As escadarias da Cidade Alta
Sob as escadarias da Cidade Alta
espreitam olhos acuados
o momento em que um sol pontual
se precipitará de vez no poente
então sedentas criaturas
aos poucos ganharão as ruas
saindo de suas tocas invisíveis
e desfilando no sereno sua fissura
A visão tremida dos passantes
depurando em vão a amargura
fumaça etérea, cachimbos vorazes
cooptando as almas fugazesdepurando em vão a amargura
fumaça etérea, cachimbos vorazes
alimentando as promessas de cura
Grunhidos simulam conversas
aros de lata queimam no abismo
o espírito embarca de boa
o vapor entornando seus fluidos
alma e corpo caminham insones
sobre a linha da vida divididos
Kamikazes por mais um trago
a substância inebriando os sentidos
pela moeda que um dia foi corpo
pela moeda que um dia já foi carro
hoje apenas um espírito roto
cuspido no chão como escarro
Corpo moldado pela violência
convulsando-se no limiar da noite
para justificar-se a si mesmo sua existência
onde termina a vida e aonde começa o açoite
Incompreensão e despreparo do mundo-ao-redor
novamente eclipsando a autoridade
opressão que cala, omissão que arde
apertando-se ambas na desmedida ansiedade
não existe sede, não existe fome
para um nome que já foi felicidade
não existe norte nem existe amor
quando o que restou do humano se quebra
descontextualizando toda dor
O corpo escraviza-se e encolhe-se novamente
como a anônima fumaça que aspira ser nada
segue a vida na larga rua caminhando
enquanto outra espécie surge bem ali
sob as escadas
Puro afeto tornado desalento
cortando na carne o instinto ancestral
broto embotado nascido para dentro
arrancado da vida o seu pulso animal
o sopro necessário para mais um dia
paraíso na Terra, inconsciência do mal
espargindo-se o mundo em plena agonia
Prazer fugaz de gozar o céu
no exato instante em que o sonho se abria
aquecida a pedra, os monstros se libertam
absorvendo portanto a derradeira energia
os vapores dominando os desejos
cego, surdo, absorto,
ele sofre sempre sozinho
em sua ausente companhia
Hoje o sol não se pôs
e a tarde não se debruçou no horizonte
então ele sobe no vão central da ponte
e assumindo todas as estatísticas e probabilidades
navega no vento contra um mar de gravidade
Vertical a mil pés abaixo
um salto em formato cruz
braços abertos, peito aberto
como um estranho sol renegando sua luz
enquanto desce, contempla a cidade
num último exercício de narcisismo
as torres, o palácio, as escadarias da Cidade Alta
precipitando-se todos no seu próprio abismo
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