A queda (Ensaio para uma metafísica do herói)
Há alguns arquétipos que são sempre revisitados pelo tal
inconsciente coletivo, e a queda, como um ritual de passagem, é uma das mais importantes referências. A idéia da perda abrupta de uma pretensa continuidade, a ruptura inusitada, aleatória, que pode se transformar no momento trágico de sepultamento do ser sobre o qual ela se abate. Ou, como ocorre em muitos casos, representar talvez a força exterior invasora e conflituosa que, ao contrário, o impele a buscar no fundo suas melhores energias, mergulhando num processo obscuro e sofrido de autoconhecimento revelador. Essa atividade de prospecção poderá ainda trazer a lume aquilo que poderia ser definido como sua essência-em-vida, transformando-o em 'outros' paulatinamente, ao conferir-lhe uma alteridade absorvida das diversas experiências a que se propõe, e das quais até então ele próprio não se julgava capaz.
inconsciente coletivo, e a queda, como um ritual de passagem, é uma das mais importantes referências. A idéia da perda abrupta de uma pretensa continuidade, a ruptura inusitada, aleatória, que pode se transformar no momento trágico de sepultamento do ser sobre o qual ela se abate. Ou, como ocorre em muitos casos, representar talvez a força exterior invasora e conflituosa que, ao contrário, o impele a buscar no fundo suas melhores energias, mergulhando num processo obscuro e sofrido de autoconhecimento revelador. Essa atividade de prospecção poderá ainda trazer a lume aquilo que poderia ser definido como sua essência-em-vida, transformando-o em 'outros' paulatinamente, ao conferir-lhe uma alteridade absorvida das diversas experiências a que se propõe, e das quais até então ele próprio não se julgava capaz.
Se ocorre a ruptura, é possível que o espírito se corrompa ou se aniquile em definitivo, porque ciente de suas fraquezas, e incapaz de superá-las, sucumbe à tentativa. Ou, ao contrário, se a metamorfose não o mata e o ciclo se completa integralmente, funda-se, historicamente, ao ressurgir da queda, a figura arquetípica do "herói", do "santo", do "artista renovado", em êxtase com seu poder de transformação, de superação, ou quem sabe, de criação. O ser que foi capaz de transformar a si mesmo em algo maior, mais forte e mais completo, como uma lagarta que, ao entrar em um tipo de coma, isolando-se em um casulo e matando instintivamente sua forma anterior, renasce em forma alada dias depois, reafirmando o milagre da vida. A diferença é que, para o inseto, a natureza (physis), aleatória e rígida em seus ciclos previsíveis, comanda integralmente o processo, enquanto na esfera humana, o ato de escolha e o salto serão subjetivos, não-condicionados e irão expor e definir o que se é, ao final.
A forma como isso acontece está gravada na história por diversas metáforas. Para a história do ocidente, a relevante narrativa bíblica está repleta de exemplos, algumas quedas seguidas de superação e outras não. Os mais notórios são a queda de Lúcifer (muitas vezes denominado como o "anjo caído"), que retira-se em dado momento para o abismo das trevas, fascinado, ofuscado e ao mesmo tempo impotente diante do brilho de Deus. A queda de Adão e Eva no paraíso, tentados pela sutileza irrecusável da serpente, com a particularidade de que, neste caso, os efeitos da ação estendem-se também a todos os seus descendentes. A queda de boa parte dos santos do ideário cristão, que em algum momento de sua vida mundana deverão converter-se ou encontrar alguma "luz" reveladora para legitimar sua ascensão, a sintonia com o que lhes dita de alguma maneira o arauto de uma ordem divina. O mais importante e representativo nesse ideário cristão, é, sem dúvida, Agostinho (e também o mais inspirado e original de todos), cuja vida é o melhor exemplo da queda, da imersão estética nos prazeres do mundo, que subitamente se descobre pertencendo a uma outra ordem de valores que extinguem o plano anterior. Antes mesmo de Agostinho, há também a idéia recorrente de "Luz", observada na história de Paulo, apóstolo, quando o cidadão romano Saulo de Tarso, implacável cumpridor de seus deveres de Estado, é "fulgurado por um raio que o derruba do cavalo', tornando-se outro, em resposta à "intervenção divina". A idéia de declinio, mesmo que num curto prazo de tempo, ou dada uma situação específica nesses casos, reflete sempre a transmutação de um status anterior , que se caracterizava pelo comportamento cego, a ausência da Luz, e a sua superação é sempre representada pelo chamamento em algum grau pela ordem divina, que confere elevação e solução do impasse. Sempre das trevas à luz, mesmo se comparadas diversas religiões com origem anterior ao cristianismo.
