Alma de cortiça




"Minha alma, insaciável com sua língua, já provou de todas as coisas boas e ruins, em cada profundeza já mergulhou. Mas sempre igual à cortiça, sempre bóia outra vez à tona. Bruxuleia como óleo sobre os mares morenos: por ter essa alma me chamam o afortunado". (F. Nietzsche).


"Sertão é dentro da gente". (Guimarães Rosa)

Andava flutuando sem saber de onde vinha o som; somente absorvia em silêncio as notas levadas  pelo ar, como se estivesse matando uma sede interior, aquela sede do deserto que pede pela água de todo rio. O trinado místico de flauta por detrás do muro surge de repente trazendo à tona seu portador: apenas brinquedo de criança. A pequena causa estava dada e fugiria em disparada, mas seus efeitos não. A música tem o dom de ser imortal. A noite ainda se escondia e a  mente fugidia tentava medrosa retornar pela estrada do batido caminho, mas hoje não, porque hoje qualquer melodia é metafísica demais para um passante que navega sobre o som. Histórias de Sátiros projetam-se desvairadas nessa tela, lembrança de vinho, lembrança de danças. Flauta de Pan colecionando almas, transcendendo instintos e ensaiando no cortejo  a convivência de uma abençoada herança. Cores e sons no terreiro, atabaques e lanças: abram alas para os Orixás e os cantos de fé:  savanas africanas do Candomblé: Olorum, Pais-de-santo e guerreiros polifonizando vozes e amestiçando o sangue afro-brasileiro. A verdade em suas variadas cores, a verdade em suas variadas vozes, a verdade não é una, é múltipla. A verdade facetada de uma alma sendo muitas, divindade em múltipas  vias.  Panteísmo necessário porque quem busca Deus o quer por inteiro. A miopia não pode governar o mundo, portanto é necessário aprender a enxergar. Não se pode contentar com menos. Não se pode viver só com meia razão. Cada conto canta uma vida e cada vida acrescentará um pranto se não for ouvida a voz  ancestral. O que era uno se evanesce e novamente se junta numa só banda, Umbanda. Espíritos que salvariam o mundo, porque a vida vale mesmo é pela aposta. O mundo se agiganta enquanto a fraternidade puxar o barco. A história luta contra, mas para ser fraterno tenho que abrir mão de lhe impor meu pensamento. Tenho que abrir mão de lhe ditar meus sentimentos. Sidartha ensinaria de bom grado essa lição, apostando na humanidade a longo prazo desde que a civilização não distancie os propósitos. Tudo tem começo e meio mas não tem fim. Mantra de grande iluminação da raça. Deixar-se fluir até os confins do universo poderia mostrar ao humano como ele partícula pertence ao cosmos, como ele partícula não pode se fechar num egoísmo cego. Para isso se entregou a nobre alma naquela cruz, para mostrar que o que é humano navega conjunto no mesmo barco, e todos afundarão se a verdade for pretendida ou marcada a ferro por poucos. Roma institucionalizou a a fé; Lutero questionou essa poderosa instituição tempos depois, trazendo a fé de volta ao o domínio do indivíduo, do psicológico, e a possibilidade de questionar segundo sua própria consciência. Kardec, revelando a eterna influência do grego Pitágoras, fez outra leitura e assimilou as manifestações extra-corporais humanas como essências transitáveis por esta e outras vidas. Pitágoras, por sua vez, era mais egípcio do que grego, e os egípcios seguem sendo o maior mistério humano nessa infinita espiral, pois sua linguagem é um passaporte para o universo, a possibilidade da vida estar sempre no devir, e a transcendência sendo uma via com diversas portas. Todos acertaram, à sua maneira. Não há crítica que subsista. Saber sobre Deus, compreendê-lo, racionalizá-lo, progagandeá-lo ou defendê-lo em armas  é irrelevante. Apenas inflama os egos. Não há Deus que se compadeça o suficiente da insignificância humana, quando estamos em guerra, quando trocamos atitudes corretas por palavras inconsequentes. Não importa. O que falta é enxergar que estão todos buscando o mesmo, mas brigando por línguas diferentes. O resto não tem importância alguma, a não ser para passar o tempo matando-se em grande escala. Água, água, água nesse deserto, somente beber a água de todo rio para matar a verdadeira sede e flutuar com a alma de cortiça novamente à superfície.