspirar ainda não é querer Engravidar ainda não é parir Esperar ainda não é sofrer Andar ainda não é dançar Nutrir ainda não é comer Falar ainda não é cantar Despedaçar-se ainda náo é morrer Correr ainda não é voar Embriagar-se ainda não é beber Acudir ainda não é amparar Achar-se é não saber se perder O que falta ao homem lembrar-se de que sempre é a medida de todas as coisas o que falta ao homem é lembrar-se que sempre foi a medida de todas as coisas O céu ainda não é Terra Garras ainda não são mãos Estrelas ainda não são gente O espaço ainda é só solidão O universo ainda não são seus olhos Seu corpo mais que simples reparação A centelha que ilumina uma vida Transcende qualquer razão  

A Tempestade

Renascendo depois de um tenebroso e seco inverno, eu vi sua chegada verde, anunciada e úmida por entre chuvas temporais, calores estivais flutuando cheiros. Eu e as árvores olhando para as nuvens, na esperança da sua volta. Os arautos de vento que dançam janelas, entrevistam portas e recomendam gotas, esses sabem as notícias antes que o mundo as faça. Toda chuva tem sempre sua escola de espreitar o momento certo. Com as primeiras gotas, contempla-se de uma janela esse liquefazer de todos os seres vivos, como se através do olho mágico de uma porta secreta eu pudesse contemplar o próprio mundo em espiral infinita, movendo-se no ritmo de torrentes seguidas enquanto uma  leva de seres felizes por poder navegá-la sem paradas, sem atropelos, simplesmente flui.  Sob a ponte de madeira grossa, mas incompleta em sua latitude, ruge o rio vermelho, com esse temeroso som desbarrancador (familiar a quem habita suas margens), curvando violento  poucos metros à frente, enquanto arrasta margens, cerc