Ela

A vida tropeçou em mim quando a conheci.
Minhas noites perdidas, especulando
por ócio ou ofício
os destinos inglórios do mundo

Minha vida tão dividida
afastando-me saudavelmente  de mim mesmo por um tempo
finalmente ganhava um sentido inteiro ao seu lado
quando sua leveza e sua vontade de viver me invadiam
no final de cada tarde
pela  felicidade incontida de contemplar esse filhotinho de pássaro
recém-saído do ninho, a esticar suas asas ainda desajeitadas
sobre minha história

Ela veio assim, meio sem aviso
para perturbar definitivamente a ordem pré-estabelecida das coisas
_ordem errada, é claro, e infeliz_ que eu estabelecera com as coisas
e veio plantando em mim o germe da rebeldia
dentro daquilo  que eu ainda chamava dia.
Criatura da noite, eu percebi então que ainda não conhecia o dia.
E como todo Ogro, habitante das cavernas, demorado em seus sentimentos
apenas aceitei que a amava quando um dia a vi chorando.

Essa criatura sensual e louca que chegou virando tudo do avesso.
Meu pequeno mundo de outrora desabando nos castelos suas últimas arestas
o prazer agora reinando livre, como o melhor momento de ser humano
o seu corpo me inundando como a onda  boa que mora num abraço
dissolvendo-se e esvaindo-se como areia branca nos meus braços
para depois retornar  à construção do seu próprio mar

Sua pele macia,  seus longos cabelos negros sobre meu rosto
curvas e movimentos moldados por Deus a meu gosto
sem dúvida um Deus artista, num momento de emoção
talhando essa escultura renascentista
para minha egoísta contemplação
_era possível pegar nas mãos a felicidade? apalpá-la?
Sonhava ou vivia?_Na verdade, eu não sabia, mas apertava feliz seus seios rosados
com as palmas das minhas mãos
e sentia  o desespero em meu peito existencialista
um egoísta a suspeitar
de que o mundo nunca fosse real se fosse bom

Mesmo quando tornado óbvio a todo instante
o chamado da verdadeira vida
socando  meu rosto o tempo inteiro
para me provar, para me acordar pro mundo
_tirar-me uma vez mais do meu próprio e encardido mundo_
essa vida a se fazer benevolente por pura sorte
lançada sem aviso sobre meu destino imerecido
um destino aleatório, cético e sempre incerto
mudado agora na certeza de que tudo acabaria bem
se ela  estivesse por perto

No início dos tempos, só me descobri por inteiro quando a tive em minhas mãos
um viciado em busca da substância para manter viva sua essência
seu sopro de vida alimentando-me na respiração e na euforia
e para cada dia uma  nova vida, maior e mais completa
em suas qualidades, imperfeições e imanência
afastando-me cada vez mais, um pouco por vez
do que sobrou da minha  infeliz inocência