O perfume de Laura



(texto em livre adaptação do livro"O Perfume", História de um Assassino, de Patrick Süskind)

Ao nascer, o que se vê, o que se ouve primeiro?  Grenouille e o pesadelo de qualquer homem no mundo inteiro. Se a memória tivesse voz, aos berros diria que nada se vê e nada se ouve naqueles segundos, e é mesmo pelo cheiro que nos toca o primeiro sentido do mundo , não importando ter nascido entre finas rendas ou em na lama.
Primeira consciência: acordes e blends, antes de enxergar. O cheiro da mãe, do berço, dos primeiros rústicos brinquedos: leite, a fragrância da vida, alimento. Amêndoa, cedro, limão, jasmim: Respiração: pulmões se abrindo, o sofrido choro. Patchouly, vetyver, sândalo, alecrim. Antes de pensar, antes de andar. Bergamota, gerânios, musgo de carvalho. Antes de ouvir. Almíscar, incenso, thymo, tomilho. Antes mesmo de chorar, e muito antes de falar. Sálvia, âmbar , gengibre, cardamomo.
Café, couro velho, tabaco, cipreste: para cada corpo, um resultado diferente. Chocolate, óleos, essências, fougére: a fixação lânguida lambendo a pele. Entre os seres, o cheiro precede a fala. Cio e sexo, desejo e posse: químicas que se tocam, sem discurso e sem morte. Das memórias primitivas, os aromas surgem primeiro. Flecham direto o passado, naquele instante perdido no tempo, sem nunca errar.Toda essa amálgama de ilimitadas possibilidades e resultados imprevisíveis, mas sempre certeiros em suas marcas indeléveis sobre o corpo. O cheiro identifica, cria, essencializa.
Afinal, um perfume definiria alguém, tornando possível imaginar o terror de passar despercebido, o medo de não ser lembrado, o pânico e a angústia de não ter seu próprio daemon, de ser ninguém, não existir e não deixar sua marca?

 Como na vida, que segue sempre desigual, inexistem fragrâncias humanas idênticas. Do que seria capaz, o ser, para encontrar sua perdida essência? Você, definido por uma fragrância: floral, cítrica, ou herbal? Madeira, incenso ou oriental? Âmbar, almíscar, animal? 

Talvez algo mais complexo, intempestivo como um blend reunindo um pouco de cada tom, formando acordes raros de uma terceira mistura, nunca antes alcançada? Uma vez encontrada , você mataria para preservá-la?
Assassinar para achar sua essência: eis a alma desse facínora, Grenouille a se esconder nas sombras, espreitando em busca das jovens virgens que atendam a seus propósitos; a incansável busca da pura matéria prima para sua obsessão: o ideal feminino, ocidental. Beleza e personalidade andando juntas, liquefeitas, sem contradição. Tentativas vãs, frustração... Eis que surge Laura! O mundo pára enquanto ela passa. Laura é o tempo subjugado em favor da beleza. Seu cheiro ruivo  lembra campo, vento, maçãs e flores. Tardes douradas e lascivas antes do crepúsculo. 

Laura é a fragrância da imortalidade aos dezessete, a eterna juventude que arrebata, contagia e tortura. Grenouille a segue e a observa, na penumbra, extasiado, com admiração e temor. Alcançá-la é ultimar sua missão sobre o tempo, esse inimigo mortal, permitindo-lhe finalmente domá-lo. O tempo submisso, paralisado, como sempre sonhara. 

Concentrar então toda a beleza nesse pequeno frasco , derramando-a sobre sua cabeça, de forma lenta, destilada, e fazer brotar o frescor e seu perfume de Laura, agora ressurgindo líquido como um sentido, um extrato definidor, a final invenção: o supra-sumo da existência humana, capaz de, com uma só gota, prolongar a vida, transmutar o feio em belo, o abominável em idolatrado, e todas as dúvidas em certezas. O mundo finalmente transformado em algo válido pela essência de Laura.
Aspirar e ver o tempo parar... cabeça, coração e fundo... notas soltas e acordes que condensam o ser, que definem o mundo. Leve de asas, voar paisagens . Viagens, a cinco passos do chão. Halo de rosas raras, dia, espectro da noite adentro num fechar de olhos. O espírito, a vontade própria dessa minúscula gota a se evaporar. Moléculas de alquimia complexa abrindo-se ao universo por etapas, fazendo-o gritar. Mistura aromática com o poder de matar dragões, destruir castelos, silenciar canhões. Grenouille e a fragrância do poder: submeter heróis, transformar a vida , mulheres a enlouquecer.
Esse assassino laborioso numa vida cruel, árdua e compulsiva , na ânsia de concluir sua obra definitiva , e agora , quando finalmente a alcança, ele se vê, feliz, sendo devorado pela multidão ensandecida. Ébrios da vontade , devoram-no num êxtase coletivo em plena luz do dia, em busca de sua repartida identidade . Ele finalmente se descobre enquanto essência, para se desvanecer em praça pública, logo em seguida.







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