Existencialismo, psicodelismo, critica social e ousadia estética: A História de uma obra-prima. Pink Floyd The Wall 35 anos
Quando se fala de arte, independentemente do terreno de sua expressão, seja no mundo figurativo da escultura, da pintura, ou não figurativo da dança, da escrita ou música, é muito fácil se enrolar ao tentar definir conceitualmente aquilo que é bom ou ruim, o que é certo, errado ou onde estão, ou mesmo se devem existir os tais limites para a criação. Perde-se muito ao tentar racionalizar um discurso que pertence a outro gênero de conhecimento e experiência humanas, porque geralmente essa fala explicativa opera um reducionismo ao usar uma linguagem estranha para "dizer" e tornar palatável aquilo que foi criado dentro de um outro modo de experimentar o mundo.
Na falta de critérios absolutos para definição, uma vez que a arte não se curva à mera análise cartesiana da racionalidade, ao mundo hermético dos conceitos que compõem a Filosofia ou mesmo ao quadro de funcionalidades e relações típicas do pensamento científico, o que acaba acontecendo é a imposição de verdades como se tratasse de uma ditadura, com aquele que tem "mais poder" definindo o gosto, ou ensejando a velha e conhecida imobilidade criadora pela adesão ao discurso genérico da "desconstrução" de todas as estéticas. Isso acaba gerando, mesmo de forma não intencional, um atoleiro de idéias conflitantes, sem direção.
Aposta-se em esteticismos e expertises, muitas vezes apenas mercadológicas, para ocupar o lugar e dizer a verdade artística, quando o eixo real de sua produção e expressão gira em torno de outros universos possíveis, e muito mais amplos. Digam o que disserem os meios de divulgação, comercialização e uma certa política do gosto comum pela apreciação dos objetos, a arte na visão do verdadeiro artista será sempre abraçar-se com a solidão.
Aposta-se em esteticismos e expertises, muitas vezes apenas mercadológicas, para ocupar o lugar e dizer a verdade artística, quando o eixo real de sua produção e expressão gira em torno de outros universos possíveis, e muito mais amplos. Digam o que disserem os meios de divulgação, comercialização e uma certa política do gosto comum pela apreciação dos objetos, a arte na visão do verdadeiro artista será sempre abraçar-se com a solidão.
Remetendo às origens, arte é sobretudo sensação, e isso sugere outro caminho diverso da pulsão intelectual para a sua experiência. Tanto do ponto de vista de quem a faz, quanto daquele que a percebe, não necessariamente sendo artista o que "faz" o objeto e não necessariamente sendo passivo o observador que o "capta" ou o "interpreta", uma vez que a interpretação recria na mente e no espírito do espectador todo um mundo particular pleno de sentido, renovando sua capacidade de rearticular e atribuir significado ao que é visto, o que por si só também o caracterizaria como um tipo de artista, em potencial. Ver também é criar, como qualquer criança afirmaria sem medo.
Entretanto, deixando de lado os caminhos espinhosos dos conceitos, uma coisa parece sempre persistir quando a idéia do clássico vem à mente, e uma certa sensação da universalidade de uma obra ou parte dela parece se impor sem muito esforço: uma impressão mais simples, e intuitiva, até: A arte, nesse novo olhar, é o que perdura, independente do contexto. O que faz com que milhões de pessoas, independentemente de sua origem, língua, ou formação cultural tantas vezes se coloquem em atitude contemplativa e prazerosa em face de um som, um borrão de tinta colorida rico em formatos inusitados, um movimento de dança ou um texto de cuja autoria jamais ouviu falar mas cuja história ou poesia o remete a alguma significação ou enche sua alma de alegria, uma tristeza pensativa, ou mesmo um ímpeto de revolta em face de uma situação até então não percebida?
O objeto de arte reluz quando transcende seu fazer concreto, quando ultrapassa o resultado "obra", aquilo que se pode ver, tocar, ouvir, e que é efeito direto das mãos de seu criador, e daí se coloca numa segunda categoria, agora mais ampla, talvez universal, tornando-se em parte abstrata e permitindo diversas apreensões por inúmeros espectadores-criadores mundo afora. Sua leitura e eternas releituras, feitas anos, décadas ou séculos após sua vinda ao mundo, por milhares de pessoas, sempre permite ressignificações que darão novo sentido à obra, ao indivíduo ou ao grupo que contempla o seu objeto, fazendo com que sua vida, agora tornada contemporânea no instante exato em que a aprecia, se torne mais rica e autoexplicativ. A arte, por outro lado, também pode problematizar o contexto vivido, trazendo não necessariamente respostas, mas novas dificuldades que serão importantes a partir do momento em que são percebidas. E o mais instigante dessa nova abordagem é que não há um final. Os significados são infinitos.
O objeto de arte reluz quando transcende seu fazer concreto, quando ultrapassa o resultado "obra", aquilo que se pode ver, tocar, ouvir, e que é efeito direto das mãos de seu criador, e daí se coloca numa segunda categoria, agora mais ampla, talvez universal, tornando-se em parte abstrata e permitindo diversas apreensões por inúmeros espectadores-criadores mundo afora. Sua leitura e eternas releituras, feitas anos, décadas ou séculos após sua vinda ao mundo, por milhares de pessoas, sempre permite ressignificações que darão novo sentido à obra, ao indivíduo ou ao grupo que contempla o seu objeto, fazendo com que sua vida, agora tornada contemporânea no instante exato em que a aprecia, se torne mais rica e autoexplicativ. A arte, por outro lado, também pode problematizar o contexto vivido, trazendo não necessariamente respostas, mas novas dificuldades que serão importantes a partir do momento em que são percebidas. E o mais instigante dessa nova abordagem é que não há um final. Os significados são infinitos.
Dito isso, mergulho logo no tema deste pequeno ensaio: A escuta ativa de uma grande obra de arte da música e poesia do nosso tempo. A análise do álbum Pink Floyd The Wall, que agora completa 35 anos do seu lançamento. Este não foi um album musical qualquer. Sua atualidade, a inexauribilidade dos temas e questões colocados há quase quatro décadas atrás, sua pertinência com o mundo convulsivo e vertiginoso que a cada dia nos bombardeia com tantas informações, sons, imagens, palavras. Não obstante nos dias de hoje, o fato de completar quase quatro décadas pudesse tachar de "inatual" ou "ultrapassada" quase todo tipo de informação numa sociedade regida pelos bytes, sua atualidade, sua universalidade, as vicissitudes expostas através de um personagem dramático que vive em sua própria pele muitas das questões a que somos submetidos todos os dias, pelo planeta afora, rompe a barreira do tempo para revivenciar e permitir novos significados, retomando o discurso inadiável do indivíduo em conflito com a sociedade da informação. Situações existenciais vivenciadas no amor, na guerra, no cotidiano mecânico do trabalho e no caos barulhento da vida urbana. Relações entre pais e filhos, entre professores e alunos, entre polícia e prisão, entre bem-estar artificial e controle da mente dos cidadãos, dentre tantas outras. Mais do que o grupo social, tão esgotado na ciência política e humanidades, em geral, na tarefa ingrata de se tentar diagnosticar e criar um discurso válido, a abordagem do autor pretende explorar o indivíduo que nasce dentro desses muros. Não adianta, segundo a perspectiva de seu mentor, imaginar grupos hipotéticos plenos de inteligência, capacidade de se auto-questionar, vontade de mudança e coragem para criar novos valores. Se isso existe, certamente está na esfera do individual, e nunca no meio de uma coletividade alienada.
