CONTEMPORÂNEOS OU MEDIEVAIS?
Tristeza esse retorno ao fundamentalismo, em todos os gêneros: religioso, político-ideológico, e até científico. Uma lástima observar esse retorno à idade das trevas, o radicalismo e a polarização imperando em todas as suas formas, quando deveríamos estar aproveitando os novos meios de expansão da mente, propiciados pela facilidade do acesso à informação emtodos os níveis. Aproveitando a elasticidade antes nunca vista nos meios de comunicação em rede, que propiciam um contato maior entre as pessoas, uma maior aproximação e conhecimento das diferenças, além de um debate mais universal de todos os temas, algo que deveria ser enriquecedor por natureza. Por outro lado, bem ou mal, deveríamos, sem achar que as conquistas pararam e que a estagnação tome conta, comemorar a consolidação de um Estado de Direito, imperfeito e ainda longe do ideal, mas construído e mantido com tanto sacrifício por todos os agentes políticos durante décadas, em particular num país como o Brasil, que viveu tanto tempo sob ditaduras. Qualquer pessoa de mediano conhecimento, poderia pesquisar os últimos 20 anos da história do país e escrever dezenas de páginas de avanços em diversos campos.
No entanto, apesar de tanto potencial para o crescimento individual e o aprimoramento dos grupos, o que se vê até enjoar, até dar nos nervos, é sempre aquela batalha ancestral entre o tosco e o primitivo, exposta nas diversas mídias, ou mesmo perceptível fora delas, no dia-a-dia das salas de aula, nos ônibus, no ambiente de trabalho, no bate-papo informal entre as pessoas, na rua a influência pernóstica de instituições que manipulam pessoas mais simples, ou nem tão simples mas de mente fechada, para retomarem os valores mais conservadores e acirrados, lutando cada vez mais pela intransigência e pelo ódio, em vez de fazer valer seus contrários, valores universais reafirmados há duzentos anos, pela Revolução Francesa, que são a tolerância e a aceitação das diferenças. Nosso povo se tornou mais bruto, mesmo depois de tantas mudanças importantes?? Quando assisto à tv, observo a qualidade das discussões ou vejo o trânsito, parece que sim.
A exemplo disso, para marcar apenas um ponto, caso alguns ainda não tenham percebido, estão surgindo no país sinais históricos do conflito que em outras terras já criou revoluções, derramou inutilmente o sangue de inocentes e fez a humanidade caminhar para trás.... O conflito religioso. Não precisa ser muçulmano para ser radical, porque o fundamentalismo é insidioso e ataca sorrateiramente ,no cotidiano mesmo.
Não há inocentes, nessa história. Este debate não é uma crítica à fé, ou às diferentes maneiras de se lidar com o sentimento da divindade, da transcendência. Ocorre que as instituições que expressam as diferentes denominações da fé, em sua maioria, não trabalham pelo esclarecimento ou pelo crescimento espiritual das pessoas, mas sim pela perpetuação de seus dogmas e a manutenção de seus benefícios e privilégios de toda ordem, não importa quais sejam. Preferem se perpetuar, confundindo e implantando valores arraigados na cabeça de seus membros, mesmo que à custa de irresponsável engajamento no embate de forças perigosas para o alcance de uma possível e desejável maior harmonia do convívio social, do que contribuir com uma mínima margem de luz para que haja qualquer tipo de avanço da civilização.
Isso se manifesta o tempo inteiro, numa verdadeira guerra silenciosa, que estará tomando ares de batalhas reais de campo, se não houver uma mudança gradual das perspectivas. E isso começa é com os indivíduos mesmo, fazendo seu próprio exercício de consciência.
A última cruzada está sendo esta, das manifestações exacerbadas contra as novidades jurídicas e comportamentais sobre gêneros e o aumento do ódio pelas diferenças.
