A sétima porta
Meia-noite encobrindo a neblina densa e fria, e Sylvester lambe as patas, afiando suas garras no tapete da sala. Atrás dele, o sofá de couro cinza puído, embaixo do relógio de parede em estilo gótico que soava a última das doze badaladas ecoando pelo salão principal. Quadros dos antigos moradores da casa adornavam a parede lateral que se estendia pelo corredor de teto amarelado com infiltrações úmidas de musgo verde nas quinas.
Desde que momentos antes passara a carruagem pela rua de pedras molhadas de sereno, o silêncio abraçou a imensa casa colonial de dezoito quartos, calçada com assoalho de madeira e sustentada por vigas mestras de seis metros de altura. Outrora aquela casa vivia repleta de crianças, convidados, bebidas exóticas e banquetes variados em razão das recepções acontecidas no salão oval. Agora, uma vez extintas as músicas dos salões, ouvia-se apenas uma coruja do mato piando ao longe, sapos roucos no pântano ao fundo do quintal e o suspiro do vento gelado do mês de julho, assobiando por debaixo das portas de madeira de lei que selavam quartos que há muito não conheciam seus hóspedes.
Elvira, a governanta, guardava cuidadosamente as chaves de cada quarto, e fazia questão de mantê-los sempre fechados, limpos e arrumados. Todos os dias abria uma a uma as dezoito portas e todas as janelas para arejar o ambiente. Também trocava a roupa de cama uma vez por semana, encerava o piso uma vez por mês, e sempre trancava tudo muito bem trancado antes de sair. Entretanto, havia algo estranho naquela manhã. A cama do sétimo quarto tinha os lençóis mexidos e revirados como se alguém tivesse ali dormido a noite inteira. "Impossível!" Pensou.
A criada lembrou-se de que era a única que possuía as chaves dos respectivos quartos, e as mantinha consigo nas suas dependências, no porão da antiga casa, desde que assumira o emprego há quarenta anos. Lembrava-se de que depois do incidente, ninguém mais da família havia retornado para suas instalações. Eles mantinham tudo no lugar, e a pagavam para administrar da mesma forma como antes, mas jamais voltaram lá novamente. Por isso, não havia mais ninguém morando com ela na antiga residência de campo dos Andradas, nos arredores de Porto Alegre. Apenas o frio das longas noites de inverno e as brumas das madrugadas estavam lhe servindo de companhia há um bom tempo.
Súbito, Elvira sentiu um arrepio gélido subir pela espinha quando se lembrou que era justamente no sétimo quarto onde ocorrera a estranha descoberta. Os lençóis remexidos estava justamente no quarto número .... "Não pode ser!"... O sétimo quarto não era dele?... do.... do... Não terminou a frase e desceu apressadamente a escadaria, batendo a porta num estrondo atrás de si. Sylvester, impassível sobre o sofá, apenas estreitou os olhos para realçar suas íris azul-turquesa quando a viu passando de volta do andar de cima, e acompanhou com a cabeça, lentamente, seu movimento em direção ao porão, onde ficavam os aposentos. Rapidamente pegou seu álbum de fotografias, cartas e recortes antigos de jornal. Lá estava toda a história dos Andradas de Porto Alegre, desde sua imigração para o país, no século XVII, a convite do rei de Portugal. Dona Eulália, a bisavó, e suas agulhas de Tricot. Dom Dagoberto Ribeira, os escudos da família pintados ao fundo, e à frente o filho famoso, topete incólume do dignatário de um dos maiores cargos do primeiro reinado, e de ambos os lados da foto familiar espraiava-se toda a fila interminável de sobrinhos, netos, agregados e ele estava lá, é claro. Melchior, o neto Herege. Sua foto com a tez pálida, sorriso sarcástico sob um bigodinho fino à moda francesa e o cabelo muito preto em brilhantina, curto e jogado para trás, como o estilo da época. Tirando a bisneta de D. Eulália, Catharina, que mensalmente enviava-lhe seu pagamento sempre em dia, Elvira hoje não tinha mais contato físico com o restante da família. Lembrava-se da casa sempre cheia, das grandes recepções e dos importantes convidados recebidos com certa frequência na residência de campo. Lembrava-se também dos meninos, cada um mais atentado do que o outro, dos puxões de orelha que tinha certa liberdade em ministrar aos mais rebeldes, e mesmo dos conselhos que chegou a dar muitas vezes às filhas mais ousadas de D. Eulália, na época da adolescência.