No particular, quando me refiro à obra "Pink Floyd The Wall", estou me restringindo apenas ao album musical, e não menciono de propósito o filme produzido com o mesmo tema, que apesar de ser bem interessante, conduzido por um diretor talentoso, tem intepretações confirmadamente divergentes da intenção original do próprio mentor da banda, o baixista Roger Waters, que acabaram turvando e até diminuindo um pouco a grandiosidade do trabalho musical em sua ousada proposta estética, assim como a qualidade da poesia das músicas em sua maioria composta pela fantástica dupla Gilmour/Waters. O filme tem mais relação com a maneira como o diretor ou os produtores vêem o mundo, do que propriamente seu principal interlocutor, o baixista e maior letrista da banda.
No particular, quando me refiro à obra "Pink Floyd The Wall", estou me restringindo apenas ao album musical, e não menciono de propósito o filme produzido com o mesmo tema, que apesar de ser bem interessante, conduzido por um diretor talentoso, tem intepretações confirmadamente divergentes da intenção original do próprio mentor da banda, o baixista Roger Waters, que acabaram turvando e até diminuindo um pouco a grandiosidade do trabalho musical em sua ousada proposta estética, assim como a qualidade da poesia das músicas em sua maioria composta pela fantástica dupla Gilmour/Waters. O filme tem mais relação com a maneira como o diretor ou os produtores vêem o mundo, do que propriamente seu principal interlocutor, o baixista e maior letrista da banda.
O tema "The Wall" ( O Muro) , escolhido por Waters, um angustiado artista criador cuja fama e talento já são há muito reconhecidos, é influência direta do existencialismo em suas vertentes mais diretas, seja de forma precoce, em Nietzsche, ou em Kierkegaard, ou de forma mais amadurecida em Sartre ou Heidegger. Talvez com tributo maior pago a J. Paul Sartre, filósofo de grande influência nos meios artísticos, pela abordagem típica do mundo pós-guerra e pela tentativa de resgate do indivíduo perplexo em face da ininterrupta convulsão do mundo moderno. Um mundo que tem a contínua tendência a sufocar, submeter e de certa forma castrar as liberdades individuais em favor de projetos megalômanos de Estado, não importando muito se estamos falando de um Estado totalitário de esquerda ou de direita. Como muito bem alerta Nietzsche, em vários pontos de sua grandiosa obra, basta existir Estado para as liberdades individuais sofrerem seu primeiro corte na carne. Não por acaso, Sartre também possui um romance homônimo, escrito às vésperas da segunda grande guerra, onde evidencia a sua legítima preocupação pela situação angustiante dos sujeitos em um mundo que, apesar de conviver com o grande progresso das ciências e das técnicas de produção, de modo geral, e uma promessa embutida da civilização em "melhorar" a vida humana, ainda não conseguiu atingir a efetividade desse sonho ou mesmo um ideal de como atingir o melhor convívio na relação entre povos, entre nações e uma harmonia produtiva entre indivíduos. O desenrolar do maior conflito já vivido pela humanidade, sua excessiva crueldade, as políticas genocidas e as políticas de submissão dos indivíduos aos rigores de novas ideologias transformaram Sartre num grande profeta contemporâneo, ele que pessoalmente ainda esteve envolvido no conflito, atuando em favor da resistência francesa contra os famigerados nazistas.
De todo modo, Waters não é bem um "Sartreano" escolástico, pois assumindo aquilo que o existencialismo tem de melhor, que é contraditar todo tipo de dogma coletivo em prol das verdades individuais, ele também cria sua própria maneira de interpretar o mundo, misturando sua versão da história à fundamentação existencialista, mas é inegável a grande e benéfica influência desse pensamento como um libertador do artista e como discurso capaz de recolocar o sujeito em situação de um conflito consciente com um mundo estabelecido de uma forma na qual ele próprio se recusa a fazer parte. Está dado o conflito, portanto: ou o sujeito se contrapõe à força motriz produtora desse tipo de alienação que priva o sujeito de suas melhores forças e escala os muros que estão ao seu redor, ou será aniquilado por esse padrão, tornando-se uma pessoa isolada e fragilizada em suas verdadeiras aspirações humanas, transformando-se em consequência em massa de manobra ou aniquilando sua própria vida por desgosto, na hipótese de perceber que existe o problema mas não consegue ser mais forte do que ele , encontrando uma solução para o conflito.
O muro, portanto, é metáfora de amplas possibilidades de interpretação, mas a linha abordada por Waters no album The Wall permeia sempre a dicotomia entre a imagem de "muros externos", construídos pelo ser social, pelo poder do Estado, reflexo da necessidade de controle da máquina sobre os grupos, e aqueles "muros internos", construídos pelos próprios indivíduos em sua trajetória pelo mundo, como defesas a situações às quais foram expostos. Ambos são importantes e serão constantemente referenciados dentro da obra, mas provavelmente terão maior destaque os muros subjetivos que bloqueiam afetos, impedem o real contato entre humanos e faz com o que o sujeito acabe afundando em seu próprio narcisismo ou numa angústia niilista pela impossibilidade de se ver afetivamente ligado ao outro. A problematização do outro como algo de difícil acesso (mas não impossível), quer seja no amor, na lida cotidiana ou no pensamento otimista acerca da humanidade será uma tônica do álbum, em diversas faixas, com entonações variadas.
De todo modo, Waters não é bem um "Sartreano" escolástico, pois assumindo aquilo que o existencialismo tem de melhor, que é contraditar todo tipo de dogma coletivo em prol das verdades individuais, ele também cria sua própria maneira de interpretar o mundo, misturando sua versão da história à fundamentação existencialista, mas é inegável a grande e benéfica influência desse pensamento como um libertador do artista e como discurso capaz de recolocar o sujeito em situação de um conflito consciente com um mundo estabelecido de uma forma na qual ele próprio se recusa a fazer parte. Está dado o conflito, portanto: ou o sujeito se contrapõe à força motriz produtora desse tipo de alienação que priva o sujeito de suas melhores forças e escala os muros que estão ao seu redor, ou será aniquilado por esse padrão, tornando-se uma pessoa isolada e fragilizada em suas verdadeiras aspirações humanas, transformando-se em consequência em massa de manobra ou aniquilando sua própria vida por desgosto, na hipótese de perceber que existe o problema mas não consegue ser mais forte do que ele , encontrando uma solução para o conflito.