Ninguém entendeu ainda, que trata-se, na verdade, de adequação do mundo jurídico à realidade contemporânea de fato? Isso tudo chega a ser simplório, pela ausência de pontos sérios de discussão. Não só no país (com atraso), mas no mundo inteiro, ocidental, a mudança chegou para ficar, assim como outras transformações que antes surgiram. O que cabe agora não é gostar, ou deixar de gostar, fazer apologia ou atacar o suposto inimigo. De um lado, não há porque pensar que uma ordem religiosa qualquer teria algum tipo de obrigação de proceder, dentro de sua ordem, ao "casamento gay", sendo que sua doutrina não professa tal preceito. De outro lado, não há porque tamanho engajamento das facções religiosas mais ardentes em tentar tirar a legitimidade civil de um movimento e de uma situação já consolidadas no comportamento ocidental, uma mera regulamentação de um direito legítimo. Do ponto de vista do cotidiano, a coisa se coloca mais ou menos neste aspecto: Não partilha dos mesmo sentimentos, não tem interesse numa relação "homoafetiva"? Tudo bem. Está com a maioria. Apenas deixe que cada um siga seu próprio destino. Do outro lado, faz parte da minoria? Desfrute da consolidação de um mundo que agora se abre para a efetivação dos seus legítimos direitos. Não tente impor seus padrões nem sua perspectiva aos demais, nem encare a coisa toda como trincheira , de maneira contundente ou imperial. No mais, é aprendermos, todos nós, a respeitar as diferenças, ainda que tenhamos outros fundamentos de vida. Simples assim. Ensinar ás crianças na escola, não a apologia de algo que os pais não partilham e as próprias crianças sequer entendem com profundidade, mas o absolutamente necessário respeito o(a) "coleguinha" que age de maneira diferente e talvez tenha outros gostos que não os seus.
Dito isso, constatemos então, obrigatoriamente, que a questão não está sequer perto de ser resolvida, porque usando desse argumento, entre outros, como pretexto ou base para a ação, o que se vê é uma luta declarada entre facções religiosas: os evangélicos, de uma banda, historicamente muito menos tolerantes nos costumes e na tradição política , e cuja bancada federal cresce cada vez mais, sustentada economicamente de forma notória, como todos sabemos, estão tentando expandir seus domínios para setores onde antes sequer se arriscavam, e para a qual não têm o menor perfil, a par da invasão recente da pasta de direitos humanos, pelo Deputado Feliciano.
Os evangélicos são menos importantes para a noção do pluripartidarismo e a universalidade de idéias? Não . Sua importância é a mesma de qualquer outro agente político, e em setores de políticas econômicas e desenvolvimento têm mesmo se mostrado progressistas e úteis ao avanço do país. Mas sua ganância recente e inédita pelo poder , o apego a uma visão arcaica dos valores morais e a forma de custeio da expansão de seus domínios é anti-ética e execrável. A título de exemplo recente, não há nada de particular ou interessante, a meu ver, no perfil do deputado Feliciano. Que eu saiba, inclusive, neste momento, é menos culpado do que um Renan Calheiros ou um José Dirceu da vida, uma vez que Feliciano sequer tem contra si processos transitados em julgado ou condenações notórias. Feliciano é apenas o representante de uma ordem ultrapassada para lidar com um mundo em constante movimento. É apenas o cara errado, no lugar errado, e as justificativas para sua manutenção vêm de uma espécie de ódio a todos os valores sociais e individuais que esta sociedade até hoje construiu. O problema de Feliciano é justamente este: se ele sair, outros Felicianos entrarão no seu lugar, talvez mais discretos, talvez menos conturbados, mas igualmente representantes de uma ordem retrógrada. De outro lado, a reação à situação, representada pelo próprio movimento (tantas vezes inconsequente e sem liderança clara) de Direitos Humanos, aliado a partidos mais vinculados com valores sociais mais contemporãneos e democráticos, e com razão, indignados pela forma como tem sido conduzida a política para o assunto (como se sabe, o governo Dilma lavou as mãos e "vendeu" o cargo a Feliciano ,por apoios de bancada, etc, etc, coisas lamacentas da política) . Esses defensores da liberdade e da democracia berram e são os que agregam setores progressistas da igreja católica e outras religiões com fundo mais amplo e tradição de maior tolerância. Por trás disso tudo, não está o "Paraíso divino", nem mesmo INRJ, ou qualquer tipo de Deus. Por trás disso estão as questões sociais, humanas e históricas que gritam por sua própria vida. De um lado, o retorno ás trevas, e de outro, a tentativa coletiva de sua superação.
Para quem como eu, é apenas um estudioso da história e observador dos fatos cotidianos, não é nada confortável verificar que muitas guerras sangrentas começaram com idênticos preceitos, e vejo as coisas se acirrando no Brasil.... Espero que a história não se repita, neste caso, e que as luzes possam vencer as trevas, no final.