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O caminho de todas as coisas

O CAMINHO DE TODAS AS COISAS Olhar ainda não é ver Escutar ainda não é ouvir Abraçar ainda não é ter ... Concordar ainda não é sorrir Perdoar ainda não é sentir Aspirar ainda não é querer Engravidar ainda não é parir Esperar ainda não é sofrer Andar ainda não é dançar Nutrir ainda não é comer Falar ainda não é cantar Despedaçar-se ainda náo é morrer Correr ainda não é voar Embriagar-se ainda não é beber Acudir ainda não é amparar Achar-se é não saber se perder O que falta ao homem lembrar-se de que sempre é a medida de todas as coisas o que falta ao homem é lembrar-se que sempre foi a medida de todas as coisas O céu ainda não é Terra Garras ainda não são mãos Estrelas ainda não são gente O espaço ainda é só solidão O universo ainda não são seus olhos Seu corpo mais que simples reparação A centelha que ilumina uma vida Transcende qualquer razão  

A Tempestade

Renascendo depois de um tenebroso e seco inverno, eu vi sua chegada verde, anunciada e úmida por entre chuvas temporais, calores estivais flutuando cheiros. Eu e as árvores olhando para as nuvens, na esperança da sua volta. Os arautos de vento que dançam janelas, entrevistam portas e recomendam gotas, esses sabem as notícias antes que o mundo as faça. Toda chuva tem sempre sua escola de espreitar o momento certo. Com as primeiras gotas, contempla-se de uma janela esse liquefazer de todos os seres vivos, como se através do olho mágico de uma porta secreta eu pudesse contemplar o próprio mundo em espiral infinita, movendo-se no ritmo de torrentes seguidas enquanto uma  leva de seres felizes por poder navegá-la sem paradas, sem atropelos, simplesmente flui.  Sob a ponte de madeira grossa, mas incompleta em sua latitude, ruge o rio vermelho, com esse temeroso som desbarrancador (familiar a quem habita suas margens), curvando violento  poucos metros à frente, enquanto arrasta margens, cerc

Poesia do cotidiano 4

Manhãs de domingo dias de anjo dias de Belzebu Acordando meio amassado depois de transvirar entre lençóis e travesseiros a noite inteira depois que parei de fumar até sonho com cigarros preciso beber menos A vizinha com o som alto para as 7 da manhã é impressão minha ou essa porra não parou de tocar a noite inteira? Seja como for, eu com minhas verdades universais que só valem pra mim: uísque é sempre uma péssima pedida cabeça latejando corpo cuspindo farpas e funk é sempre ruim a qualquer hora do dia ou da noite Um Bem-te-vi canta alto amarelinho esperança e todo motivado, numa antena de tv que deve estar a uns três metros da minha cabeça, sob o telhado do vizinho daí penso em como é perfeito o senhor Deus, e tão bonzinho, que não me deu uma metralhadora anti-aérea ponto 50 numa manhã de domingo Atravesso a sala num último ato glorioso e piso no jornal que ainda está no chão escorrego, em particular, no caderno de política, que faço quest

Seppuku

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A lâmina do metal mil vezes forjado mil vezes afiado cortando ossos sem dor a medula de encontro ao frio gélido espalhando arte na prata reflexiva salpicada de vermelho enquanto escrevem a morte no pergaminho da vida Honra no lugar do medo a disciplina no lugar da sorte ganham o mundo sete samurais e sua sede de glória corta mais que qualquer metal Sete espadas, sete vocações oriundos de um tempo que não há para um mundo que se desfaz mais rápido do que se engendra um reles pensamento. De que valerá, enfim, tamanho talento no bojo de uma civilização que solapou toda verdade? Se na fibra da planta, o carvalho para ser bom demorou tantas décadas se a lâmina de sua katana destilou tantos venenos no gume pra quê tanta honra e tanta disciplina eu me pergunto num mundo que se derrete ao lume? Melhor não seria capitular perante o tempo o mais forte dos senhores? Melhor não seria abraçar o seppuku do que ajoelhar-se perante um inimigo cada vez mais vil?

Poesia do cotidiano 3

A mulher na rua como um bicho nua, seios infantis e descobertos posição simiesca, sentada no meio-fio cabelos raspados, braços arranhados Não era branca não era preta não era azul poente Não tinha roupas não tinha charme não tinha dentes Um olhar perdido para o canto do espaço em que nunca existe luz Dizia coisas sem nexo, e tentava em vão cobrir o próprio sexo Olhava para o rosto dos passantes e todos a acusavam, uma só voz em frente ao lotado shopping, Natal! Ameaçaram polícia ameaçaram ação social ameaçaram violencias coisa que mais há no mundo Hoje a mulher ganhou a rua de vez sentou-se bem no meio aonde passam os carros O chão do asfalto quente, tostando uma vez mais sua pele queimada E realçando os arranhões que aumentaram daquele dia até hoje