A queda, como momento de passagem necessária, e tantas vezes traumática, de uma ordem não esclarecida a uma outra superior de compreensão, assimilação ou "clarividência" das coisas do mundo, sempre foi representada simbolicamente também pela literatura e demais artes, além da religião, e pode significar também situações de ocorrência individual ou coletiva. A figuração do amor, por exemplo, em algumas culturas, muitas vezes foi associada a vertigem e queda, remetendo-se à idéia de desarme, de entrega a uma espécie de inimigo poderoso, daquele ser que foi enredado pela paixão ou alvejado pelas flechas de eros . Quem ama, (embora o verdadeiro amor possua em si mesmo o sentimento da chama e da absorção, da integração do ser com o universo, sendo portanto, muito mais uma força que une e se multiplica do que uma força da divisão e da individuação), muitas vezes projeta a realização do seu objeto em outro. Isso desvia o sentimento de sua própria origem, dividindo, isolando e criando expectativas desmedidas e grande chance de frustração dos seus propósitos, quando a queda no abismo existente entre o mundo real, tangível e mutante e aquele outro mundo platônico, idealizado, talhado no frio mármore dos sonhos, mostra-se inevitável. Não se morre de amor, enfim, mas são inegáveis os sofrimentos causados pela forma como a utilização desse poderoso sentimento se manifesta entre nós. Uma queda sem ascensão? Göethe e Beethoven, cada um à sua maneira, talvez concordassem.
Noutra abordagem mais lúdica e não menos representativa, oriunda da fantástica e rica mitologia nórdica, a queda de Thor, injustamente acusado de atividades desleais em face de Odin, seu pai. Ele estará sempre tentando se provar depois (daí sua grande virtude e sua saga pessoal), para não ser atraiçoado pelo irmão, Loki, e para mostrar que sua ajuda aos humanos não representa sabotagem aos desígnios de Asgard. Thor tem muita relação com o "Prometeu" grego, nesse particular interesse benéfico para os humanos. Prometeu foi condenado por ajudar a humanidade, ao lhes conceder o domínio do fogo, e por isso foi julgado e aprisionado num rochedo pela eternidade, condenado a ter o fígado eternamente devorado pelos abutres. O próprio panteão helênico tem inúmeros casos que poderiam representar o tema "queda", uma vez que seus deuses, que incorporavam características do temperamento humano, eram suscetíveis, intempestivos e ardilosos em suas estratégias olimpianas. O semi-deus Hércules levará uma vida errante, com a reiterada necessidade de se provar em árduas tarefas todo o tempo, para se livrar do jugo de Hera, que por sua vez, disputava território com a arquiinimiga Afrodite. Jasão, Ulysses, Perseu, e o próprio Aquiles, levarão vidas pontuadas pela constante e simbólica luta entre suas próprias intenções, o que lhes manda seu melhor espírito, em conflito com a ordem geral do Cosmos, regida pelos deuses, que nunca chegam a um melhor acordo entre si. O resultado nunca é garantido de antemão, e o herói, o semi-deus, deverá reunir suas melhores forças para cumprir seu destino. Ainda no caso grego, isso acontece mesmo com os mortais, que imbuídos do desejo de superação e equiparação aos deuses, tentam por alguma maneira alcançar a glória por feitos imortais. O mais simbólico é Ìcaro, que usando as asas forjadas pelo seu pai, o fabuloso inventor Dédalo, tenta voar e alcançar as alturas, aventura que é fadada ao trágico, pela grande queda no abismo do reles mortal e suas pretensões divinas.