O muro, portanto, é metáfora de amplas possibilidades de interpretação, mas a linha abordada por Waters no album The Wall permeia sempre a dicotomia entre a imagem de "muros externos", construídos pelo ser social, pelo poder do Estado, reflexo da necessidade de controle da máquina sobre os grupos, e aqueles "muros internos", construídos pelos próprios indivíduos em sua trajetória pelo mundo, como defesas a situações às quais foram expostos. Ambos são importantes e serão constantemente referenciados dentro da obra, mas provavelmente terão maior destaque os muros subjetivos que bloqueiam afetos, impedem o real contato entre humanos e faz com o que o sujeito acabe afundando em seu próprio narcisismo ou numa angústia niilista pela impossibilidade de se ver afetivamente ligado ao outro. A problematização do outro como algo de difícil acesso (mas não impossível), quer seja no amor, na lida cotidiana ou no pensamento otimista acerca da humanidade será uma tônica do álbum, em diversas faixas, com entonações variadas.
Quanto à música, o album é conduzido de forma magistral, e apresenta um nível inédito de perfeição das gravações e coabitação de diversos estilos diferentes para a época, associando rock, clássico, blues e belas passagens acústicas, tendo Waters como grande letrista e mentor, associado ao talento musical inigualável do guitarrista David Gilmour, e tudo isso muito bem regido pelo maestro preferido das estrelas do rock, o lendário Michael Kamen, que possui muitos méritos nas inúmeras orquestrações que acompanham várias músicas do álbum, algumas no formato tradicional rock band (Young Lust, Hey You, One of my turns), outros na linha da Opera-rock (The Trial, In the flesh?), e algumas de abordagem perfeitamente clássicas (Vera, Nobody Home, The Thin Ice, Empty Spaces), com orquestração de câmara, além de corais e presença de diversas passagens com instrumentos clássicos como violinos, cielos e tímpanos.
As canções que compõem o álbum, todas de grande beleza poética (Waters é considerado um dos melhores letristas do rock) revelam a história de um controvertido personagem, astro do mundo musical e do showbizz, Mr. Pink, alter ego de Roger Waters, mas que em termos universais pode significar qualquer pessoa definitivamente enrascada nas agruras da vida moderna, com problemas aparentemente insolúveis na órbita do cotidiano, que sempre apresenta natureza opressiva do ponto de vista da coletividade sobre o indivíduo. A pergunta subliminar que parece permear toda a obra é: _Para a constituição da civilização e de toda ordem social, é bastante compreensível que parte das liberdades tenha que ser ceifada em prol do organismo coletivo, sob pena de não existir vida em grupo. Entretanto, em que momento o Estado, criado de forma orgânica e brutal nos estados primitivos, mas reelaborado com tanto rigor nas escolas clássicas do pensamento, Estado que fora constituído inicialmente para ser apenas o gestor de uma coletividade composta por indivíduos plenos e singulares, e que de repente passa ao papel de usurpador, aumentando seus próprios poderes e áreas de interferência para além daqueles inicialmente previstos, e não apenas retirando parte das liberdades em prol de um projeto comum, que poderia beneficiar à grande maioria com reais conquistas, mas em vez disso, criando e mantendo a maioria alienada apenas como instrumento de manobra para suas próprias finalidades escusas (guerras,fábrica,escolas onde não se aprende nada de real valor, instituições religiosas alienantes, amor vazio à pátria) e massacrando assim as possibilidades ilimitadas do indivíduo para perpetuar sua legitimação apenas institucional e privar esses mesmos indivíduos de uma vida mais plena_?.
A constatação de que isso existe é dolorosa, e traz marcas para quem a percebeu: "I have seen the writing on the wall", diz o personagem Pink em another Brick the Wall III, ao percebe que na realidade "não precisa" daquilo que o "stablishment" criou para sua pacificação, seu conforto: afetos de encomenda, drogas calmantes, leis construídas para impedir as reais conquistas individuais. A amarga consciência repentina sobre um cotidiano sobre o qual adquiriu nova consciência a partir de algum fato ou situação dramáticos incidindo sobre sua vida. A partir desse momento crucial, o sujeito se desvencilha do calmo conforto para enfrentar o monstro.
Pink é um pop star deprimido, cansado de sua rotina exaustiva e da desumana exploração a que é submetido pela máquina de moer carne do showbiz, e depois de se tornar rico e famoso, não encontra mais forças para criar, ou mesmo para ter um dia a dia feliz ou produtivo. O esquema geral de shows e mais shows, a falta de tempo para sua própria vida, seus afetos, sua arte, a falta de oportunidade de se encontrar em situações que permitam um enriquecimento ou reconhecimento de si próprio no que faz, o aliena cada vez mais, privando-o da necessária subjetividade, drenando suas melhores expectativas para caminhos insatisfatórios, ao passo que o sistema se alimenta até o fim de suas melhores energias.
A constatação de que isso existe é dolorosa, e traz marcas para quem a percebeu: "I have seen the writing on the wall", diz o personagem Pink em another Brick the Wall III, ao percebe que na realidade "não precisa" daquilo que o "stablishment" criou para sua pacificação, seu conforto: afetos de encomenda, drogas calmantes, leis construídas para impedir as reais conquistas individuais. A amarga consciência repentina sobre um cotidiano sobre o qual adquiriu nova consciência a partir de algum fato ou situação dramáticos incidindo sobre sua vida. A partir desse momento crucial, o sujeito se desvencilha do calmo conforto para enfrentar o monstro.
Pink é um pop star deprimido, cansado de sua rotina exaustiva e da desumana exploração a que é submetido pela máquina de moer carne do showbiz, e depois de se tornar rico e famoso, não encontra mais forças para criar, ou mesmo para ter um dia a dia feliz ou produtivo. O esquema geral de shows e mais shows, a falta de tempo para sua própria vida, seus afetos, sua arte, a falta de oportunidade de se encontrar em situações que permitam um enriquecimento ou reconhecimento de si próprio no que faz, o aliena cada vez mais, privando-o da necessária subjetividade, drenando suas melhores expectativas para caminhos insatisfatórios, ao passo que o sistema se alimenta até o fim de suas melhores energias.
Nesse trajeto, após uma abrupta tomada de consciência (importante marcar a característica existencialista de que toda tomada de consciência é dolorosa, e passa necessariamente por momentos de angústia e de ruptura com a antiga ordem, antes que possa ser estabelecida uma nova forma de interagir com o mundo) ele tenta num primeiro momento se rebelar, mas percebe logo que o sistema é forte, e para evitar qualquer ameaça de ser derrubado, construiu muros ao seu redor, impedindo-o de comunicar seu desespero ao mundo, e pior: impedindo-o sequer de ter contatos verdadeiros e significantes com o próprio mundo, que aparece sempre como a possibilidade de ser O OUTRO.
A grande diferença da viagem existencialista é que, enquanto distopias comuns que pregam um amanhã sombrio e uma sociedade controlada pelo estado sobre grupos, a viagem de Waters/Pink/The Wall é individual. Mesmo havendo críticas a grupos como nazistas, políticos, contra preconceitos de forma geral, a guerra a ser travada é uma guerra da subjetividade, apontando cada um sujeito de sua própria vida como responsável por sua própria consciência e eventualmente, dependendo de como resolverá o conflito, tornando-se massa de manobra ou um indivíduo mais pleno, capaz de mudar o jogo ao pular o alto muro que o cerca, e encontrar também outros indivíduos que fizeram o mesmo.
