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Mostrando postagens de outubro, 2018

Resistência

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"Será que nunca faremos senão confirmar a incompetência da América Católica que sempre precisará de ridículos tiranos?" (Caetano Veloso) ----------------- Levantar a cabeça pra enxergar a luta Nos bolsos breves a leve esperança Reverberar criança Revelar o novo Não se amargurar demais diante da disputa Ter sempre na memória a pulsação  do tempo aceitar         aprender                 respirar e se isso ainda parecer pouco Forjar um outro corpo que ria do  castigo Uma nova mente a desafiar  perigos Não aceitar o domínio Não aceitar o discurso Não reproduzir as falsas verdades Desconfiar da normalidade Jamais se calar Treinar Os pés para voar As asas para fluir Os ossos pra caminhar O olhar para achar saída O espírito para não sucumbir O músculo pra não enregelar A verve pra não se  distrair A voz pra não enfraquecer O sonho pra não desiludir Engrossar a pele contra todo espinho Manejar o texto como quem esgrima A p

No caminho

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"(...) até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a  voz da garganta. E já não podemos dizer nada". ( Eduardo Alves da Costa, "No Caminho com Maiakóvski) Tomei a dignidade do teu trabalho  atei correntes ao teu calcanhar Turvei tua melhor razão te dei um mito para adorar Concebi um novo alfabeto e te obriguei a decorar Exterminei as diferenças e pus uma nova imagem no lugar Atentei contra as mulheres botando a raiva pra funcionar Matei teu amigo negro mas não sem antes o humilhar Eliminei as outras bandeiras mas não sem antes caluniar Queimei todos os livros mas não sem antes me vangloriar Extingui toda dissidência botei a força pra legislar Ceifei os filhotes índios plantando a praga em seu lugar Censurei todas as cores pra outra era se anunciar Calei todas as noites levando os cães pra passear E por

Poiesis

Ficção Liberdade criadora Testemunhos de diversos mundos Imaginários ou reais Paletas incontidas De onde parte  o olhar que constrói Ou de onde se pinta O que ele também não vê Porque nem todo processo criador É consciente Os mais profundos nunca são Porque seus signos bebem Em outras fontes Poesia ou narrativa Que não se submete A qualquer juízo Que não seja o seu próprio Nem admite patrulhamentos Somos algozes por isso, às vezes Somos vítimas também Pela mesma razão O ruminar da poesia não obedece padrão Não conhece tipos proibidos nem é escravo De nenhuma situação particular Apenas pede a realidade de empréstimo (Quando o faz) E ainda assim sem dela depender E sem precisar se explicar Poema é antes de mais nada A maneira do poeta estar no mundo Transfigurar seu olhar Transtornar-se em suas próprias fibras Até que não reste mais nada a dizer Para si mesmo Poetar é um eterno solilóquio Textos contextos personagens Rimas ritmos volume Obedecen

Ghost in the shell

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Ressuscitaram o corpo depois de partido Reprogramaram a mente depois de perdida mas no fundo sempre fica alguma coisa um gosto, uma memória, uma tendência  um fantasma perdido sob o casco Ficou A paixão pelas garotas, pelos esportes  pelos amigos Paixão pela professora Paixão pelos livros Paixão por olhos coloridos Paixão pelos filmes, pelas velhas conversas boas e às vezes por uma boa briga Paixão por partidas que ensejam acolhida Paixão por abraço às vezes até mais que beijo Paixão pelo silêncio e  pela música Paixão pela boa companhia Pelo entendimento que transcende conversas Pela harmonia que estuda palavras Paixão por bolas de gude, selos, moedas e outras coisas nem tão bobas que se podem colecionar Paixão pelo jeito de alguém  virar uma esquina segurar um copo d'água falar ao telefone fingir que não tem razão fazer cafuné no cachorro despistar quando tropeça na rua dar o dinheiro ao pedinte sorrir com uma couve entre os dentes pass

Dois mil anos à frente

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 extinguiu-se o homem por suas próprias mãos agora tudo é gelo ao redor quando não é vento quando não é vácuo eras arquivadas guerras, assassinatos, barbáries nascimentos, projetos, acidentes dois milênios à frente máquinas falam e pensam como gente mas ainda não é cessada  a eterna busca o amor  em suas mais diversas formas já será algo esquecido ou os restos da mesma insana luta

Apolo XI

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ausência de som renomeando em novos trajes a esperança do silêncio absoluto           necessário único caminho para lugares dos quais não se tem mais as chaves de longe, o inesquecível cartão postal em azul celeste dessa bela bola de cristal na poeira lunar as primeiras pegadas que jamais se apagarão que importa agora todo o ruído insuportável do mundo diante da nova trilha para as estrelas?

Assim Falou Zaratustra

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o que éramos nós ainda há pouco o demônio que habitava o homem a magia que o libertou para além do bem para além do mal quem espreitaria no fundo desse precipício depois de tudo o anjo ou o animal?