No terreno dos heróis contemporâneos dos quadrinhos, ambiente rico para observação de muitas abordagens filosóficas e existenciais sobre a vida, a queda de Peter Parker, que mesmo tendo se tornado o homem-aranha após o acidente com o inseto radioativo, tem que ser socado no estômago pela vida, pela morte do tio, a qual pensa que poderia ter evitado se fosse menos egoísta e mais responsável com o poder. A queda de Clark Kent, o "Superman", que o tempo todo tenta fugir e negar seu poder imenso e extraterreno , até que situações específicas no âmbito de sua vida terrestre jogam com sua consciência, atraindo-o definitivamente para a prática de um ideal de justiça, entendendo por fim que não é uma opção recusar-se ao uso do seu potencial. Ele se sente obrigado em grande parte a retribuir uma espécie de gratidão e bondade aos humanos porque percebe que é praticamente inatingível pelas dores da vida, uma sensação de culpa inversa, enfim. O fato de não sentir a dor física, como os humanos a sentem, o leva a experimentá-la na forma existencial, criando um sofrimento que só será parcialmente abrandado com a ação, devendo o herói abrir mão até mesmo de sua vida pessoal, dos aspectos afetivos e amorosos, e colocando-se inteiramente disponível para atender a todos os que sofrem no planeta. Como isso é impossível, mesmo para um herói dotado de tamanhos poderes, está criada a condição para que "Superman" seja sempre um homem em conflito.
Falando agora sobre um herói mais terreno, a queda de Bruce Wayne acontece ainda muito jovem , quando seus pais são assassinados na sua frente, e aquele mundo até então perfeito de uma criança burguesa de repente vem abaixo, dando lugar a uma outra noção amargurada da vida que vai moldando seu caráter, até que ele possa se "vingar", estabelecendo uma nova ordem. Diferentemente de "Superman", que sofre por excesso de amor à raça humana, e por sentir-se impotente para ajudá-la a ser como ele, livrando-a do sofrimento, "Batman" tem outro tipo de conflito. Precisa controlar seu ódio por tudo que é humano, pela cidade "Gotham", pela multiplicidade de arranjos das forças do mal que tiraram a vida preciosa dos seus pais, forças do mal que decididamente imperam na cidade sombria, esmagando e conduzindo os cidadãos de bem, a minoria das pessoas, ou a virarem também criminosos, ou a se aniquilarem enquanto indivíduos, tranformando-se em amebas despersonalizadas. Batman é um herói "sui generis" , por várias razões: primeiro, porque é humano até a raiz, possuindo uma inteligência rara e uma determinação sem igual, mas sem possuir super-poderes. Também porque, no seu caso, algo sugere que a luta contra as trevas é sempre a representação de uma luta interior para não ceder ao "lado negro da força", como a caricatura do cavaleiro Jedi extraviado pela sede de poder, em "Star Wars". Por isso, Bruce Wayne sempre se cerca de festas, amigos, baladas, uma vida social, mesmo sendo um solitário por natureza. É importante não ceder um milímetro do espírito para a sede pura de vingança, sob pena de se tornar ele próprio um vilão, como o mais característico e mais especial deles: "Duas Caras". Por que um inimigo tão especial? Porque, ao contrário dos demais agentes do mal, Duas Caras não teve uma infância propensa à criminalização, e toda a sua vida, ao contrário, foi levada sempre "pelo lado do bem". Aquele que era um dos missionários da lei e da ordem na cruzada contra o mal, de repente, percebe que tudo foi em vão, que o mundo não poderá ser salvo, precipitando-se numa queda abissal e sem retorno, que o transforma no seu oposto, um vilão, depois de um trágico acidente que o deformaria fisicamente. "Duas Caras" poderia ser perfeitamente o alter ego de Batman, na hipótese dele perder suas esperanças e sua determinação de lutar pelo bem, ainda que idealizado.
Para Superman, a queda é o excesso de amor, para Batman a dificuldade de controlar o ódio e transformá-lo em algo produtivo, para o Homem-aranha a culpa, para Thor a necessidade de ser amado pelo pai, preenchendo uma carência ancestral, um arquétipo, e para Prometeu, o ciúme que nutria por Zeus, porque uma vez sentindo-se eclipsado pelos poderes e magnitude do chefe do Olimpo, roubou o fogo dos deuses para presenteá-lo aos humanos, tornando-os quase tão poderosos quanto os deuses, e causando sua ira, em consequência.
No chamado mundo real, existe a famosa queda filosófica, existencial, como ocorreu ao filósofo Kierkegaard, que após uma vida burguesa e festeira, recebe a notícia do falecimento súbito de seu pai, a quem era ligado, talvez mais por razões que dizem respeito à esfera da culpa, do medo e do remorso, do que propriamente por questões de natureza afetiva, lançando-o inadvertidamente num longo processo de angústia que desembocaria por sua vez, numa rápida tomada de consciência, levando-o a escrever uma das obras mais importantes que já foram feitas na história da Filosofia. Um grito de rebeldia do indivíduo em meio às teias aprisionantes e claustrofóbicas do pensamento racionalista.