A grande diferença da viagem existencialista é que, enquanto distopias comuns que pregam um amanhã sombrio e uma sociedade controlada pelo estado sobre grupos, a viagem de Waters/Pink/The Wall é individual. Mesmo havendo críticas a grupos como nazistas, políticos, contra preconceitos de forma geral, a guerra a ser travada é uma guerra da subjetividade, apontando cada um sujeito de sua própria vida como responsável por sua própria consciência e eventualmente, dependendo de como resolverá o conflito, tornando-se massa de manobra ou um indivíduo mais pleno, capaz de mudar o jogo ao pular o alto muro que o cerca, e encontrar também outros indivíduos que fizeram o mesmo.
No album "Pink Floyd The Wall" (1979), a sequência planejada das canções obedece a um roteiro de enquadramento do personagem Pink dentro de uma intensa agenda de shows, mas enquanto tudo isso se passa num mundo externo, comandado pela pressão dos negócios e pelo timing do mundo industrial, o artista, como indivíduo e como sujeito, implode num primeiro momento, fugindo e afundando-se nas drogas e na instrospecção, questionando sua própria existência e seu papel no mundo. Um segundo momento, redentor, poderá surgir dessa passagem trágica, mas para isso, será necessária muita força e propósito. Waters não dá a resposta, mas coloca o problema com uma perfeição raramente alcançada por outros meios discursivos dentro do próprio ambiente formal filosófico.
Compostas organicamente, num album que possui uma rara beleza poética e um primoroso trabalho musical, as músicas refletem as situações vivenciadas pelo protagonista no caminho de se libertar através de uma possível luz do autoconhecimento. De alguma forma , Pink alcança um grau de percepção do seu drama, começando a imaginar uma possível saída disso tudo. Entretanto, ao contrário do que apregoa a versão ocidental do pensamento desde que Platão veio ao mundo, a verdade não está apenas nas idéias. Não basta descobrir o problema e buscar um diagnóstico perfeito. Depois de descobertas as causas, o diferencial está na atitude, na ação, e as forças contrárias serão sempre muito grandes, tendendo a aniquilar as possíveis rebeliões, neutralizar possíveis pensamentos divergentes e tornar o mundo ao seu status anterior, confortável e artificial, sufocando o indivíduo entre as paredes do sistema. As canções, portanto, são reflexo e ao mesmo tempo roteiro do que Pink passará, como um indivíduo contemporâneo em crise existencial, na difícil condição de sair da sua zona de conforto material para tentar o bárbaro mundo lá fora, que por outro lado, poderá ser de fato o mundo real, passível de resgatá-lo na plenitude de um ser humano que um dia já foi.
AS MÚSICAS:
1)Primeiro tema: A crítica existencial e política contra a forma como se apresenta o mundo e as coletividades obtusas gerando pressão sobre o indivíduo. O Estado reproduz, sob forma de lei, de cultura institucional, educação, costumes e força, comportamentos e verdades convenientes à sua própria justificação. Isso não é novidade e já existia de forma densa em Marx, Nietzsche, Freud e Foucault. A diferença na abordagem do album é a forma lírica do desespero da consciência surgida no primeiro momento em que o indivíduo percebe o mundo como opressão e a si mesmo como parte do mecanismo que reproduz a opressão sobre os outros, acrescentando sempre "mais um tijolo no grande muro"
Esse sentimento de tensão existencial está expresso nas seguintes canções:
Esse sentimento de tensão existencial está expresso nas seguintes canções:
IN THE FLESH ? (na real? na vida real? Na vida como ela realmente é, longe da tv, do mundo fictício) Tudo começa com os tambores e a guitarra alavancada de "In the flesh", o guitarrista Gilmour abusando das escalas blueseiras, quando é noticiado no texto da letra que o protagonista popstar passou mal e não poderá dar o show programado para esta noite. A platéia fica insatisfeita, e cobra. A música , cantada em ritmo lento de "overture", é então narrada por um chefe de cerimônias, que impõe, em um discurso bastante autoritário e racista, que se dependesse da vontade dele, todos seriam fuzilados ali mesmo, na arena de shows. Crítica aberta ao poder quase absoluto dos "massmedia" e geradores de "entretenimentos inocentes" criarem padrões perniciosos sobre os cidadãos, gerarem preconceitos e distorções de percepção sobre os ouvintes. O poder de controle, obviamente, nunca será sempre aquele presente nos quartéis. Existe de forma mais eficiente quando veiculado através de alguns padrões culturais.
THE THIN ICE: (gelo fino) A música começa suavemente, com um bebê chorando, toques de baixos no piano e a voz metálica em falsete de Gilmour, para logo em seguida, depois da primeira estrofe, entrar a ruptura forte do tema com acordes delirantes de Gilmour, quebrando a serenidade. Pink está em seu quarto de hotel, deprimido e inerte devido às drogas e às bebidas. As drogas aqui, não têm um caráter de apologia, como muitas vezes foi abordado de forma equivocada, até mesmo pelo filme. Embora Waters, como integrante da geração 70 tenha acreditado por um tempo nas virtudes do LSD como droga potencialmente capaz de ampliar os estados de consciência, e ajudar a ver um sentido mais rico para a vida, a fase em que foi produzido o álbum já havia superado há muito esse período. Não é demais lembrar que a perda precoce do seu melhor amigo e colega de formação de banda, Syd Barret, por demência, alguns anos antes, em razão do uso excessivo de mescalina e LSD, drogas com enorme potencial mental, foi algo que marcou definitivamente Waters e o levou a mudar de direção, inclusive sobre a sua própria atividade criativa e os rumos da banda, posteriormente. O filme não faz apologia ao uso ou discurso vazio da rebeldia pela rebeldia, mas as drogas utilizadas pelo protagonista, em sua maioria calmantes e antidepressivos representam na verdade apenas a fuga de uma pressão exterior que se tornou insuportável. As drogas que vitimizam Pink são uma mistura entre calmantes, antidepressivos e bebida, portanto drogas "socialmente permitidas", para tornar mais forte o efeito da crítica sistêmica do autor, e são até mesmo mais perigosas que as tradicionais "drogas ilícitas", porque são permitidas e formam uma mistura perigosa e inusitada, trazendo a submissão da mente à violência dominadora do mundo, e além disso, dinamitando a mente do artista e levando-o a uma completa apatia criadora. "The Thin Ice " mostra que , enquanto foge dos shows, sua mente o leva a um possível passado, onde havia uma família feliz, a infância surge pela primeira vez na sua mente, depois de muito tempo, e a letra mostra a fragilidade de toda essa construção familiar, que cria uma rede falsa de proteção ao redor do filho, mas quando ele chega no "mundo lá fora", repleto de desafios, medos e traições, terá a sensação permanente de estar navegando com seus patins sobre um gelo fino que poderá se quebrar a qualquer momento e acabar com seus sonhos.