Em particular, afligia-lhe a lembrança de Melchior, que não lhe saía da memória. Terrível, o rapaz. Hábil como ninguém nas discussões, arredio como um bicho selvagem, e odiado pelo pai tanto quanto também o odiava, por suas tendências ultra modernas "adquiridas nas cortes européias apologistas da revolução do vinho e dos bordéis", costumava dizer Dom Dagoberto nos dias em que o sangue lhe subia à cabeça. Protegido pela mãe e atacado pelo pai, Melchior transitava entre esconderijos possíveis dentro de sua própria vida. Normalmente, depois de sua última briga, irreconciliável com o patriarca, nunca se sabia qual o seu paradeiro. Apenas enviavam-lhe dinheiro periodicamente, por ordem de D. Dagoberto, como a lhe dizer, sem palavras: "... prefiro que fique longe".
Melchior era uma força da natureza, e sua terrível energia só era aplacada, desde criança, na presença de Maria Alva. No meio da fúria inconteste, da energia primal do rapaz, que a cada dia se aumentava, apenas ela o sossegava. Diante dela, apenas, alguma coisa se sucedia como se uma mão misteriosa viesse acolhê-lo em suas dores existenciais, confortá-lo por saber que não estava tão sozinho neste grande mundo e dizer-lhe apenas com os olhos, sem palavras, o quanto de bem-querer e pertencimento havia entre eles. Filha da criada de comadre Juliana, costureira das grandes famílias e preferida de D. Eulália, Maria Alva e Melchior tinham exatamente um ano de diferença de idade, nascidos na mesma data de 25 de julho, a diferença a maior em favor do menino. Desde pequenos se entenderam, como poucos. Maria Alva era seu destino. Era para ela, um lugar muito mais do que uma pessoa, que ele corria em disparada, quando o mundo o comprimia contra seus muros frios de aço. Protegida pela madrinha Eulália, e vigiada a olhos curtos pelo pai de Melchior, essa "menina de arrelia da pá virada", como ele a chamava por não se comportar como o esperado, tinha sempre aquele ar moleque de menino e uma alma espetada do cão. Não gostava de receber ordens e geralmente andava mais sozinha do que no bando das outras garotas da sua idade. Andava a cavalo melhor que os meninos, gostava de ver os vaqueiros na lida e acompanhar as turmas na moenda de cana, em período de safra. Só tinha uma diferença que sobrepujava os ares de menino-moleque indomável que todos notavam por onde andava: a pele muito clara, num rosto de olhos muito negros e o nariz fino que lembravam muito os traços estéticos das melhores castas européias e faziam duvidar por instantes da total integridade da relação conjugal dos seus pais, pela falta de semelhança notória. Seus cabelos, longos e emaranhados pairavam no vento quando montava, e aos treze anos, sua beleza era notável. Maria Alva gostava dos silêncios profundos dos olhos de Melchior, e das longas tardes tardes sob os pés de jambo no alto do pasto da pedreira. Melchior apaixonara-se antes de se entender gente, pelo perfume de Maria Alva. Sua presença o hipnotizava a ponto de se comunicarem sem precisar se falar.
Melchior era uma força da natureza, e sua terrível energia só era aplacada, desde criança, na presença de Maria Alva. No meio da fúria inconteste, da energia primal do rapaz, que a cada dia se aumentava, apenas ela o sossegava. Diante dela, apenas, alguma coisa se sucedia como se uma mão misteriosa viesse acolhê-lo em suas dores existenciais, confortá-lo por saber que não estava tão sozinho neste grande mundo e dizer-lhe apenas com os olhos, sem palavras, o quanto de bem-querer e pertencimento havia entre eles. Filha da criada de comadre Juliana, costureira das grandes famílias e preferida de D. Eulália, Maria Alva e Melchior tinham exatamente um ano de diferença de idade, nascidos na mesma data de 25 de julho, a diferença a maior em favor do menino. Desde pequenos se entenderam, como poucos. Maria Alva era seu destino. Era para ela, um lugar muito mais do que uma pessoa, que ele corria em disparada, quando o mundo o comprimia contra seus muros frios de aço. Protegida pela madrinha Eulália, e vigiada a olhos curtos pelo pai de Melchior, essa "menina de arrelia da pá virada", como ele a chamava por não se comportar como o esperado, tinha sempre aquele ar moleque de menino e uma alma espetada do cão. Não gostava de receber ordens e geralmente andava mais sozinha do que no bando das outras garotas da sua idade. Andava a cavalo melhor que os meninos, gostava de ver os vaqueiros na lida e acompanhar as turmas na moenda de cana, em período de safra. Só tinha uma diferença que sobrepujava os ares de menino-moleque indomável que todos notavam por onde andava: a pele muito clara, num rosto de olhos muito negros e o nariz fino que lembravam muito os traços estéticos das melhores castas européias e faziam duvidar por instantes da total integridade da relação conjugal dos seus pais, pela falta de semelhança notória. Seus cabelos, longos e emaranhados pairavam no vento quando montava, e aos treze anos, sua beleza era notável. Maria Alva gostava dos silêncios profundos dos olhos de Melchior, e das longas tardes tardes sob os pés de jambo no alto do pasto da pedreira. Melchior apaixonara-se antes de se entender gente, pelo perfume de Maria Alva. Sua presença o hipnotizava a ponto de se comunicarem sem precisar se falar.