O último mergulho

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(editado) Enquanto o horizonte diminuía à proporção em que a viagem abraçava seu destino, o carro descia vagarosamente o último trecho de morro antes da chegada. Lá na frente, num pequeno ponto de luz, o vértice azul de um mar verde e brilhoso  triangulava num foco de aumento constante. Como as lentes de uma câmera em mãos amadoras, procurando alcançar em  zoom  seu objeto num ponto específico da paisagem, o vértice de mar apontava como uma seta para baixo,  ainda a longa distância,  transportando a luz para o interior das quatro visões infantis que, justamente nesse instante, paravam toda a bagunça no banco de trás do automóvel e silenciavam por uns segundos, estendendo a vista até onde dava e atravessando com o olhar o pára-brisas daquele poderoso Fuscão VW Azul Claro  rasgando o universo em direção à praia. Um ano se passara, até então, desde que tinham ali estado pela última vez os quatro irmãos. Vinham há duas ou três horas na estrada, e como fazia parte de uma brincadeira

O lutador

Atravessa o corredor sozinho Ouvindo o grito do público Mais alto seu próprio coração Latejando na cabeça Como tambores surdos Contidos                   Mortais De repente, todo barulho cessa Toda voz que ousa cala E apenas seus passos marcam o chão Ritmados                   Marciais Martelo dos deuses num chão de pedra batida Como se antes ninguém tivesse ali pisado Sobe o ringue pelas cordas Apruma-se como gato Espera,  defende, ataca Estuda, experimenta, arrisca Voa, se encolhe, se arrasta O sangue jorrando na pista O espírito virado corpo Em garras, luz e sede O desejo ancestral do combate Absorvendo-o em sua rede Exausto, machucado e suado Ao final da luta, já no vestiário Contempla diante do espelho O seu maior adversário

Se eu quiser falar com Deus

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Sidarta, Cristo, Krishna, Maomé personas universais, a vida pela fé. Sangue nobre, nobres intentos intenções perdidas, lamentos As bênçãos da humanidade à sua mais nova criação: a língua mais imprópria para se falar com um Deus. Allah, Shiva, Brahma, Javé figurações da mesma valsa a morte pela fé. Nirvana, paraíso, armas, imolações o gosto e o desgosto pela fé. Moral verdades universais, pecados originais reencarnação idade das trevas, fogueiras dança das almas rumo à ilusão, a língua mais imprópria para se falar com um Deus. Busca da certeza, quando a vida não nos dá apego ao que flutua, o medo de afundar quando o nada parece destino... o lado de lá. Homens em desatino vagando sem se encontrar. A língua mais imprópria para se falar com um Deus. O domo, a palavra, a vela, os castiçais o rito , o hábito: serviçais. Purgatório, êxtase, escrituras pastores e ovelhas, rebanho, opressão, o cego segue sempre no comando, religião: a língua mais

A queda (Ensaio para uma metafísica do herói)

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Há alguns arquétipos que são sempre revisitados pelo tal  inconsciente coletivo, e a queda, como um ritual de passagem, é uma das mais importantes referências. A idéia da perda abrupta de uma pretensa continuidade, a ruptura inusitada, aleatória, que pode se transformar no momento trágico de sepultamento do ser sobre o qual ela se abate. Ou, como ocorre em muitos casos, representar talvez a força exterior invasora e conflituosa que, ao contrário, o impele a buscar no fundo suas melhores energias, mergulhando num processo obscuro e sofrido de autoconhecimento revelador. Essa atividade de prospecção poderá ainda trazer a lume aquilo que poderia ser definido como sua essência-em-vida, transformando-o em 'outros' paulatinamente, ao conferir-lhe uma alteridade absorvida das diversas experiências a que se propõe, e das quais até então ele próprio não se julgava capaz. Se ocorre a ruptura, é possível que o espírito se corrompa ou se aniquile em definitivo, porque ciente de su

Existencialismo, psicodelismo, critica social e ousadia estética: A História de uma obra-prima. Pink Floyd The Wall 35 anos

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Quando se fala de arte, independentemente do terreno de sua expressão, seja no mundo figurativo da escultura, da pintura, ou não figurativo da dança, da escrita ou música, é muito fácil se enrolar ao tentar definir conceitualmente aquilo que é bom ou ruim, o que é certo, errado ou onde estão, ou mesmo se devem existir os tais limites para a criação. Perde-se muito ao tentar racionalizar um discurso que pertence a outro gênero de conhecimento e experiência humanas, porque geralmente essa fala explicativa opera um reducionismo ao usar uma linguagem estranha para "dizer" e tornar palatável aquilo que foi criado dentro de um outro modo de experimentar o mundo. Na falta de critérios absolutos para definição, uma vez que a arte não se curva à mera análise cartesiana da racionalidade, ao mundo hermético dos conceitos que compõem a Filosofia ou mesmo ao quadro de funcionalidades e relações típicas do pensamento científico, o que acaba acontecendo é a imposição de verdades com