ANOTHER BRICK THE WALL (part I): (apenas mais um tijolo no muro) Abusando de sua fender telecaster, e dos efeitos delay, chorus e reverb, Gilmour oferece um suporte à mágoa consciente de Pink/Waters, para reclamar do pai, do passado, do seu legado. A consciência da primeira infância, perdida há muito tempo. Contemplando o retrato de seu pai num portrait, ele se lembra de que o pai voou para a segunda grande guerra, incorporado às forças armadas britânicas, de onde nunca mais voltaria, deixando atrás de si um filho pequeno e uma esposa além de um orçamento apertado. Pink se ressente do abandono paterno e começa a perceber que, diferentemente daquela família radiante, o mundo legado pelos pais é inseguro e repleto de falsas aparências(não passa despercebido a essas alturas a importância que a ausência da figura paterna assume na formação da vida de Waters, e que o nome Pink Floyd também é uma corruptela da pronúncia do nome pai da psicanálise FREUD). Surge a primeira referência de que o legado dos pais poderá transformá-lo em apenas "mais um tijolo no muro" (another brick the wall) se nada for feito para impedir.
THE HAPPIEST DAYS OF OUR LIVES. (os dias mais felizes de nossas vidas). Crianças uniformizadas brincando no recreio, na escola fundamental. Chega o diretor de pátio e interrompe a festa, mandando todos de volta às salas. Helicópteros zoando alto, gritos de ordem como num megafone de quartel, a voz primeiro conivente e depois angustiada de Waters mostrando a importância fundamental da educação e da formação das crianças no caráter dos cidadãos do amanhã, dos adultos que comporão o "sistema". Denúncia aberta sobre o rígido sistema educacional inglês e por tabela, de todo sistema educacional onde o individualismo, os dogmas, o excesso de disciplina e a crueldade sejam mais importantes do que o afeto, a cooperação, a criatividade e o conhecimento interativo. Professores sádicos porque suas vidas são infelizes reproduzem o sistema da crueldade em sala de aula, gerando mais pessoas infelizes e o ciclo se repete ad infinitum.
ANOTHER BRICK THE WALL (PARTE 2) : Música antológica na discografia do rock. Crianças eternamente em filas, em carteiras enfileiradas, disciplina a toda prova. O sistema se baseia fortemente em hierarquia e repressão, deixando de lado o incentivo à criatividade ou afirmação do potencial individual pleno do sujeito. No filme "The Wall", é retratada a famosa cena onde os meninos, todos padronizados, com marcha, uniforme e máscaras, entram numa máquina de fazer salsicha (alimento homogeneizado e retrato da sociedade industrial). Baixo cadenciado de Waters, com Gilmour brincando com o efeito delay, criando a idéia de parada militar. Solo de guitarra fantástico, um dos mais criativos do disco. A faixa anterior prepara para entrada nesta marcha das crianças na tentativa de se libertarem de um sistema coercitivo, autoritário, que forma máquinas e salsichas humanas ao invés de seres humanos livres. O tema educação pelo estado é associado a manipulação do pensamento, aprofundando a questão original da formação de cidadãos na sociedade contemporânea. Na visão de Waters, não se formam, mas se "deformam" os humanos nas escolas, criando pessoas que em última análise são apenas esqueletos funcionais, não gente.
GOODBYE BLUE SKY: (adeus céu azul) Belo coral fúnebre e um violão dedilhado cordas de Nylon. Ciellos em acompanhamento grave e sinistro, contrastando a suavidade do vocal de Gilmour e dos backing vocals brilhando na abertura do tema, com a pronúncia das sílabas iniciais: "D-D-D-D-Did you hear de falling bombs?? D-D-D-D-Did you see the frightened ones?" simulando uma metralhadora no meio da batalha. Manifesto contra a guerra, na constatação de que os céus jamais serão novamente azuis depois de deflagrada a grande guerra. Pânico contra o terror atômico que poderá aniquilar de vez a vida na Terra. Chamamento à responsabilidade das nações, do conceito obtuso de patriotismo e ufanismo exacerbado que tantas vezes conduzem à guerra sem maiores razões. Culpa dos governantes nos genocídios pelo planeta.
BRING THE BOYS BACK HOME: (tragam nossos rapazes de volta) canção contra a guerra, em forma de coral. As vozes, como simulando o coro composto por toda uma nação suplica que seus jovens sejam trazidos de volta enquanto ainda é tempo, antes que todos sejam mortos de forma bárbara, sem motivo que justifique.
EMPTY SPACES: (espaços vazios) Música opressiva e altamente introspectiva, conduzida por tímpanos gigantes de orquestra em dois tons batidos seguidamente, como tambores indígenas. Piano apenas em notas soltas, nos baixos mais graves, martelados com muita força, sem piedade. Guitarra alucinada explorando cada nota por uma eternidade de sustain, delays e flangers no último grau. Captador do braço da strato em seu belíssimo som mais grave, preparando a entrada de Waters no vocal, sombrio, perguntando o que fazer, como proceder para completarmos os últimos espaços vazios que estão nos muros?? Não há outra saída, então devemos nos curvar e submeter à tirania, à covardia, e apenas assistir enquanto os grandes espíritos são dominados para sempre pelos pequenos? Seremos sempre mais um tijolo a completar o muro? Quem nunca se revolta, legitima toda a covardia que há no mundo, e assim ajuda o tirano a tiranizar, contribui para o muro crescer e se solidificar cada vez mais.
RUN LIKE HELL: (corra o quanto puder) Gilmour, além de um excelente músico de formação, é mestre nos efeitos especiais, e este batidão com delay e timbre estalado de telecaster é um dos beats mais conhecidos no mundo musical. Solo de teclado de Richard Wright. Mùsica protesto contra a violência urbana, o caos que governa a noite nas grandes cidades espalhadas pelo globo. Violência de grupos armados, da força policial despreparada, das gangs que se reúnem a princípio como forma de defesa dos seus ideais, mas acabam massacrando inocentes em nome de uma idéia supostamente pura. Impossibilidade de expressão dos afetos e do contato produtivo com o outro, quando existe a opressão da noite na cidade como muro. Necessidade do Estado reprimir as manifestações individuais como forma de manter a perpetuação do poder. "Corra, porque esta luta aniquilará qualquer indivíduo". Enquanto seres isolados, não há como vencer.
WAITING FOR THE WORMS: (esperando pelos vermes) Os vermes (miseráveis) neste caso (Worms) são os políticos e governantes do planeta, de modo geral, e há uma passadinha numa cutucada ao próprio governo inglês. Seguindo a linha da faixa "Run like hell", os governantes pensam apenas em seus próprios conchavos e nos jogos de poder, pois não há espaço nem interesse na melhoria real da vida dos cidadãos. Cidadão consciente de seus direitos e com a cabeça livre para pensar causa problemas. Este é o lema do poder. Portanto, se ninguém tomar qualquer atitude, "esperemos para seguir os vermes" ,diz a canção.
