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Mostrando postagens de março, 2018

Dia mundial da poesia

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---- Desperdice poesia!! -- eu digo (és poeta, afinal) desperdice poesia (sua, dos outros, não importa) e sinta retornando ao sangue a energia refazendo teu corpo contaminando teu olhar Que outro gesto o faria poeta a não ser distribuir o que acumulastes quando percebes passando por ti esse exagero de vida,  essa coisa incontida que tornará ao limbo se não se tornar primeiro palavra? Desperdice poesia!  repito... com força e atitude, (quiçá alguma generosidade) em papéis-cartão boiando à luz do rio ou em oferendas às ondas do mar em pedacinhos de jornal ou recortes sem rumo ou cartas jamais correspondidas que se perderão  (anônimas e gloriosas) Desperdice poesia em cartazes, em muros, no chão das ruas de concreto como a abelha que produz o mel em excesso,  e a ela de nada serve depois de pronto Jogue fora  como da fonte jorra incontida a água fresca e infinita e viva mais intensamente através delas momentos de percepções

Rilke, Pessoa e a fidelidade ao mundo

"Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é Senão o início do terrível, que já a custo suportamos, E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha Destruir-nos. Cada anjo é terrível. E assim me contenho pois, e reprimo o apelo". (Rilke, "Elegia", parte I) ----- Por mais casto e dedicado que eu mantivesse meu corpo por mais que eu castrasse meus atos  eletrocutasse meus desejos meus poemas ainda assim seriam  essas criaturas  ora perdidas, ora  lúbricas incontidas, doces e ferinas flertando em eterna curiosidade e êxtase com o próprio mundo  em qualquer esquina Simples assim, sem sequer eu permitir Porque meus versos é que me usam para existir ----- (Claus Zimerer) Como ser fiel, por prazer ou dever e ainda permanecer poeta Não é como perguntar ao fogo se ele

Uma canção para Stephen

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Numa casca de noz o universo inteiro A coragem, Stephen de não ter sido o primeiro (mas sem dúvida o mais ousado) Quem teria continuado à luz do vulgo juízo essa tua tarefa tão árdua -- sob tão precárias condições Antes de ti apenas grandes espíritos tentaram com seus imensos corações Copérnico, Bruno, Galileu Newton, Einstein, Sagan Monstros sagrados apenas eles comparados a ti em suas metas inabaláveis Mas nenhum deles carregando tamanho peso em existir Nessa casca frágil alquebrada A alma leve e ágil da mesma criança levada Qual o teu maior pesadelo enquanto teu corpo se ressentia do enigma que o fez? Qual o teu maior desgosto quando tudo se tornava menor ao seu redor Qual o teu segredo para manter-se por dentro gigante sem recorrer às mesmas e velhas desculpas? Pois se, dentre todos os outros que aboliram sua própria culpa Tu, entre os demais, assumistes desde sempre o abandono de tudo que é humano Lançastes a ti mesmo nesse vôo sem

Fitness

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Daqueles propósitos de fim de ano que começam na verdade quando o frio chato e aqueles ventos cortantes de agosto setembro dão lugar ao calor da primavera verão aqui em nossas terras. Você está quieto no seu canto, conformado de não ter feito quase exercício nenhum no inverno passado, depois que saiu da  influência da outra temporada de primavera verão, e daí começa a ver movimento e tudo colorido ao redor, não importa aonde vá. Vai ao shopping pra um cineminha e vê as pujantes promoções  das lojas com imensas vitrines iluminadas com tudo que é manequim e roupa de ginástica , geralmente nada discretas. As lojas de material esportivo então (aquelas que estão sempre no seu caminho obrigatório toda vez que vai ao shopping), tem fila até pra testar pneu de bike e aquela raquete de tênis que você ainda achava que durava mais uma ou duas temporadas começa a ficar cada vez mais obsoleta no seu espírito quanto vê as novas raquetes, sempre a um preço convidativo, penduradas e brilhando bem

Convalescente (Crônica das influenzas)

a performance rarefeita  de um corpo em constante aprendizado tateando, cansado, o caminho áspero do mundo por outras vias por uns dias, sequestrado da sua saúde, a dor não é das piores mas o suficiente para turvar o humor e o bastante para sacudi-lo das pontas dos pés ao fio do cabelo, a cada espirro ou acesso de tosse febres intermitentes, me dói em tudo que é lugar talvez seja o censor interno que , de um lado se culpa na memória turva e internalizada (herdada) de que sempre somos culpados de alguma coisa o não-gostar-de-médico que minha mulher recrimina o gelado que minhavó recriminava, o dormir tarde demais, que minhamãe recrimina o ar-condicionado exagerado do trabalho do cinema, do banco, do carro que ninguém recrimina, mas me arrebenta misturado ao ar podre de uma cidade grande e, no fim de tudo, o preço existencial de um certo nariz intolerante e excessivamente alérgico diziam os antigos alquimistas que o nariz é o órgão supremo da intuição acima do co

