A Tempestade
Renascendo depois de um tenebroso e seco inverno, eu vi sua chegada verde, anunciada e úmida por entre chuvas temporais, calores estivais flutuando cheiros. Eu e as árvores olhando para as nuvens, na esperança da sua volta. Os arautos de vento que dançam janelas, entrevistam portas e recomendam gotas, esses sabem as notícias antes que o mundo as faça. Toda chuva tem sempre sua escola de espreitar o momento certo. Com as primeiras gotas, contempla-se de uma janela esse liquefazer de todos os seres vivos, como se através do olho mágico de uma porta secreta eu pudesse contemplar o próprio mundo em espiral infinita, movendo-se no ritmo de torrentes seguidas enquanto uma leva de seres felizes por poder navegá-la sem paradas, sem atropelos, simplesmente flui. Sob a ponte de madeira grossa, mas incompleta em sua latitude, ruge o rio vermelho, com esse temeroso som desbarrancador (familiar a quem habita suas margens), curvando violento poucos metros à frente, enquanto arrasta margens, cercas e bambuzais inteiros. Jangadas bananeiras, sem passageiros no convés, com cabeças mil-folhas tornaviradas preparando-se para emborcar novamente numa semi-reta entre pedras musgadas, centradas por redemunhos e limadas baixo por antigas ondas ribeirinhas. Criações abatidas pela fúria da tempestade da noite anterior boiam ao sabor da água, seus ventres inchados e os corpos arrastados igualmente no turbilhão. Em cima deste ou daquele, hóspedes temporários urubus banqueteiam-se antes que tudo se desfaça na próxima cachoeira. Sobre a ponte, meninos em êxtase preparam suas embarcações de papel: estaleiro, capitães e contramestres despachando a estibordo as galés enchente abaixo junto com o fim da infância. Uns barquinhos de papel flutuam, outros não. A vida assim se faz, entre gráficos curvos nessa filigrana imensurável como a foto de um eletrocardiograma sem fios onde não existe um coração batendo na outra ponta. Ao cinzento de longe, do sombreado de coqueiros descem mil palhas podres insustentáveis que formarão moradas aos pequenos habitantes rasteiros, e estes a outros menores, infinitamente, assim que tudo se assossegar. Mas agora, no aval do maior terror, quando ventos torcem todo o horizonte, quando raios riscam o estreito céu negro de Netuno, as mulheres da casa põe-se a rezar com força, e sobre a prataria da casa, sobre todos os espelhos, sobre todos os objetos de metal existentes se lançam largos lençóis, cobertores, toalhas, do medo da chance de se contemplar a si mesmo durante a fugaz existência de um raio. Rezas, esperas, trovões surdos, maldições....!! A água não para e relembram-se as estórias sobre vaticínios de enormes perigos no relancear a si mesmo em vis espelhos na penumbra clareante de um corisco. Fragmentismos mortais, inumanos!!. A surdez momentânea de captar no escuro sucedido à luz, o ribombear de trombetas celestiais, o tremebaleão do trovão rememorando o nascimento dos mundos, fazendo o pequeno se apequenar de volta, e liberando o grande de uma vez a seu caminho maior. Escritas de luz, arames farpados e cortantes do mediúnico céu negro-dourado-aceso-cegante que não tem direção. Levanta-se de terra a céu, baixa-se de céu a terra, anda de lado gerando convexos tridentes de azuluz ardente. A estiagem traz consigo escaravelhos e todo tipo de baratas d'água, grandes pequenas, ínfimas-por-nascer. Cupins perdendo asas depois de um vôo desconcertantemente efêmero. Calor. Caravanas de besouros da noite, brilhosos, sérios, carcaças de vidro de dragão, capotados virados de costas sobre o cimento, horas, dias, repetindo o mesmo movimento lento, o beijo da morte, sua incapacidade de se desvirarem sozinhos. A natureza erra sua programação?? Um ser belo e poderoso como um besouro de chifre incapaz de se levantar sozinho?? Morre agonizante, virado ao revés, mexendo essas pernas sem solução. Borboletas do dia, enjoadas e renitentes bruxas noturnas esvoaçando-se espavoridas, debatendo-se contra as fortes luzes fluorescentes, na alta torre da praça. Insetos no frenesi sexual dessa sedutora luz, lançando-se destemidos como tigres sobre a presa, sobre a face dos vidros e lâmpadas quentes. Um breve instante de glória, e a seguida queda para a morte anônima, um após outro, inexoravelmente. Embaixo de mil mangueiras açoitadas pelo vendaval a profusão de frutos do éden, amarelos, suculentos, povoados das moscas de vidro azul, abelhas e vespas pretas ou vermelhas, em êxtase com tanto mel. Içás Tanajuras revoando gordas suas translúcidas asas vermelhas, estreando nupcialmente a noite de galas, e enquanto acasalam são tragadas por andorinhas esfomeadas, recém-chegadas do Pacífico, de sua peregrinação anual aos trópicos. Suas asas molhadas preto-azuladas rebrilham ao final do sol depois da chuva, e são um espetáculo á parte pela forma como curvam a gravidade, tiram chispas do chão, mudam conceitos e existem em sua plenitude alada. Poderiam optar pela forma mais objetiva, simples, se quisessem, e ainda assim as rechonchudas formigas com asas não ofereceriam resistência. No entanto, fazem do simples batido poder um dom, um ritual, e seus malabarismos são escritos como um nanquim invisível nos céus, enquanto parafusam os limites de terra e firmamento para o fundo do olhar, costurando o vermelho e o azul para permitir a humana visão. Meninos em alvoroço catando as que caem ao chão, e aquelas que não se escondem a tempo, viram ventiladores espetados na ponta de sádicos e inocentes palitos, revoando em desespero suas últimas energias. Algumas lendas sobre fritadas desses bichos, com farofa. A bem de se afirmar, nunca vi ninguém testar. Conversas... Antes da última revoada, crianças aceleradas correndo embarreadas, guerras permitidas, a única guerra onde só há plenitude. O toque remissivo e piedoso do barro nos respingos da última lavada, bermudas e pés descalços amaciando-se na lama, camisas ensopadas pela chuva. Aguardo de ficar um tempim mais felizes antes das mães preocupadas aparecerem nas janelas, tocando todos de volta para o lar.