Uma manhã qualquer
Ouvidos eclipsados
o vento no rosto
segue a moto zunindo
nesta manhã fria de agosto
Campos se abrindo
estrada vazia, cavaleiro e montaria
na trilha lisa e preta,
perfeita
de petróleo seco sobre a via
Ambos numa única alma , ruidosa e azul
sob o céu definitivo de agosto
As essências no ar:
de terra, de barro, de barranco molhado
de grama, de pasto, gado solto no mato
pássaros e cães comportados
lavradores e seus filhos sorrindo
torresmos, polenta na mesa
frango com macarrão
borboletas e aguardente em manhã de domingo
As essências do ar: úmido de florestas
nesta manhã quase infame
café e palhas fermentadas, acre odor misturado
e o perfume suavemente obsceno da flor de macadâmia
Tudo isso entrando pelos olhos, pelo nariz
pelos poros desse elmo de fibra carbono
esta armadura de aço
Dom Quixote andante aventurando-se
num vôo cego pelo espaço
Voando baixo e perdendo
a ilusão do tempo
que deixa de fluir, como água esquecida
numa piscina abandonada
aquece-se sozinha ao sol, mal cuidada
na memória vã dos sentimentos
Impressões gravadas a ferro e fogo
fugazes e fortes, não se tem noção da morte
semelha somente um rio
transbordando e comendo aos poucos suas margens
levando tudo no caminho
e tornando-se outro na viagem
Misturando-se ao ar frio, esse rio, renovando o oxigênio vital
refrescando os pulmões ainda dormentes
livrando-nos dos pensamentos dementes
enquanto queima o nariz com sua pujante realidade
essas divinas flores do campo
neste frio mês de agosto
Mágica sensação de voar
aprender a lidar com os próprios sentimentos
pairar sobre os elementos
estar em sintonia perfeita com eles
nem que seja por um milissegundo
Miguilim parido nesses campos gerais do mundo
mordendo calado a dor de não ser mais criança
e não poder chorar por nada nessa vida, para não parecer fraco
mesmo que às vezes sua alma se ausente por semanas em pranto
juízo excessivo, precoce, e um peso enorme de existir
amanhecendo auroras pelas veredas do mundo
sempre tão deslembrado de si
Pelas estradas e campos gerais do país
em meio a este povo destemido
que inspira tanta coragem e fé
lavrando da terra medida a comida
plantando a esperança que brota alimento
na lida que gera a vida, o sustento
na raiz que torna possível as cidades
nesses braços que não se intimidam: o arado
na força que forja a terra: sementes
no aço que cava o solo, e nem sente
resiste à difícil tarefa , ao fado
Há muito a saber sobre o campo
amanhecendo auroras
pelas vias curvas do mundo
provando a sensualidade dessas curvas
a duzentos por hora, na planície negra, perfeita
contato breve de borracha quente
nesta via reluzente
do óleo de pedra ressecado pelo sol
A visão iluminada e incandescente
da natureza confraternizando nesse campos
numa manhã de domingo inebriante
pra lembrar ao que é humano o privilégio de estar vivo
lembro-me de Rimbaud, de Pessoa,
lembro-me de Rosa, dos Guimarães
lembro-me de Whitman e as Flores da Relva
enquanto mastigo a relva em meus pensamentos
sobre o mundo,
absorvendo em mim uma natureza que quer ser
alheia à minha existência
A constatação de um determinado tipo de humanidade
e a revolução de como isso poderia ser diferente
a natureza como única salvação possível
deixarmos falar as plantas e os seres não imaginários
Hibiscus multipontuais, fragmentários
cores reflexivas e gritantes, como a contradição do viver
tantas flores num arbusto tão pequeno
tantas cores
Um apelo para que sejam vistas, tocadas
pelo vento, pelas abelhas e pelos pássaros
a natureza é sempre sensual e ritual, na maneira
como a flor se mostra, e sagrada
na forma como implora para ser polinizada
mascarando e disfarçando um ciclo poderoso de necessidade
com a aparência de tanta beleza, tanta delicadeza
para alimentar seus verdadeiros propósitos
que não são menores somente por esse motivo
antes, são uma espécie de sabedoria maior
É tanto brilho que quase me cega e chego a ter pena de mim mesmo
pelo fato de estar contemplando tudo isto
e ter nascido humano, a outras lidas destinado
não ter nascido águia, não ter nascido peixe
e portanto, não ter sido convidado