Pique

Escondido na varanda, luzes de anonimato apagadas para ver  a molecada brincando de pique na rua. Já são quase dez da noite, e por uns instantes a forte chuva deu uma trégua por aqui. O suficiente para a galerinha entre sete a dez anos vazar da festa de aniversário da casa da vizinha e ganhar a rua com estardalhaço. Queimada, manda-rua, pique-pega, ora quem diria? Crianças sendo crianças, sem impedimento visível ou babá eletrônica. O estouro tradicional da pocada de bolas, saída direto da grande garagem para o espaço público, ganhou ares de final de copa de mundo. Diferentemente do período em que morei em apartamento --essa necessidade mordaz que angustia alguém que durante a maior parte da vida sempre preferiu o espaço mais amplo e privado de uma casa --, as festas de aniversário da pirralhada nos condomínios sempre me pareceram algo bem tacanho e burocrático. Palhacinhos contratados, animadores profissionais, o velho pula-pula, alguns pais meio entediados ou afundando na cerveja ou

A Invasão

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No começo, ninguém desconfiava de nada. Elas vieram assim, sorrateiras, esgueirando-se por pequenas frestas, povoando nichos de sofás, camas, forros de geladeiras e armários de roupas e sapatos. Com presenças mais discretas e silenciosas durante as estações mais frias, tornavam-se contudo explícitas e corajosas nos dias quentes, anunciando uma nova ordem de terror. Em algumas épocas, tudo silenciava, e inusitadamente passávamos alguns incríveis dias de paz. Mas no decorrer de dois ou três meses,  logo estavam novamente em toda parte, multiplicadas como se durante o suposto período de hibernação tivessem não apenas acumulado força e estratégia, mas também copulado compulsivamente e se reproduzido em batalhões à exaustão durante cada precioso segundo de tempo disponível, dada a quantidade assustadora que a cada ano  só aumentava. Minha mãe se estressava com aquelas criaturas mais do que com qualquer outro tipo de problema em casa. Não tinha questão com vizinhos, orçamento

A arte do meio (Ensaio)

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Quem acompanha, mesmo ao longe, a cultura do sol nascente, já deve ter se perguntado alguma vez sobre a razão das visíveis diferenças entre eles e "nós", ocidentais. É claro que esse ar "exótico" que tantas vezes atribuímos ao que é distante de nós,  não é fato isolado apenas em relação ao Japão, mas por extensão, cabível a todo o oriente, por várias razões, desde as histórias próprias de suas nações, a formação de seus povos e seus valores, até o efeito da longevidade cultural que caminha no tempo para muito além da nossa base greco-romana, e como se sabe, todos invariavelmente devedores da maior e mais antiga civilização de todas, a chinesa. Contudo, o Japão tem algo diferente, é o que se vê logo. Como todos os países orientais, partindo de uma antiga e direta influência da China em algum lugar no tempo, mas caminhando por seus próprios pés em seguida, ao desenvolver sua própria arte, sua linguagem em ideogramas específicos, sua extensa rede de fortes valores

Os filhos de Saul

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(*Ensaio escrito há dois anos, pouco após um grande ataque com bombas de gás, na guerra da Síria, que vitimou número absurdo de crianças. Qualquer coincidência com o último mês, não é mera coincidência) -------- Não vou falar sobre mais um menino sírio que apareceu arrebentado em uma foto de jornal. Há algo que vem de dentro e que se recusa  terminantemente a buscar qualquer racionalização possível. Uma raiva que rejeita por princípio qualquer pacificação dos sentimentos ou sua substituição por um conceito administrável que possa extravasá-los, uma analogia objetiva e fácil que normalmente é direcionada aos maus e notórios personagens políticos do planeta. Achar prontamente "culpados", tanto contextos quanto pessoas, é em todas as vezes nada mais que criar um tipo de remédio psicológico para que a dor alheia não nos incomode tanto, não nos  consuma de uma vez e a vida possa retomar seu curso no dia seguinte. Desta vez, eu quis que a dor continuasse, quis que a dor não