Replicantes

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                                                                                                                    "Synthetic Human Birth" Cena "A", original, cena "B", editada (Jared Leto, Sylvia Hoeks e Sallie Hamsen, em "Blade Runner 2049"   -- Dir. Dennis Villeneuve -- Warner, EUA, 2017)        -------------  Replicado em orgânica tessitura dobras       planos           ossos                fissuras albergado no invólucro seguro mergulhado e nutrido na placenta sintética em que  foi gerado por mãos ambiciosas à imagem  de tudo que é humano oriundo de um diferente parto sofrendo, como um de nós amando, sorrindo mas ainda vinculado à sina do replicante nascido inteiro e maduro na forma mas ainda sem qualquer memória de si cada ponto cada traço cada toque aperfeiçoado elaborado calculado programado para soar para encantar uma casca repleta de contagiante  beleza inteligência e força circundando o conteú

Sobre beleza e tristeza

Lamento pela beleza pungente dos versos tristes mas a alegria (talvez por ser tão rara) é sempre superior Não sei como ainda se confundem poetas e filósofos ao imaginarem o mundo triste e melancólico como algo digno de nota Sofrer é quase a sentença unívoca de se estar no mundo mas a alegria (mesmo em pequenas doses) é o que permite viver

Baralho

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Pingavam espadas e copas do teto e seus gestos me calavam naquele tempo enquanto pensávamos o amanhã amassados entre travesseiros a ver o destino reiteradamente embaralhar com mãos inábeis todos os naipes Você andava solta pela sala descolada das coisas do mundo leve, bela e desnorteada Como um pouco mais cedo rondando-me silenciosamente feito o gato em segredo ao se acercar da presa                                    O rosto inchado, os olhos puxados e   aquele etéreo  halo de estrelas a lhe enfeitar os inverossímeis sonhos ainda mal acordados Seu gosto envolvendo a memória da  noite num abraço eliminando   dúvidas e as ingênuas certezas que habitaram meus singelos traços O futuro não era mais certo do que uns retoques no batom vermelho e a ajeitada nos cabelos antes de sair à rua Da beirada da porta espreitando espelhos eu via você sorrindo , por dentro diante da própria imagem como toda criança que sempre vê

Cigarras

O tempo cigano enrustindo-se fora das horas apenas pra ver o dia passar Nada fazer. Só contemplar E essas cigarras vêm nostálgicas quando o calor se agarra e as primeiras chuvas engrossam Algumas zumbizando soprano                                  outras contralto Uma de timbre tenor explode em metais a uns dois metros do meu ouvido, aqui bem no pé de laranja do quintal atrás O garoto chegava do mato com aquelas carapaças perfeitas e translúcidas dos bichos. Umas gigantes, redondas Outras mais fininhas, esverdeadas Olhos monstruosos, em desproporção Com o corpo O relevo perfeito daqueles bichos Em moldes que denunciavam alguma forma de vida há pouco fugitiva daquele esconderijo --carapaças ocas e vítreas, como pequenas casas de cristal sem ninguém morando dentro  (Elas cantam até rebentar --Dizia minha saudosa avó) (Raça de bichos artistas, esses. --O garoto pensava) E elas continuam cantando forte Sabendo em si que cantar é mesmo a coisa mais ur

Prelúdio ao "Fausto', de Alexander Sokurov

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I.  O pacto: a carne a massa ainda não disforme extensa        abandonada pela vida há apenas duas horas        sobre a plataforma de metal [ou esse abandono era talvez um tipo de miopia ancestral adquirida após séculos de doutrinação? ] A morte: ela existe, afinal? Restariam certos os rabinos os sacerdotes mumificados com suas sólidas verdades em púlpitos de cadafalso sobre o mundo que não se vê? A morte, ela existe afinal? ou se imiscui a vida agora de outros trajes vestida adepta -- em essência -- de uma outra permanência dissolvendo-se em novas formas distorcendo as antigas normas até que não se contenha mais a matéria Bactérias, fungos e vírus, insetos os afetos de solidez em pouco serão gases, liquidos, poeira como éramos antes A contemplação que enche os olhos O nu que nos restabelece o humano quando por todos os outros modos ele já se perdeu há tantos anos Silencioso, desliza afiado o gume sem espalhar mais sangue A ansiedade d

As Mãos

Não saía à rua sem que passasse pelos portões a tatear grades volumes, desenhos e as assimetrias das texturas e paredes Dizia que as mãos é que sabem a história das coisas que não precisam explicação, as coisas mais importantes que jamais  são cerebrais porque vão direto ao coração Às vezes ela fazia isso de olhos fechados às vezes não Deslizava as palmas das mãos sobre o capim pendulado no campo sentindo o veludo verde dos brotos e sementes ainda não levados pela brisa Gasturava-se na grama baixa e picante nivelada do jardim Levantava a mão  direita no ar (a esquerda segurando as rédeas) em dia de ventania e o galope bom do potro malhado navegava ligeiro contra a formação da próxima tempestade ainda a ameaçar Mesmas mãos que no vento também se molhavam quando ela viajava pra muito longe fazendo anteparas engraçadas à resistência do ar (era como se existisse alguém do outro lado a resistir) Uma outra mão, do lado de lá das janelas dos carros, dos ônibus, dos tr

Os olhos de Frida Kahlo

Livre baila Frida como se leve fossem as cenas nesse breve  teatro da vida A juventude em seus gestos o longo vestido em pés descalços sobre a calçada de pedras lisas Baila na brisa, Frida leve e íntegra por entre escombros colo recortado  entre delicados ombros Os longos cabelos em tranças Na cabeça a eterna flor vermelha num dia de carnaval onde todos simulam ser felizes Esses olhos de albergar arco-íris fazendo pairar ao longe a tosca imitação de uma cidade Mãos dadas com a menina baila ao crepúsculo O coração estival que ainda habita em ti nesta tarde em cores Túnel de tempo a navegar sob as ausências ruidosas de uma metrópole

Toda filosofia

a angústia é o estado natural do homem que recusou em si mesmo a besta [Já dizia Kierkegaard] e toda besta é feliz porque ignora sua própria condição mas a recusa à bestialidade ainda não fez anjo ou demônio daquele que se angustia                        é preciso poesia