WHAT SHALL WE DO NOW? (o que devemos fazer agora?) Nesta canção, a própria letra diz tudo: É um Desabafo do indivíduo pressionado contra o muro da sociedade de consumo. Os muros e o controle do Estado existem em qualquer sistema político e social. Não é privilégio dos estados comunistas e nem tampouco dos capitalistas, mas é nos sistemas capitalistas ocidentais onde esse controle se aperfeiçoa e se sofistica para dar sempre a impressão de que não há controle. Na sociedade de mercado, representa os pseudo-questionamentos ou temas superficiais com suposta profundidade a que todos somos induzidos quando os verdadeiros questionamentos não encontram espaço na mente. Como já dizia há muitos anos o velho Marx, e neste caso ele tinha razão, a relação de consumo não é a única possível nem desejável numa sociedade qualquer . Entretanto, dadas as condições históricas, ela em alguns momentos assume o papel preponderante no condicionamento dos grupos, destilando seus valores sobre mentes e espíritos desde a mais tenra infância, e formando mais elos para manter sempre lubrificada a engrenagem do sistema. Portanto, quando Pink se sente pressionado a manter seus contratos artísticos, mesmo contra a vontade, mesmo sentindo-se extenuado e com o potencial criador bloqueado, ele deve seguir repetindo os padrões anteriores, apenas pela mecânica, ou reformular seu estar-no-mundo? Questionamento que a música coloca da seguinte forma:
2) Segundo tema: O amor, suas possibilidades, as rupturas, quedas e ascensões também está presente em vários momentos do album :
MOTHER (mãe) : O amor materno. Violão de aço batido suave com paletadas definidas, acompanhando a voz lenta de Waters, que narra o estreito vínculo de afeto entre o garoto e sua mãe, um amor sem medidas e que justamente por isso, e talvez pela necessidade de compensar a falta do pai ausente porque morto em combate, pode se transformar na primeira grande prisão (muro) da qual tentará se livrar ainda que tardiamente o protagonista. O amor é legítimo e correspondido de uma mãe amorosa mas hiperprotetora, que poderá alijar mais tarde o adulto de sua maturidade, impedindo sua completa formação ao colocar o papel da mãe como a referência principal de sua vida. A mãe dirá o que é bom, qual a melhor namorada, qual a posição do mundo, evitará os perigos e os caminhos tortuosos e ainda que façam mal ao seu pequeno filho, e nesse processo ,criará involuntariamente paredes que precisarão ser desconstruídas caso o sujeito pretenda se conectar ao mundo mais tarde. Belíssima canção, com participação de Gilmour na segunda parte do vocal, e um solo à altura.
VERA: O amor à primeira vista, por uma garota que você viu um dia, apenas, e jamais conseguiu ver novamente. Belíssima orquestração de violinos e ciellos como tema de fundo. "Onde andará Vera Lynn"? pergunta a voz angustiada, e sabe ao mesmo tempo que aquele momento jamais voltará e aquela pessoa especial se foi. Difícil aceitar, mas a perda faz parte do jogo, e o tempo jamais retorna. Cada momento é único e é a proximidade da morte que redefine , por uma espécie de antagonismo benéfico, o valor que a vida possui: o que por sua vez, é um grande tema existencialista clássico.
DON'T LEAVE ME NOW: (não me abandone agora) Agonizando...Respiração lenta ao fundo, como alguém num aparelho numa UTI, nas horas finais. O piano desfiando acordes menores com baixos fortes e delay eventual de guitarra limpa, sem efeitos, tudo isso na primeira parte. Na segunda parte, o coral assume , e a guitarra segura uma infernal nota prolongada durante uma eternidade, enquanto, em overdub, a segunda guitarra sola escalas pentatônicas blues, para duelar. Uma das canções mais angustiantes do album, conduzida com a voz desafinada de Waters (Pink)abrindo o peito para reclamar da perda amorosa: sua mulher o abandonou justamente no momento em que mais precisava. No instante em que uma luz de consciência tardia mostrou-lhe em que medida seu mundo era um constante girar de superficialidades, agendas lotadas, atitudes mecânicas, pessoas fúteis e uma máquina sempre funcionando engrenada, mas sem nenhum significado maior no terreno da existência, dos afetos, da realização plena que só se dá na presença do outro. Ele percebe, ao mesmo tempo, que sua parceira só estava ao seu lado enquanto ele era um pop star bem sucedido, ganhando rios de dinheiro e nas capas de revista, e a perda iminente da fama, da carreira, o abandono do circuito milionário e brilhante das baladas da fama o fizeram ficar cada vez mais só.
YOUNG LUST:(luxúria juvenil, tesão jovem) O amor sexual. Sexo sem compromisso. A guitarra puxa uma frase como pergunta, pausa breve e responde a si mesma logo em seguida, com acordes maiores cheios. A timbragem única, numa combinação de drive suave, flanger, chorus e muito reverb, valoriza muito o som e a pegada do guitarrista. Entra Gilmour com vozeirão de bluesman, cantando no refrão: "oooooooh, i need dirty womans , oooooooooh, i need dirty girls". Cansado de tentar contatos afetivos frustrantes, e sem tempo para investir em relacionamentos, Pink usa e abusa do sexo pago, se diverte, mas no fundo fica uma imagem de nostálgico arrependimento por não viver relacionamentos mais intensos e menos comerciais.
YOUNG LUST:(luxúria juvenil, tesão jovem) O amor sexual. Sexo sem compromisso. A guitarra puxa uma frase como pergunta, pausa breve e responde a si mesma logo em seguida, com acordes maiores cheios. A timbragem única, numa combinação de drive suave, flanger, chorus e muito reverb, valoriza muito o som e a pegada do guitarrista. Entra Gilmour com vozeirão de bluesman, cantando no refrão: "oooooooh, i need dirty womans , oooooooooh, i need dirty girls". Cansado de tentar contatos afetivos frustrantes, e sem tempo para investir em relacionamentos, Pink usa e abusa do sexo pago, se diverte, mas no fundo fica uma imagem de nostálgico arrependimento por não viver relacionamentos mais intensos e menos comerciais.
3)Terceiro tema: abandono do existencialismo humanista e politizado de Sartre e maior aproximação com os temas de Heidegger: solidão, angústia e enfrentamento como provações necessárias para se chegar à solução do problema. Não enfrentar é morrer cada dia um pouco. O conforto excessivo e continuado não leva à consciência do mundo. O outro como definidor da essência e atitudes do indivíduo no mundo. Só sou "alguém"se existe um "outro" com quem eu possa me comunicar. Mas este outro não é um outro qualquer , é necessário que não seja apenas PESSOA, no sentido formal, um ser aparelhado de práticas, ideologias e padrões maquinais. O outro deve ser, além de PESSOA, aquele que escolhe sua liberdade assim como eu escolhi a minha, e nesse espaço superior onde nos tornamos gente, nos transformamos simultaneamente em sujeitos de nossa própria história, humanizando-nos nesse processo. Tornamo-nos HUMANOS quando superamos o mero status legado pelo mundo impessoal. Quando problematizo e encontro um grau de consciência sobre minha própria vida, o passo seguinte é como um salto, para que seja superado o problema da própria vida. Pelo medo do salto, pelas consequências do pensar diferente, e assumir as dores de ser o que se é, não existem tantos humanos, mas sim apenas pessoas, carapaças robotizadas e insensíveis.