Lembrando das histórias , a governanta adormeceu com o álbum de família nas mãos. Noite mal-dormida, sonhos ruins com vozes altas e muita névoa, saltos andando pelo soalho dos quartos no andar de cima e a companhia do olhar sempre silencioso de Sylvester, que já tinha se dirigido ao quarto da sua dona, em busca do seu prato de leite matinal. Iniciada a rotina do dia, Elvira se surpreende ao abrir novamente a porta do quarto número sete e dar de cara com os lençóis revirados e os travesseiros amassados, jogados sobre a cama. "Deus meu! Preciso mandar benzer essa casa"! Encomendou as orações ao padre, ao pastor e à benzedeira que estiveram no local ao longo daquela semana com sua água benta, canto de oração e colar de contas. Nada! Todo santo dia os lençóis amanheciam revirados.
Elvira já nem dormia direito. Lembrava-se que o quarto de número sete fora utilizado por Melchior durante toda a adolescência, e ele ainda o utilizava na época em que partira para o mundo dos mortos. Ou pelo menos era assim que todos se acostumaram a pensar. Corpo mesmo, ninguém nunca viu...!!Elvira se lembrava bem do dia. Jamais fora o mesmo depois da morte de Maria Alva. Algo se partira dentro dele, para sempre, e dentre todas as dores e ódios possíveis de se sentir depois que se perde alguém amado, era no pai que ele centrara todo o fogo do seu coração revolto depois do acontecido, uma vez que o velho Andrada por questão de negócios e estratégias familiares jamais consentira com a formalização daquele namoro inusitado e de mal acabamento para o futuro do clã. Certamente, como primogênito e herdeiro de tamanha fortuna, o casamento com a filha mais nova do vizinho Coronel Flávio de Bragança seria muito melhor pedida, e não cabia de forma alguma a Melchior interferir nessa questão. Enquanto se discutia e se pelejava nessas questões, Maria Alva foi encontrada morta debaixo do moinho, perto do riacho, com sinais de estupro. Tinha apenas dezessete anos de idade, quando morreu. Nunca se soube quem a assassinou.
O destino é para aquilo que se compõe. Desalenta, desatina, destrói com o ímpeto de um vulcão as meras promessas e intenções humanas sobre a Terra, para depois recompor, num quebra-cabeças bizarro , disforme e da cor do sangue, os pedaços desconexos que a mera vaidade humana um dia pensou possuir. Contra todas as recomendações, com febre e gritando na chuva o nome de Maria Alva, a última imagem de Melchior foi quando ele saíra correndo a cavalo, equipado em botas e trajes de montaria, numa tarde de trovões e raios. Gaopava Negromonte, o cavalo mais bravo do Haras da família. Somente ele conseguia domar o bicho preto e brilhoso como o cão, mas que para Melchior se mostrava a mais dócil das criaturas. Diziam, à boca-miúda, que em diversas ocasiões já o tinham visto cochichando no ouvido do animal. Ninguém jamais o vira depois daquela tarde, apesar de diversas buscas pelos grotões mais distantes da fazenda. Sondaram riachos, cachoeiras, beiradas de mata, mata adentro, e toda a vizinhança, e nada. Nem rastro de poeira. Sem corpo, sem sangue, sem marcas no chão. Homem e cavalo negro sumiram assim, do nada, sem deixar vestígios. Alguém dissesse que era obra do demo, pelo fato de Melchior ser declaradamente Ateu, para desgosto de D. Eulália e vergonha do pai, D. Dagoberto, que sabia da necessidade de ligação com a Igreja para a ascensão política do filho, planos que também vinha fazendo para depois do casamento, desde que Melchior ainda era um garoto.
Elvira já nem dormia direito. Lembrava-se que o quarto de número sete fora utilizado por Melchior durante toda a adolescência, e ele ainda o utilizava na época em que partira para o mundo dos mortos. Ou pelo menos era assim que todos se acostumaram a pensar. Corpo mesmo, ninguém nunca viu...!!Elvira se lembrava bem do dia. Jamais fora o mesmo depois da morte de Maria Alva. Algo se partira dentro dele, para sempre, e dentre todas as dores e ódios possíveis de se sentir depois que se perde alguém amado, era no pai que ele centrara todo o fogo do seu coração revolto depois do acontecido, uma vez que o velho Andrada por questão de negócios e estratégias familiares jamais consentira com a formalização daquele namoro inusitado e de mal acabamento para o futuro do clã. Certamente, como primogênito e herdeiro de tamanha fortuna, o casamento com a filha mais nova do vizinho Coronel Flávio de Bragança seria muito melhor pedida, e não cabia de forma alguma a Melchior interferir nessa questão. Enquanto se discutia e se pelejava nessas questões, Maria Alva foi encontrada morta debaixo do moinho, perto do riacho, com sinais de estupro. Tinha apenas dezessete anos de idade, quando morreu. Nunca se soube quem a assassinou.
