alucinação
Eu caminhava por um corredor de árvores imensas e pedras lisas, escorregadias, subindo uma montanha fria e cinzenta entre neblinas, e nele me via, de fora, como uma sombra. Meus passos eram somente marcas hesitantes, ecoando em meio à escuridão da eterna noite.
Por onde eu passava, algumas vozes atrás me chamavam, estridentes e repetidas como o latido dos místicos cães noturnos. Eu olhava e não via; queria correr, mas não podia; somente andava, apoiado nas pedras, com um pedaço de pau.
Apesar do esforço, eu nada mais sentia, a não ser a mim mesmo.
Irradiando ausências...
Silenciando pretensões.....
Súbito, cheguei a uma pequena vila, encravada bem no topo da colina. Estava deserta, as casas abandonadas às pressas.
_Olá!.. _ eu disse. E uma luz se acendia, tremeluzinha, do outro lado de uma janela a me espiar.
Olhos incrédulos e brilhantes me assistiam, mudos.
Olá!... _insisti. Então uma porta imensa se abriu do nada às minhas costas, num estrondo , e finalmente pude ver: eram milhares de bocas abertas, sussurrando um estranho som em meus ouvidos.
Enquanto isso, meu sangue gelava e minha mente tentava transportar-me para algum outro lugar, mentindo ao corpo uma falsa saúde, numa ilusão de que tudo estava bem.
O que sobrou de minha memória tentava me resgatar , tentava sem sucesso me levar àquele lugar do sonho onde ele finalmente se desvela, salvando o mundo em felicidades e prazeres e matando aquela angústia que existira momentos antes.
Tarefa perdida, ilusão; a consciência se despediu de mim num grito e o desespero ganhou inteiramente minha alma, arrastando-me de vez às profundezas do gelado abismo, como agora vou contar:
Pois não se veja o abandono ao sonho : estava eu sozinho, numa casa tosca, encavada a talhes de pedra no meio de carvalhos gigantes, por algum povo primitivo. Noite gelada, brumas. Na pequena sala, uma mesa com banquinho de madeira, lareira e algumas ervas cozinhando naquele fogo lento: vapores.
Sobre a mesa um envelope amarelo, semi-aberto, sujo, com algo dentro , um bule de café e uma caneca de latão. Estava endereçado a mim mesmo, constava a mesma data, mas sem remetente.
Sentei, abri o envelope e nele se encontrava o seguinte texto, meio apagado, escrito a mão, numa caligrafia bela e há muito extinta:
“O rio de vento entrou por minha janela
Abrindo as cortinas e apagando todas as velas
E no entanto a luz continuou
A luz se tornou mais forte, enfim,
A luz não se apagou.
E eu sinto esse alento
E eu o conheço há tempos,
O tempo, veleiro, navega a vazante das horas
distante
Alheia a si mesma, a natureza é feliz
sem lei, sem ordem, credo ou verdade
una realidade
sem lágrimas ou pranto, portanto
natural
Nasce a vida, como um rio
E sua vontade é oceano.
Surge a vida, incontida, manifesta
a gota do néctar , o cálice da flor
Chega-se à morte, repete-se o ciclo
Chega-se à morte, e a morte não é dor”
Fechei os olhos imediatamente, e lancei o envelope à lareira, desintegrando-o por completo nas ávidas chamas.