Aurora (temas e tramas do pensamento ocidental numa abordagem não-linear)


Há cerca de três mil anos, enquanto no sul da áfrica algumas tribos guerreiras soavam seus tambores de pele no frenesi da batalha, na luta pela sobrevivência, no extremo oriente vivenciava-se o início do fim de uma fantástica civilização milenar e a américa ainda permanecia o paraíso perdido, nem sequer sonhado, assim como a Oceania. No centro do mundo, Heráclito, o grego, sob o signo do deus Apolo, começava a história do pensamento ocidental, descobrindo sua verdadeira essência, que é o contínuo movimento de superação dos contrários, esse rio eternamente fluindo; brigou com seu arquiinimigo Parmênides, no terreno das idéias, pelo domínio do conhecimento mais importante da Helas antiga: ou tudo está em constante movimento, nada permanecendo o mesmo, sendo a constância e unidade as exceções e a impermanência e a fragmentação a regra, ou, no sentido inverso, como queria o grande Parmênides, o ser é completamente imóvel, uno, sendo o movimento e a transição ilusões de perspectiva dos pobres mortais. Venceu Heráclito.

Platão, o defensor mais ilustre das idéias de Parmênides, revoltado contra o devir e contra a morte inglória de seu mestre Sócrates em pleno apogeu da civilização grega, rogou milhões de pragas contra Atenas e vingou-se da Magna Grécia num exílio voluntário, viajando para o Egito, em busca de novos ares. Lá, inspirado pelas artes místicas daquele povo fantástico, e pelos eflúvios inebriantes dos pais de Dionísio, este deus estrangeiro, escreveu o diálogo "A República" , e o trouxe na bagagem de volta para casa, esconjurando seus conterrâneos a se reeducarem para uma nova civilização, que de fato nunca pôde existir, porque perfeita "A República", mas imperfeitos o homem, a vida, a realidade, imperfeita a civilização . Entretanto, Platão ainda está em todos nós, querendo ou não, e jamais ele próprio poderia antever a força dos seus dois maiores legados: primeiro: o conceito de belo=bom=verdadeiro, pilar da estética ocidental, e segundo: inventou o cristianismo antes de Cristo. Afinal , que é o céu senão parte do " mundo das idéias" platônico, e o que é a alma senão parte do conceito de "essência" , da qual o corpo seria mero simulacro? Agostinho sabia de tudo isso, e ocupou-se muito de Platão antes de tornar possível a religião cristã, não necessariamente reconhecendo os créditos de seu predecessor.

Aristóteles, com sua cabeça universal, aluno de Platão, mas de índole mais científica e menos artística do que seu mestre, sistematizou magistralmente todo o pensamento anterior, e centrou seus estudos na natureza, na physys, melhorando a observação humana sobre os fenômenos naturais, criando a lógica formal e plantando o germe do que mais tarde seria chamado de ciência, o que tornou possível a existência do chamado mundo ocidental, sem contudo se descuidar do humano, retratado de forma genial na "Poética" e na "Política". Sem Aristóteles e seu famoso e impulsivo aluno, Alexandre da Macedônia, nosso mundo não existiria da forma como o conhecemos. Seríamos, por infelicidade, menos gregos, e por consequencia lógica, menos romanos, não-ocidentais enfim.

Déscartes, dois mil anos depois de Aristóteles, tornou possível a consolidação do ideal burguês-científico como a nova ordem mundial, quando transformou o mundo num plano determinado de relações possíveis entre X e Y, sendo x ou y qualquer objeto, animal, pessoa ou situação existente no planeta, estando todos relacionados entre si num plano bidimensional pela primeira vez mensurável e previsível , expresso por caracteres matemáticos. Toda a modernidade é sua devedora. Dessacralizou a natureza, extinguindo os mil anos da longa noite medieval, mas reduziu significativamente, pela hipervalorização da lógica, da mecânica e do controle e previsibilidade da vida material, as demais possibilidades do humano.