O destino é para aquilo que se compõe. Desalenta, desatina, destrói com o ímpeto de um vulcão as meras promessas e intenções humanas sobre a Terra, para depois recompor, num quebra-cabeças bizarro , disforme e da cor do sangue, os pedaços desconexos que a mera vaidade humana um dia pensou possuir. Contra todas as recomendações, com febre e gritando na chuva o nome de Maria Alva, a última imagem de Melchior foi quando ele saíra correndo a cavalo, equipado em botas e trajes de montaria, numa tarde de trovões e raios. Gaopava Negromonte, o cavalo mais bravo do Haras da família. Somente ele conseguia domar o bicho preto e brilhoso como o cão, mas que para Melchior se mostrava a mais dócil das criaturas. Diziam, à boca-miúda, que em diversas ocasiões já o tinham visto cochichando no ouvido do animal. Ninguém jamais o vira depois daquela tarde, apesar de diversas buscas pelos grotões mais distantes da fazenda. Sondaram riachos, cachoeiras, beiradas de mata, mata adentro, e toda a vizinhança, e nada. Nem rastro de poeira. Sem corpo, sem sangue, sem marcas no chão. Homem e cavalo negro sumiram assim, do nada, sem deixar vestígios. Alguém dissesse que era obra do demo, pelo fato de Melchior ser declaradamente Ateu, para desgosto de D. Eulália e vergonha do pai, D. Dagoberto, que sabia da necessidade de ligação com a Igreja para a ascensão política do filho, planos que também vinha fazendo para depois do casamento, desde que Melchior ainda era um garoto.
Cismada com toda a situação, e munida da coragem pouca que ainda lhe restava, Elvira quis tirar, `a prova de sua fé, que aquilo não podia ter sentido. Colocou-se então de cadeirão de balanço, agasalho reforçado de cobertas, vela gorda com lamparina para a escuridão, e par de agulhas de tricô à porta do corredor que dava para a ala dos quartos de dormir. Dali tinha visão privilegiada da única entrada possível para o quarto suspeito. Madrugada afora, tocaia armada, levou um grande susto quando despertou de repente e viu pela meia-sombra entre luzes de lamparina, o gato Sylvester chegar-se, em pose de caçador até então nunca vista durante o dia, espreitando uma ratazana de bom porte que acabara de se inserir no quarto suspeito, por uma fresta lateral à porta cinza, sorrateira como tão bem sabem fazer os ratos. O gato armou-se à entrada e vazou junto para o interior da câmara, entrando em velocidade para dentro do cômodo. "Desgramado!"....Levantando-se com a pressa possível em seus sessenta e nove anos de chinelas, Elvira corre atrás do inusitado para pegar no flagra a cena do gato gordo Sylvester saboreando um rato em seus dentes, bem em cima da cama de Melchior, sobre os lençóis recém-lavados. Ao fundo, a janela semi-aberta batendo de tempos em tempos compassadamente na longarina de madeira escura por causa do vento. "Ah, então tá explicado o mistério !".
"Passa aqui, coisa ruim!". Disse Elvira a Sylvester, que fugiu com a presa ainda entre os dentes. Depois dos susto, ela sentia-se um misto entre surpresa e ao mesmo tempo aliviada com a inusitada descoberta, tocando o gato com a vassoura numa das mãos e o chinelo na outra. Trancou novamente o quarto, fechou a janela e vedou a passagem do rato com um bom pedaço de madeira, depois de trocar os lençóis e arrumar novamente a cama. Desceu calmamente as escadas e foi acomodar-se no seu sótão, pegando no sono logo em seguida.
Nesse instante, uma vez instaurado o silêncio do quarto número sete, Melchior saiu do vestíbulo com suas botas de cano alto e suas roupas de montaria e, abrindo novamente a janela, contemplou o distante horizonte noturno da noite de julho, observando Negromonte ao longe, relinchando alto ao sabor do frio vento noturno. A seu lado, sob o pé de jambo da colina, Maria Alva sorria e soltava seus cabelos, cavalgando Negromonte e convidando-o a sair para a noite de lua cheia do dia 25 de julho.