HEY YOU: (ei, você) Violão aço com afinação Nashville, o dedilhado cintilante de Gilmour (timbragem e afinação que ninguém consegue imitar quando tenta tocar numa roda de violão) acompanhado pelos slides do baixo de Waters vai criando a ambiência necessária para as perguntas incômodas disparadas verso após verso da canção. "Hey you" fala das possibilidades e impossibilidades da comunicação humana, em todas as suas nuances, e seu solo de guitarra é contundente, fica girando em círculos ascendentes e com muito efeito de flanger a faixa tema "The Wall" trabalhada em corda solo. Depois de considerar que os muros são sempre muito altos e ser humano é algo como sempre estar escalando paredes para se chegar ao OUTRO, termina fazendo a apologia da união contra o excesso de individualismo, no último verso "Together we stand, divided we fall"...
IS THERE ANYBODY OUT THERE? (há alguém aí, do outro lado?) Música temática e pergunta que não quer calar durante todo o percurso da obra. Afinal, existe alguém lá, do outro lado do muro? Quem esta´do lado de cá não sabe, não tem certeza. Então, deverá se arriscar, deverá investir tudo num salto no escuro, para a necessária busca. E esse alguém, como já foi dito em vários outros pontos do álbum, não pode ser apenas a casca de uma pessoa, deve ser um alguém livre, que tenha superado seus medos e escalado uma vez ao menos as paredes do muro.
NOBODY HOME:(ninguém em casa) Melhor poema do album e uma das músicas que mais gosto do Pink Floyd. Filosofia existencialista em grande estilo, com piano de cauda e versos para Baudelaire, Rimbaud ou Rilke nenhum botar defeito. O retrato do indivíduo na vida moderna, relegado à escolha entre sua solidão quase sempre improdutiva, ou a companhia de bens de consumo, no lugar de relações. Vida líquida, relacionamentos vãos, trabalhos compostos de alienação e ritos maquinais. Não se vê em toda parte versos belos e poderosos como este "I've got wild staring eyes/i've got a strong urge to fly/ but i've got nowhere to fly to"...
THE SHOW MUST GO ON: (o show tem que continuar) Letra belíssima e poética para recolocar em cena o bordão muito conhecido para quem habita o chamado "Mundo real". Ele mostra que por mais que haja sacrifícios, a máquina precisa andar. O popstar se deprime com sua realidade, sente-se uma vítima impotente , adoece e sai de cena.
4) Finalização : A possível saída do conflito, mas não sem pagar um preço
THE TRIAL: (o julgamento) Ópera-Rock: Pianos, corais, cielos, tímpanos, metais e chords: O enfrentamento aos poderes constituídos. Se não se propõe a jogar o jogo do sistema, Pink deverá ser exemplarmente julgado. Enfrenta o julgamento aonde terão presença um juiz psicopata, ansioso por proferir logo a sentença a mais cruel possível, sua esposa, sua mãe, e onde o promotor de acusação é ninguém menos do que seu antigo professor da escola primária, o mesmo que era conhecido por seu sadismo e crueldade sobre os alunos. Pensar é perigoso. Pink é acusado e logo condenado, entre outras coisas, por pensar com a própria cabeça, por enxergar o mundo em cores e por apresentar sentimentos reais num mundo artificial. É considerado um indivíduo perigoso à totalidade e deverá ser encarcerado antes que o mal se espalhe. Um tijolo mal colocado poderá enfraquecer outros tijolos, e dessa forma o muro poderia vir abaixo. É necessário remediar.
COMFORTABLY NUMB:(confortavelmente anestesiado) O que dizer desta música? Pode uma música manter alguém vivo ? Pois esta alimentou meu espírito durante muitos anos, numa época onde tudo era fome. Ela remete a uma determinada atitude de vida, uma percepção aumentada das possibilidades do viver, aonde se evidencia a forte necessidade de qualquer organismo aprender a assimilar os golpes e variações do destino com força e naturalidade, sem deixar se abater mas, ao mesmo tempo, sem ficar anestesiado demais. Afinal, a consciência excessiva pode se tornar fraqueza diante da impotência do agir, assim como o não-sentir anestesia a capacidade de ser humano, tornando o indivíduo bruto como pedra.
Ela começa suavemente, após o último verso da faixa anterior sentenciar: "Is there anybody out there"? (há alguém aí fora?) Como um indivíduo perdido diante de um muro, sem conseguir ver ou ouvir o que há do lado de lá, mas sondando a possibilidade de atravessar a barreira que os separa, saltando em busca de contato humano. Essa atitude corajosa de exploração e desprendimento é o que caracteriza o verdadeiramente humano, diferentemente da conduta maquinal e melancólica, desesperançada, de sentir o mundo como feito e acabado, um mundo alienante que não possui ponto de entrada para mudanças. A comunicação e o reconhecimento no outro e pelo outro é que dá o sentido.
Ela começa suavemente, após o último verso da faixa anterior sentenciar: "Is there anybody out there"? (há alguém aí fora?) Como um indivíduo perdido diante de um muro, sem conseguir ver ou ouvir o que há do lado de lá, mas sondando a possibilidade de atravessar a barreira que os separa, saltando em busca de contato humano. Essa atitude corajosa de exploração e desprendimento é o que caracteriza o verdadeiramente humano, diferentemente da conduta maquinal e melancólica, desesperançada, de sentir o mundo como feito e acabado, um mundo alienante que não possui ponto de entrada para mudanças. A comunicação e o reconhecimento no outro e pelo outro é que dá o sentido.
Com teclados suaves, modulações de violino e chords, baixo e apenas acompanhamento distante de guitarra. A voz de Waters inicia suave, como o médico que repete a pergunta fundamental a um Pink , adoentado, "doente de vida", incapaz de solucionar os seus próprios problemas, uma vez que descobriu como a vida funciona. Está atordoado pelos psicotrópicos e ouve o médico: "Hello, Is there anybody in there?" fazendo um paralelo com a pergunta anterior, que é posta antes da música começar, se havia algúem no exterior, agora a pergunta é : se existe de fato alguém no interior? O médico informa que vai fazer o possível, com ciência e medicamentos, para diminuir seu sofrimento. Gilmour em voz metálica angelical responde como o personagem, em sua fase infantil, dizendo que não há sofrimento, enquanto viaja por efeito das drogas e do seu desapontamento com o mundo, em puro escapismo. Não consegue mudar o que vê, tudo parece muito nublado e a viagem induzida ou o retorno à infância lhe trazem conforto mental neste momento de crise. Percebe aos poucos que, ao trazer de volta a criança livre e criativa que um dia foi, que sua vida atual é apenas um reflexo anestesiado do que poderia ser.
Entra o Primeiro solo de guitarra de Gilmour, numa música em que se dá ao luxo de construir dois magníficos solos em dois tons diferentes, alimentando a sensação de viagem lisérgica de uma parte do espírito de Pink, enquanto a outra permanece em conflito. O médico lhe dá uma injeção, reanimando-o para o show, porque a máquina não pode parar.
