Estranhamento

Sou um estrangeiro em meu próprio mundo
o tempo, que importa o tempo?
que passe, que deslize sua suave guilhotina
sobre pescoços, pessoas e coisas ao redor

Que o tempo transforme os segundos
nessas agulhas de prata que rasgam atravessadas
quando entram  pelas frestas entre nossas costelas
salpicando seus ácidos suspiros sobre a face cansada
e marcando a golpes de cinzel suas curvas e pontos
enquanto derretem sua escrita insincera rosto abaixo

Deixem o tempo brincar de ser
isso pouco me importa
se tudo fosse imóvel e nada fosse objeto
das transformações, ainda assim
eu não me reconheceria nas coisas que me rodeiam
não refletiria meu rosto nesses falsos espelhos estagnados
pois se algo é capaz de subsistir sem ser um mero reflexo (pálido) de si mesmo
ainda que por um segundo, em narrativas de contos de fadas
esse algo seria inominado e habitaria uma profunda caverna
inexistente, somente o sonho de uma possibilidade
que por paradoxo não teria nome
e por não ter nome
não precisaria se lembrar  que existe

Tolice pensar que o passar dos anos
nos aproxima e nos familiariza com as coisas
com as pessoas
continuamos sós, e não acrescentamos nada real
sobre o conhecimento das coisas mesmas
aprendemos somente a gostar da nossa capacidade
de ter afeição por elas
amamos simplesmente estar em sintonia
ou pensar que podemos
vibrar na mesma frequencia do viver

Descobrir que é o contrário que ocorre
e que entre nós e tudo o mais  que existe
há muito mais hiatos que pontes
é desestabilizador
e, por alguma capacidade malévola de ser humano
traz uma felicidade enorme pensar essa tragédia
como possibilidade