Nietzsche , este profeta sem morada, resgatando Heráclito, mostrou a força que move a vida humana sobre a terra, e chamou-a de vontade de poder, característica maior do estar-vivo. O eterno retorno, sendo sua mística consequência. Nietzsche matou a filosofia por misericórdia, para salvar o pensamento humano da decadência. Depois desse "Martelo dos Deuses", não resistiram os castelos de areia do conhecimento e as redes montadas para explicar o mundo de forma artificial. Os instintos, o animal homem, as forças subterrâneas berram contra a deusa da razão. Há que se falar numa nova ordem, mais verdadeira e corajosa, que seria também encampada por Freud , posteriormente, até o fim da vida.

Schopenhauer, esse budista europeu, inimigo natural de Hegel, antes de Nietzsche, havia dito que a resignação é o único caminho , e que não haveria nada no mundo que conseguisse diminuir o sofrimento humano, sendo a contemplação a única saída para o agir, transformando-se o ato em não-ato; nirvana como meta da existência humana superior. Este o maior motivo da briga com seu ex-discípulo Nietzsche, que nunca aceitou essa hipótese, sendo, para ele, o agir, algo inafastável e definidor da humanidade. Este agir é algo que , num mundo sem essências, definido pela existência, ditará toda a história da raça desde seus primórdios, levada a caminhar para frente por força de grandes espíritos, especiais, determinados. Não agir significa, para Nietzsche, a morte, coisa de rebanho.

Heidegger , lendo Nietzsche, retornou aos gregos, tentando recolocar em pauta o espírito inquieto e explorador daquele povo, que segundo sua original interpretação, havia se desvirtuado pelos caminhos da história. Heidegger inaugura uma nova forma de pensar o homem, concluindo que o ser humano é o "ser-para-a-morte", e essa consciência de sua própria finitude transforma esse animal homem em algo muito especial, divergente de todo o resto da natureza; daí o mundo ser definido a partir de si próprio, desse ser diferente, único, sua própria existência, sua presença e abordagem dos fenômenos, e essa interação, a partir da consciência para a morte pode ser original (autêntica) ou simples comportamento de massa (inautêntica). Heidegger era obcecado pela morte, e dessa obsessão o pensamento contemporãneo renasceu forte, após a hecatombe Nietzscheana. Não é possível "pensar o pensamento" contemporâneo sem Heidegger.

Spinoza, deixando de lado os pensamentos sobre a morte, por considerá-los tarefa vã e indigna de um filósofo, interessava-se sobretudo pela vida, e seu panteísmo impregnava de significados, motivação e beleza tudo que há no mundo. Como ninguém é perfeito, tentou explicar isso à maneira dos matemáticos, ciência mais valorizada no seu tempo, o que dificultou bastante seu entendimento, mas de forma alguma diminuiu o mérito desse grande espírito.

Hume, esse corajoso burguês, decidiu romper definitivamente com a idade média, quando botou abaixo todos os dogmas. A pretensão que existia, à época, destes se tornarem verdades eternas, absolutas ,foi desmascarada rigorosamente por ele como apenas mais um artifício da mente humana, que teme o desconhecido e o incerto e está sempre buscando certezas, ainda que etéreas. Mostrou, então, que a verdade é sempre parcial e incerta , e a certeza ,na verdade, uma mentira.

Kant, lendo Hume, descobriu-se uma estátua de pedra paralisada no tempo pelo conhecimento pré-concebido, idealizado; descobriu portanto, quão pretensioso pode ser um cérebro gélido e ressequido de racionalismos, dogmas e sistemas. Inspirado pelo ceticismo de Hume, criou as bases teóricas para toda a ciência , como nós a conhecemos ainda hoje. Explicou como pensamos, com fantástica habilidade para descrever esse processo. Antes de sair de cena, teve que diminuir seu brilho alçando a moral como imperativo desejável para a ação do homem e justificativa da própria história dessa raça.