Entretanto, Comfortably Numb tem uma grande revelação de conteúdo e mudança de perspectiva dentro da proposta do álbum: é aqui que começa a retomada de consciência do personagem Pink, acerca de seu lugar no mundo. Durante o breve período em que fica fora de si, por excesso de introspecção enquanto vive uma profunda crise depressiva, enquanto sofre as pressões do mundo externo para entrar na linha de volta, e enquanto se desintegra parcialmente tocado por psicotrópicos, ele tenta em algum momento nadar novamente para a superfície, trazido pelas mãos pela criança feliz que havia sido tempos atrás. A criança volta não para regredi-lo ao status de um ser desprotegido e pueril, mas para doar-lhe a força vital que toda criança possui em seu "pathos": a capacidade de ver o mundo como eterna novidade recomeça da a cada dia. A capacidade de ser bom contra o que é ruim. A capacidade de ver otimismo onde tudo inspira desgraça, e por fim, a capacidade orgânica de se renovar sempre, mantendo a capacidade de amar sem rodeios. Agora desperto de seu sono anestésico, ele se levanta e se rebela, e nada será novamente como antes, porque agora traz em si um grau de consciência indelével sobre sua própria situação e sobre o mundo que o rodeia. Falta encontrar uma forma de agir.
O resgate dessa criança para seu mundo interior, radiante, criativa, ousada, é o grande ponto de retomada de perspectiva do adulto, situado quase trinta anos após. Sua vida, anestesiada pelas drogas, pela rotina massacrante, pela falta de contato humano verdadeiro, atolada na interminável busca e falta de sentido, assim como sua arte, sofre um choque positivo quando essa criança assume o controle por alguns instantes novamente, e mostra como tudo poderia ser de outro modo. A rebeldia contra o sistema, o dizer não ao que o agride, ao que não lhe faz bem ou à excessiva cobrança por resultados medíocres numa estrutura que não lhe propicia o necessário tempo e recursos para a verdadeira criação, a ausência de medo de tentar novas saídas, tudo isso ressurge forte em sua vida, e ele se levanta novamente para o show, turbinado pela medicação recém-aplicada pelo médico, e ao mesmo tempo com a cabeça e o espírito cheio de novas intenções acerca da sua essência redescoberta.
Entra o Segundo solo de Gilmour, um dos mais perfeitos de toda a história do rock. É como se cada nota desse solo estivesse ali desde sempre, no lugar exato. Nunca uma simples escala pentatônica rendeu notas mais profundas e tocantes, como se Deus se iluminasse no instante da criação, e o guitarrista, como um escultor, tirasse os excessos da pedra bruta de uma rocha até descobrir no fundo a alma da sua escultura, que fala e se move como uma obra-prima de Michelangelo em seus melhores dias.
O solo de guitarra de "Comfortably Numb" é uma espécie de mantra indiano, pois no final da faixa, o engenheiro de som vai baixando suavemente até que desapareça. Se não fosse o recurso de engenharia, o solo continuaria indefinidamente, como é próprio dos mantras, girando em escala ascendente para uma nova espiral, mas repetindo a faixa tema até o infinito. Música de transcendência, de transporte, capaz de propiciar uma espécie de "êxtase dionisíaco" e comunicação com as esferas, como no dizer de Nietzsche, e como acontece com as melhores músicas já criadas pelo homem.
O solo de guitarra de "Comfortably Numb" é uma espécie de mantra indiano, pois no final da faixa, o engenheiro de som vai baixando suavemente até que desapareça. Se não fosse o recurso de engenharia, o solo continuaria indefinidamente, como é próprio dos mantras, girando em escala ascendente para uma nova espiral, mas repetindo a faixa tema até o infinito. Música de transcendência, de transporte, capaz de propiciar uma espécie de "êxtase dionisíaco" e comunicação com as esferas, como no dizer de Nietzsche, e como acontece com as melhores músicas já criadas pelo homem.
ONE OF MY TURNS: (uma das minhas "crises")Quebrar tudo para um novo começo? a letra diz "pegue meu machado favorito"...O desenlace das aventuras de Pink no album sugere uma encruzilhada de três vias: é possível anestesiar-se completamente como em CONFORTABLY NUMB , tomando sua droga cotidiana, camuflada nas muitas formas de auto-aniquilação da consciência: calmantes , antidepressivos, bebida ou drogas, religiões alienantes, trabalhos alienantes ou compulsões de fuga. Para fugir à completa aniquilação dos sentidos pela anestesia, ou ele quebra tudo, rompe com o modelo de vida que adotou até aqui, o que sugere por fim as músicas Another Brick The Wall part III e ONE OF MY TURNS, ou aceita docilmente o que lhe acomete, saltando para a morte do alto de um prédio, o que GOODBYE CRUEL WORLD parece sentenciar.
De todo modo, ONE OF MY TURNS é o limite até onde consegue chegar Pink. Durante um acesso de fúria propiciado por uma depressão continuada, ele quebra todo seu apartamento e ameaça se jogar do prédio. Em vez de se jogar, usa o ódio para se rebelar contra o status a que foi reduzida sua própria vida. Como dominado por um dia ruim (tema da música), decide não mais tocar, decide não mais fazer parte do sistema, e deverá enfrentar as consequências. Música de introdução suave, piano e voz, que de repente se transforma em fúria com muita quebradeira. Pink expulsa sua acompanhante de casa e inicia um quebra-quebra que vai parar apenas com a costumeira calma que vem depois da tempestade: termina sentado no sofá, sobre cacos e restos de móveis, meditando, depois de um solo de guitarra acachapante, com muito Wah e distorção na medida certa. Another Brick III dá as sentenças finais depois da revelação da consciência em novas atitudes perante um mundo a que já não sente pertencer, e que pretende transformar de alguma forma, ou morrer tentando: "I don't need no, arms around me" (negativa do afeto quando este é falso e comprado à custa do conforto fácil do cotidiano) "I don't need no drugs to calm me" (recusa às medicações psicotrópicas que diminuem o ímpeto, a criatividade e a capacidade de enxergar os problemas e procurar saídas". E finalmente, a sentença: "I have seen the Writings on the Wall", que caracteriza o momento de lucidez do protagonista, ao entender como a engrenagem se move, e de que forma ela se compõe das vontades e dos corpos de todos, de cada indivíduo em particular, e cuja soma, plasmada, constitui as paredes que no segundo momento impedirão o indivíduo de alçar vôos.
Waters não determina, mas deixa no ar o possível final: O músico vai pular do alto do prédio, ou após a abrupta tomada de consciência (GOODBYE CRUEL WORLD) terá forças renovadas para superar os muros que encobrem os possíveis aliados humanos espalhados pelo planeta? (HEY YOU, IS THERE ANYBODY OUT THERE? NOBODY HOME) A resposta não é exata, mas dependerá sempre da boa ou má solução do problema elucidado pela profunda abordagem de COMFORTABLY NUMB. Eu acredito na força da criança, que poderá recolocar o sentido do mundo e assim propiciar o reencontro das forças necessárias para sua transformação.