O silêncio
Há poesia demais em não falar nada
um romance não escrito quando penso em você
contos que dormem intactos
sob o travesseiro
crônicas de uma vida que anda de lado,
sem porquês.
Se eu não nascesse hoje,
tornaria a morrer sem revelar esse mundo
sem participar o liame das coisas,
entre o sólido e o abstrato mais profundo,
aquele lugar onde tudo o que há se revela na história do mínimo,
enquanto se perdem, assim, os seres recém surgidos do limbo,
antes de inaugurarem qualquer estado de consciência.
Àtomos e palavras,
urdidas na calada da noite inacabada,
inocências...
Neste filme que passa bem diante dos meus olhos
vejo cores, o campo, bichos, flores e mato alto,
então estou integrado nesta tela impressionista, e sou a própria
imagem do que quero ser: sou campo, sou bicho, flores e mato alto
repleto de pontos de sombra e luz,
sob cuja fragmentação espelhada possibilito a visão,
enquanto imponho meu olhar, esse tirano
trocando a realidade pela impressão.
Sou também o pintor que tudo observa
e se lança às tintas na tela
revivendo as cores em novos arranjos possíveis, existenciais,
contemplando esta paleta insólita em suas mãos
enquanto gesta um admirável mundo novo
que se alimenta
e se reinventa numa nova edição.
Na calada da noite, enquanto durmo, esse mundo acorda
as coisas e bichos que me emprestaram seu sentido convencional
libertos de meus olhos e equivocadas impressões natimortas
partilham sua confraternização de objetos não humanizados,
mas repletos de sensações e opiniões a meu respeito
e erram enquanto me analisam, me julgam num esquartejamento lógico
em prol de um sentido inanimado
deixando de encarnar suas verdadeiras essências
de campo, bicho, flores e mato alto
humanizando-se progressivamente enquanto agonizam
e eu, livre do meu próprio julgamento,
vôo para bem longe disso tudo
relegando o mundo ao seu estado anterior,
à sua simples inexistência,
agora,
que lá não estou mais
para torná-lo real