Aumentando o abismo dessa queda, eu citaria ainda uma outra ainda não totalmente resolvida, que foi aquela sofrida pelo grande filósofo alemão Martin Heidegger, em face do Nazismo, às vésperas da segunda guerra mundial. Como Fausto cedendo à sedução de Mephisto, mas ciente do preço a pagar pela inebriante e enriquecedora alteração das percepções sobre a vida, aliada à intensificação do sentimento do mundo -- prazeres proporcionados pela droga denominada poder -- e que lhe impregnaria a alma de todas as potencialidades, Heidegger parece ter vislumbrado em todo o teatro hitleriano uma nova ordem capaz de trazer à tona uma verdade política e existencial reveladora e, no seu entendimento, mais elevada que a versão anterior na história aristocrática alemã. Refutemos o pensamento simplório e preconceituoso sobre o tema, promovidos pelos escolásticos. É óbvio que a atitude política de Heidegger é indefensável, e a ordem que ele não só acolheu, mas tentou legitimar é absurda, além de efetivamente ter se mostrado a mais cruel e destrutiva da nossa era. Entretanto, reduzir todo o trabalho do filósofo alemão por abordagem isolada dessas premissas políticas seria pura idiotice. Quem o faz é porque lê mal esse bruxo que, depois da guerra, isolou-se definitivamente da civilização na floresta negra. Suas profundas análises no campo da filologia, notadamente no reestudo das obras gregas da antiguidade clássica e seus escritos no terreno da filosofia existencial (designação, alíás, que ele nunca aceitou, preferindo lidar com o termo clássico "fenomenologia") são extremamentes ricos e já se constituíram em fortes esteios do pensamento contemporâneo. Entretanto, como entender a sua atitude enquanto "cidadão do mundo", aquilo que o intelectual faz quando não está sozinho, ruminando palavras em seu gabinete, ou mesmo discursando solenemente numa sala de aula, uma vez que as idéias não andam, ou pelo menos não deveriam andar tão longe da prática, da atitude e da interação do próprio "ser-no-mundo", para usar uma fundamental expressão heideggeriana? Compreender um dos mais influentes pensadores de todos os tempos, significaria simultânea e necessariamente legitimar, de forma indireta, em atitude e discurso, os pressupostos grosseiros de todas as práticas hediondas do nazismo, dentre eles o discurso anti-semita e a apologia da superioridade da raça ariana? Seria mais uma queda sem ascensão?
E finalmente, talvez o motivo deste pequeno ensaio, o que nos faz pensar que quando nos alcançar a queda, em qualquer hora do dia, em qualquer lugar ou atividade que estejamos a exercer, estaremos preparados para sua superação? A queda espreita tudo que é humano, em todo movimento que as peças fazem nesse infinito tabuleiro de xadrez. E a forma como pode vir, a linguagem viva e poderosa sob a qual será submetido o ser nesta espécie de provação de fundo fenomênico, é absolutamente imprevisível, porque particular, porque extremamente subjetiva. Para os gananciosos, o mecanismo do desvio existencial é o dinheiro, para os inocentes a malícia, para os ambiciosos, o poder, para os fracos o idealismo, para os fortes o desejo, e para os loucos, a queda é a razão.
Como viver após a queda? Que deus, razão ou filosofia de vida sustentará nossas escolhas quando cairmos? De onde extrair a força vital para causarmos em nós mesmos a mudança necessária, que parte de um enfrentamento? Como aprimorar-se ou tornar-se outro ao atender um chamado premente da vida, quando se sabe que a atitude é o que define, mais do que qualquer suposta "essência" imutável ou imortal, e não sua intenção mas a forma como alguém reage aos impactos de toda natureza é o que decidirá o que ele realmente é? Sim, porque não sofrer a queda não é uma opção quando se vive...
Porque, para o herói, o santo ou o artista, não há outra escolha: se depois da queda, não se ergue, também não pode continuar normalmente aniquilado, resignado, mero cidadão comum, o que seria uma espécie de morte; quando o herói não supera a queda, transforma-se necessariamente no vilão, exatamente como simbolizado de forma mais ou menos tosca nos filmes de heróis do cinema de massa, porque sua força não pode deixar de se manifestar de alguma forma. O Santo que não se eleva continua "pecador", a metáfora de sentido comumente atribuído pelas ordens religiosas, e o artista, este sofre a pena maior, pior do que sua própria morte: torna-se incapaz de criar.