Hegel, a aranha universal, tentou reinterpretar Kant, mas a missão foi, definitivamente, um fracasso. Devido ao grande gênio pessoal e excepcional talento para a lógica, talento este dedicado durante toda a sua vida a embolar coisas simples, transformando-as em coisas extremamente complicadas, ininteligíveis, incompreensíveis ao cérebro humano e , apesar disso, aparentemente significativas a olhos incautos, e ainda, em razão do alvoroço, influência acadêmica e popularidade alcançados por sua grande personalidade em vida (motivo aliás de muito ódio de seu rival Schopenhauer) quase conseguiu sepultar todo o (grande) mérito kantiano na história do pensamento . Superada essa fase tenebrosa, e resguardada a imensa contribuição de Kant, que graças aos bons deuses e ao definitivo esquecimento das teias hegelianas permanece sempre atual, as razões do nome de Hegel ainda ser lembrado são, fundamentalmente duas: em primeiro, por ter impressionado sobremaneira um jovem chamado Karl Marx, o que gerou enormes consequencias para o mundo atual, mas isso já é uma outra história. E segundo, em função da existência de muitas universidades pelo mundo, que reproduzem sem cessar neo-hegelianos, lacanianos e toda essa espécie de emboladores de signos profissional . Não é possível levar Hegel a sério e ainda possuir honestidade intelectual, simultaneamente. Digam o que disserem os acadêmicos...

Galileu, antes de Hume, havia mostrado como a cegueira é sempre mais perigosa quando coletiva; matou a igreja tirando Deus do centro do mundo e esta, ressuscitando com a ajuda involuntária de Lutero, queimou Giordano Bruno por muito menos, matou toda a renascença italiana por muito mais , jogando abaixo as novas perspectivas potenciais sobre a vida humana e a possibilidade dos gregos retornarem à vida pelas mãos de Rafael, Michelangelo, Donatello, Leonardo da Vinci, e toda essa trupe genial. Depois, esta saiu à caça de Lutero, malfadada missão, como se pôde ver nos desdobramentos posteriores da história.

Sartre, depois de Galileu, Hume, Kant , Nietzsche e contemporãneo de Heidegger, sendo muito influenciado por estes dois últimos, descobriu a grande náusea da condição humana, o homem perdido no pós-guerra, após a tragédia coletiva e nebulosa do nazismo e o fracasso retumbante da razão tão propalada no século anterior pelo Iluminismo; o grande pânico de se estar vivo, de existir. Ser humano, para Sartre, é não ter deus, pois se há um deus, não existe justificativa para o humano. Ser humano sem deus significa responsabilidade, muita responsabilidade, e o homem Sartriano pereceu sob o peso dessa nova ordem. Pereceu sob o peso de tanta liberdade, coisa a que não estava acostumado.

Foucault leu , releu e treleu todos esses pensadores um milhão de vezes, e pesquisou em seus fantásticos arquivos na Biblioteca de Paris e na École de France qual a razão disso tudo, e por quê tanta busca pelo conhecimento humano. Foucault, como todo arqueólogo, nunca se contentou somente com explicações históricas; tinha que haver um outro sentido oculto, a ser desvelado de forma não linear. Depois de contribuir com uma fantástica nova possibilidade de se compreender a história, este grande pensador tombou sob o signo da contemporaneidade: morreu de AIDS no final do século XX, enquanto sua voz ainda não se havia calado. Nem a morte pôde calar sua voz, que ainda ecoa forte.

Deleuze, o último filósofo que existiu nesta terra, viu , pelas lentes de Foucault e Nietzsche, milhões de possibilidades a se desvelar em um mundo novo, hodierno, multicolorido e vívido, acima de tudo multimídia; no crepúsculo da filosofia, viu um mundo nascendo, capaz de ser percebido sempre em movimento, de um determinado espaço de observação. Um pensamento que gira, e coloca sempre seu narrador em perspectiva, ao mesmo tempo que o coloca no centro do tablado, para um público espectador qualificado, ou não.